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Como o fiável se tornou questionável, ou o relato da primeira grande crise de Rúben Amorim

Quatro derrotas num mês deixam o projeto do Sporting cheio de interrogações, traumatizado pela derrota contra o Varzim, a sexta em 14 jogos na temporada. Sem a força defensiva de outrora e com um ataque marcado por contradições, Amorim vê-se forçado a reagir ao primeiro grande momento de dúvida na sua carreira

Pedro Barata

DeFodi Images/Getty

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Já passavam alguns minutos dos 90 em Barcelos. O Varzim defendia-se como podia, perto da sua baliza, perante um Sporting a tentar, sem grande critério, forçar o prolongamento. Inácio já era mais avançado que defesa, Jovane saíra do banco para atuar pelo Sporting pela primeira vez desde janeiro, mas quase só se viu na transformação falhada de um livre. Numa das últimas ações da partida, a mais cotada das equipas dispôs de um lançamento de linha lateral perto da área dos poveiros.

Fatawu, cheio de boa-fé, apressou-se a ir buscar a bola e a dizer aos colegas que a colocaria na área rival. Mas o ganês, numa mistura de precipitação, atrapalhação e mais coração do que cabeça, fez um lançamento desastrado, saltando no momento do arremesso e entrando dentro de campo. O gesto foi, obviamente, irregular. Uma das últimas oportunidades para que o Sporting empatasse perdia-se porque um lançamento de linha lateral foi mal efetuado.

A falha de Fatawu ilustra bem a desinspiração reinante nas últimas semanas nos leões, a qual levou a quatro derrotas num mês, cada uma com efeitos práticos: cair no Bessa faz com que, à nona jornada da I Liga, o líder Benfica esteja já a nove pontos de distância, enquanto o FC Porto está a seis; ser batido duas vezes contra o Marselha atirou o Sporting da primeira para a terceira posição do grupo D da Liga dos Campeões; ser surpreendido pelo Varzim, que compete dois escalões abaixo, atira o Sporting para fora da Taça de Portugal, arredando-o já de um objetivo da temporada.

Apesar da intensidade das emoções já vividas e do êxito que obteve, Rúben Amorim ainda nem há três anos chegou à I Liga. Com sucesso imediato em Braga e no Sporting, esta é a primeira verdadeira crise do treinador. As quatro derrotas nos últimos 30 dias são mais do que todas as registadas na primeira época completa no Sporting, quando perdeu três vezes. As seis derrotas em 14 partidas nesta temporada aproximam a equipa das nove registadas em 53 encontros na passada campanha.

DeFodi Images/Getty

“Claro que é duro, sou treinador do Sporting e isto são momentos que marcam e são momentos inadmissíveis. São momentos inaceitáveis, que podem acontecer na Taça, mas temos de ser melhores”. As declarações cruas de Amorim depois da derrota em Barcelos retratam a dificuldade do presente leonino.

Com quatro jornadas da I Liga para disputar até à paragem do campeonato devido ao Mundial e com a decisão da fase de grupos da Champions também na agenda nas próximas semanas, não há demasiado tempo para lamber as feridas. Da unidimensionalidade tática de que é acusado Amorim à abordagem ao mercado, passando pela perda de fiabilidade defensiva, várias razões podem ajudar a explicar o súbito abanar do projeto de Alvalade.

A imutável vida dos três centrais

É assim desde que Rúben Amorim deixou de ser Rúben Amorim, o polivalente jogador de Benfica ou Sporting Braga, para ser Rúben Amorim, a estrela ascendente dos bancos nacionais. As suas equipas jogam com três centrais, dois homens para os corredores, dois médios à frente da defesa e três jogadores mais à frente, podendo estes ser de características variáveis — de Nuno Santos, Pote ou Tiago Tomás no ano do título para Pote, Sarabia e Paulinho na temporada passada, culminando no trio formado por Edwards, Pote e Trincão que tem sido mais utilizado nos últimos tempos.

Logo na primeira época completa de Amorim em Alvalade, Sérgio Conceição descreveu o Sporting como uma “equipa fácil de desmontar”, pela repetição de certos padrões, ainda que “difícil de contrariar” se não houvesse “competência”. Com o antigo internacional português há já mais de dois anos e meio nos leões, a questão da rigidez tática tem sido tema cada vez mais abordada.

A 30 de abril, já na ponta final da época passada, Amorim garantira que o Sporting joga “de forma diferente” do que fez no começo do seu período no banco, apresentando “posicionamentos diferentes”. Ao longo dos meses, o treinador tem insistido na existência de “nuances” na sua estrutura para provar que tem havido “evolução”.

“Se tirássemos uma fotografia em vários momentos do jogo, aquilo não são três centrais, são três defesas, são dois defesas, são cinco na frente, não três”, comentou, também, o treinador a 30 de abril.

Particularmente em 2021/22, Amorim falou muito na mudança das características dos centrais exteriores, com jogadores como Esgaio ou Matheus Reis, mais laterais, a darem outras valias para a posição, mas a realidade é que, como ponto de partida, a linha de três mais dois atrás é intocável, mesmo quando há expulsões que obrigam a tirar gente da frente (como o fez com Edwards depois do vermelho a Adán em Marselha) ou do meio (como sucedeu com Morita depois da expulsão de Esgaio em Alvalade contra os franceses).

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Quando o Sporting defrontou o Manchester City, na passada Liga dos Campeões, Rúben Amorim destacou a capacidade de metamorfose dos homens de Guardiola, o que levava a que a sua equipa não pudesse “tapar todos os espaços”, pois os ingleses “mudam o posicionamento completamente”. Essa observação levou o técnico a admitir que pensou que, “se calhar”, o Sporting “poderia fazer mais isso”, mas que os jogadores que orienta tinham o “azar” de “não terem um treinador capaz de os levar a esse patamar”.

Por convicção e opção, a rigidez na estrutura mantém-se, com a opção de Amorim a ser sempre mudar as “características” dos protagonistas.

Os problemas no ataque

Vinte e quatro golos marcados em 14 partidas disputadas dá uma média de 1,7 golos por jogo. Registo inferior ao das duas épocas passadas, quando, em 2020/21, se apontaram, em média, 1,9 golos por encontro e, em 2021/22, houve 2,0 festejos por desafio.

Uma razão óbvia que se pode apontar para esta perda de poderio ofensivo é a saída de Pablo Sarabia, melhor marcador da última campanha com 21 golos. A juntar à ausência do excelente finalizador espanhol, o Sporting 2022/23 raramente tem jogado como um ponta-de-lança clássico, dado que Paulinho só foi titular em quatro dos 14 jogos.

Juntando Edwards, Trincão e Pote na frente, as partidas mais conseguidas surgiram na Champions, quando Eintracht Frankfurt e Tottenham pressionavam e permitiam atrair pressão, usar a técnica do trio para soltar a equipa e usufruir do espaço existente. Mas, em duelos como frente ao Desportivo de Chaves ou o Varzim - equipas que se defenderem mais perto da sua área, com blocos não tão subidos no campo -, o uso e abuso de cruzamentos parece contrariar as melhores qualidades dos atacantes mais utilizados.

Depois da derrota contra os flavienses, Amorim lamentou que “os cruzamentos não saíram bem”, reparo que voltou a fazer após a eliminação na Taça. O técnico tem criticado a qualidade dos cruzamentos, não o excesso do seu uso.

Para abordar esta época, Amorim voltou a não querer a contratação de nenhum ponta-de-lança além de Paulinho. No entanto, quando é preciso ir à procura de resultados, o treinador continua a mandar subir Coates para a área rival, numa opção que teve o seu momento mais marcante quando, na receção ao Chaves, o uruguaio jogou cerca de 30 minutos no centro do ataque, perdendo-se a equipa em bolas enviadas para a área.

A saída de Matheus Nunes deixou marcas

A saída de Matheus Nunes deixou marcas

Zed Jameson/MB Media/Getty

Também na radiografia que fez à equipa no final da época passada, o técnico de 37 anos apontou que, quando Pedro Porro está indisponível, falta “um contra um nos corredores”, apontando como solução “ter mais alas que façam as duas posições”, apostando em gente para as laterais que, ao ser extremo de raiz, possa desequilibrar.

A contratação de Arthur ao Estoril ou a aposta em Fatawu podem ser com o intuito de dar mais essa vertigem ao ataque, sempre na lógica de tocar nas características, mas sem mudar a estrutura. A verdade é que esse ajuste não tem tido consequências práticas.

A atuação no mercado

“Obviamente que estou insatisfeito, porque se perdesse um jogador como o Matheus e não estivesse insatisfeito é porque alguma coisa se passaria comigo. Não estou contente, é um jogador que nos faz muita falta e não contava perdê-lo. […] Já tínhamos perdido o melhor marcador, mas faz parte. Sabia que ele poderia sair e que a vontade da direção era tirar o Matheus, nós fizemos o máximo para mantê-lo, depois passámos para um plano B que passava por vender o Tabata para manter os nossos melhores. […] A incoerência de certeza que não é da parte do treinador”.

O discurso de Rúben Amorim aquando da venda de Matheus Nunes ao Wolverhampton, dias antes da visita ao terreno do FC Porto, foi, talvez o maior momento de falta de sintonia entre equipa técnica e direção. Aquelas palavras, na reta final do mercado, pareciam deixar entre-aberta a porta da insatisfação do treinador para com a atuação do clube na janela de transferências.

Ainda que Morita e Ugarte estejam a dar boas indicações no meio-campo, a sensação é de que vários problemas não foram resolvidos pelo Sporting durante o verão. St. Juste já mostrou qualidade, mas as suas constantes baixas por lesão, a conjugar com as ausências dos trintões Coates e Neto, deixam a escassez de centrais existente evidente. Também os problemas físicos de Pedro Porro têm atrapalhado Amorim, que tem optado por lançar Ricardo Esgaio, ora para central, ora para lateral.

A perda de estabilidade defensiva

Se houve marca distintiva do melhor Sporting de Amorim, essa foi a força defensiva. Os leões foram a melhor defesa no ano do título, em 2020/21, e na época passada só encaixaram mais um golo do que o campeão FC Porto. Mas, esta temporada, essa segurança parece cenário distante, com 19 golos encaixados em 14 partidas.

“Qualquer bola está a dar golo na nossa baliza”, disse o técnico depois da derrota contra o Varzim. Na verdade, antes de que João Faria marcasse, já por três vezes os poveiros tinham ameaçado Franco Israel, com o uruguaio a ter de intervir em duas ocasiões e, noutra, alguma passividade de Gonçalo Inácio a quase custar o 1-0.

A incapacidade de manter a baliza a zeros pode-se atribuir a vários fatores. Por um lado, os erros individuais aumentaram, sejam as falhas de Adán em Marselha ou de Esgaio contra Sporting de Braga, Marselha e Boavista. Por outro, o rigor nas bolas paradas defensivas esfumou-se, saindo desse momento golos encaixados contra Sporting de Braga, Desportivo de Chaves, Marselha ou Varzim.

Por muito que as indisponibilidades de Coates ou Porro ajudem a explicar alguns destes problemas, a verdade é que, ao contrário do que sucede noutras zonas do campo, no setor recuado a maior parte dos protagonistas têm continuidade face ao passado da equipa. Adán foi titular em 12 das 14 partidas, tal como Matheus Reis e Gonçalo Inácio.

Mesmo Coates e Pedro Porro alinharam, respetivamente, em 11 e 10 jogos, marcando uma linha de continuidade face a um passo de maior estabilidade atrás. Mais do que protagonistas novos, são os comportamentos — individuais e coletivos — que estão diferentes.

A memória tática da equipa, o ADN que a tornava reconhecível e fiável, tem-se tornado arma de arremesso contra Rúben Amorim, como se o que recentemente foi força agora se estivesse a tornar fraqueza.

Neste calendário congestionado, a receção ao Casa Pia será o próximo desafio do Sporting (sábado, 20h30, Sport TV1). Num embate que pisca ao seu começo de carreira, Rúben Amorim tentará evitar perder três jogos seguidos pela primeira vez como treinador. Um reencontro com o passado para tentar renovar esperança no futuro.

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