Pelo Boavista, contra o Boavista: este são os corações divididos do Panteras Negras
O Panteras Negras, criado por membros da claque do clube caído em desgraça, quer mudar o paradigma e contrariar estereótipos. Jogará, na última divisão distrital, contra o Boavista clube por quem torcem os seus fundadores, dirigentes e jogadores. Aí será complicado gerir os amores. O objetivo, um dia, é ceder a equipa e os direitos desportivos à casa-mãe: esteja ela “numa situação regularizada para poder trabalhar de uma maneira normal”. Reportagem num treino do novo projeto que quer salvar o Boavista e quebrar preconceitos
José Vilela lembra-se de “levar porrada” do “falecido pai”, em criança, a cada 15 dias em que surripiava para se agarrar ao elétrico no Castelo do Queijo e só soltar as mãos perto do Estádio do Bessa. Tinha 8, 9 anos e já queria ir ver o Boavista, viu-o bastante, tantas ocasiões foram de cima a baixo, de baixo para cima na avenida à boleia dos carris e com tração no sonho de ver futebol “dentro do relvado”. Sempre gostou do Boavista, “nunca outro clube” o chamou, o que traz vestido não permite teima: contra o fresco de uma noite de setembro, agasalha-se com um casaco do clube.
É um de vários que terá no guarda-roupa, colecionados durante a vida “muito presa”, carregada de viagens e quilómetros, mas da qual sente saudades, enquanto técnico de equipamentos da equipa principal do Boavista. Mas, no complexo desportivo de Baltar, a uns 30 quilómetros do Bessa, o símbolo que adorna estampado no peito não é o do clube a que veio prestar ajuda, o Panteras Negras Footballers Club. Pela melancolia na voz do Sr. Vilela, assim o tratam, parece que foi ontem que andava a cuidar de camisolas, calções, meias e chuteiras de jogadores da I Liga. “Nunca imaginei viver a minha vida e estar a viver a vida dos outros”, desabafa vagarosamente, com o seu olhar gentil.
O Panteras Negras vai defrontar o Boavista, mas o objetivo, no futuro, é a fusão, caso o clube venha a precisar
As vidas alheias que agora facilita vêm do espectro oposto do futebol. Antes atento ao aprumo das botas dos profissionais para lhes “deixar tudo direitinho”, à exceção de uns quantos esquisitos, como o avançado Róbert Boženík, que “não gostava que se mexesse”, hoje trata dos equipamentos dos amadores vestidos de xadrez, reunidos em mais outra equipa na órbita boavisteira. “É mais amor à camisola, embora haja aqui jogadores que se calhar o Boavista não lhes dizia nada.”
O Sr. Vilela parece que pestanejou e, de repente, foi da primeira divisão às catacumbas da bola. Dos jogos na televisão aos treinos em horário pós-laboral. De acartar com o material todo sozinho e ir, em carro próprio (o primeiro que o Boavista teve assim, diz ele), para o estádio onde chegava pelo menos três horas antes de cada jogo, a ouvir agora um “deixa estar que eu levo” dito por um bem-disposto jogador, saído do balneário a puxar uma farta mala, cheia dos equipamentos suados. “Fazes mais do que a tua obrigação”, dispara-lhe, regalado com o contexto: “A gente aqui já pode dizer ‘cala-te um bocadinho’, aos outros, os profissionais, não se podia falar assim.”
José Vilela, técnico de equipamentos da equipa principal do Boavista até há bem pouco tempo.
FERNANDO VELUDO / NFACTOS (EXCLU
Noutro ápice, o seu falar calmo arrebita. Quer garantir que não se sente inferior. “Pelo contrário, sinto-me superior por estar perto daqueles que conhecem o meu trabalho, que sempre me apoiaram e pediram para estar com eles.” São os Panteras Negras, no plural, fundadores do Panteras Negras, singular, o clube saído da claque para ser “um projeto de evolução desportiva do Boavista, em termos de futebol sénior”, diz o diretor-geral, Pedro Cortez, sem hesitar na ambição que, ao ser proclamada, adensa o salsifré axadrezado: “Aqui não há dúvidas: queremos colocar o Boavista Futebol Clube na I Liga em oito anos.” Estamos num treino de pré-época da equipa recém-criada para jogar na última divisão distrital e o tema recorrente de conversa é o clube que foi campeão nacional, em 2001.
Servir o Boavista, um adversário
Ninguém o esconde, quase não se fala de outra coisa, a visita de jornalistas promove-o. A génese do clube, afinal, é esta, dita logo na apresentação do Panteras Negras. “Os adeptos do Boavista veem este projeto, esta estratégia, como uma medida de separação do clube, mas não”, ressalva Pedro Cortez, já com os jogadores pelo costado, a treinarem no campo. “É uma das nossas preocupações: manter uma dinâmica de positividade. Acabaram os tempos ruinosos no Boavista, já não há mais nada para matar ali, mais nada para destruir. Mas começaram os difíceis”, estes em que ele e outros se chegaram à frente, cientes de que trariam consigo o peso de uma perceção.
Pedro é sócio da claque que deu o batismo de nome ao clube e ao lado, ornado por um casaco com o símbolo dos Panteras Negras bordado, está Ricardo Gaia, team manager da equipa e, na descrição do amigo, “um dos elementos mais importantes da claque”, por óbvios motivos: “É aquele a quem se chama o capo, o homem do megafone.” Do plural ao singular passaram, à semelhança de Nuno Fonseca, conhecido por ‘Sousa’, líder do grupo organizado de adeptos boavisteiros e cara, porque presidente, do imberbe projeto do qual se exime de ser a voz para não fomentar o que aceitam, abraçam até, sem pruridos: o que dizem ser o preconceito de encarar quem anda nas claques como malandro, bandido, arruaceiro e por aí fora na escala estereotipada.
O primeiro jogo em casa do Panteras Negras na última divisão distrital do Porto será contra o Boavista.
FERNANDO VELUDO / NFACTOS (EXCLU
Esse motivo capta-se no desabafo de quem, no Bessa, liderava os cânticos na bancada. “Vamos imaginar que as Panteras tinha outro nome, que era um clube criado no café, por amigos. E o povo boavisteiro sabia. Ninguém dizia nada. Agora, como é uma claque que criou este clube, em Portugal sabemos que as claques são mal vistas”, diz Gaia, tratado pelo apelido, ainda rouco por dias, no meio de “mil e tal pessoas”, puxar pelos gritos num jogo-treino do Boavista. Ainda trabalha no clube como diretor dos sub-17, é antigo no posto, Bruno Fernandes chegou a passar por ele na formação. É uma figura que reforça a aparente contradição no esqueleto desta equipa, cujo primeiro jogo em casa, à terceira jornada do campeonato, será contra quem mais desejam o bem.
Ricardo admite-o com emoção — “o coração vai andar ali... O Panteras Negras existe porque o Boavista existe, vamos estar sempre de mãos dadas” —, Pedro não se afastou da razão. “A primeira fase deste projeto passa pelo Panteras Negras estar no Campeonato de Portugal à quinta época. Subir degrau a degrau com um objetivo claríssimo”, explica, ao assegurar o propósito-mãe da missão, mas com reservas: “Os nossos direitos desportivos serão cedidos ao Boavista Futebol Clube, esteja ele numa situação regularizada para poder trabalhar de uma maneira normal e com pessoas à frente em quem nós acreditamos.” Ninguém o esconde, nas redes sociais do clube lê-se “#BoavistaNãoMorre”.
O ‘fantasma’ do Canelas
Nuno Fonseca, mentor da ideia e chefe dos Panteras Negras, foi há uns anos a julgamento com outros dois elementos da claque por ofensa à integridade física qualificada, após desacatos num restaurante em Ponta Delgada, no seguimento de um Santa Clara-Boavista. Quando conceberam o clube, sabiam que esta notícia, mais outras, iria ressuscitar. “As pessoas não acham, não entendem ou não percebem que no seio de uma claque existem pessoas. Eu sou formado em Recursos Humanos, estive 25 anos à frente das competições da Associação de Futebol do Porto. Temos lá advogados, médicos, arquitetos e polícias”, argumenta Pedro Cortez. Futebolistas também, porque vários pertencem à equipa.
Milton Ribeiro é treinador há mais de 20 anos e esteve quatro épocas no Canelas 2010, onde jogavam membros da claque Super Dragões.
FERNANDO VELUDO / NFACTOS (EXCLU
É ramalhete para associar o Panteras ao Canelas 2010, clube de Vila Nova de Gaia que subiu das distritais do Porto aos campeonatos nacionais na década passada, com polémica calçada. O capitão era Fernando Madureira, o “Macaco” líder dos Super Dragões, e um dos jogadores, Marco “Orelhas”, foi condenado a 11 meses de prisão por agredir à joelhada um árbitro, antes de 12 clubes adversários unirem-se num boicote e recusarem defrontar a equipa. “Se viermos aqui jogar e acabarem todos à porrada, vai ser notícia. Se formos nós, vai ser um 31”, reconhece o diretor-geral, sabedor das nuances que podem ser extraídas dos pontos de contacto entre os dois clubes.
Todos sabem que as comparações são inevitáveis: treinador do Panteras é Milton Ribeiro, que passou no Canelas 2010
O mais óbvio foi propositado. Milton Ribeiro, treinador escolhido para o Panteras, era o homem a cargo da equipa do Canelas aquando do episódio de violência. “Estamos mais do que preparados para haver comparações, sabemos que será obrigatório haver”, explica quem, aos 43 anos, leva 21 a treinar, quase sempre em freguesias da bola amadoras, onde o dinheiro escasseia. “Já joguei contra várias equipas, no Canelas ou noutro clube qualquer, e às vezes havia confusões desnecessárias. Tudo aquilo que pretendemos é que seja um futebol de salutar”, augura o técnico que guarda a passagem de quatro épocas no Canelas como “uma universidade”, onde aprendeu “a ganhar e a liderar homens”. Um deles “estava habituado a liderar 5 ou 6 mil pessoas por fim de semana”, hoje está na prisão.
Há quem “às vezes” confunda “a pessoa com a claque”, lamenta Ricardo Gaia, o team manager. “Já é a mentalidade do povo.” O portador do megafone defende que “este ano houve mais problemas” nas outras bancadas do Bessa do que na dos Panteras Negras, mas, queixa-se, “se for na claque, é notícia”. Ele e Pedro Cortez opõem-se à atual direção do Boavista clube, liderada por Rui Garrido Pereira desde janeiro, quando venceu as eleições contra a lista de Filipe Miranda, da qual o diretor do Panteras fazia parte. Sobre a SAD axadrezada, definhada pela gestão de Gérard López, também com equipa inscrita para competir nas distritais (duas divisões acima), nem falam.
O convite para limitar a equipa do Panteras atraiu Milton pelo “começar do zero, ser tudo novo”. Vieram jogadores que já conhecia, outros não, sugeridos pela raridade que é um clube das distritais ter departamento de scouting - outra será terem chegado ao campo de treinos, em Baltar, juntos num autocarro, regalia de algumas divisões mais acima. Uns quantos tiveram origem na claque, mas, garante o treinador, não houve exceções: cada um sujeitou-se ao crivo dos treinos de observação. “Não foi qualquer um que quis aqui ficar, que aqui ficou.”
A quem permaneceu, também o treinador pede o que vai na alma do projeto: “Que eles passem a mística do que é ser boavisteiro. Se o Boavista vier a precisar, o Panteras Negras vai lá estar de pé, para ajudar e amparar o clube, porque é o clube que todos eles amam. O que eles querem é que o Boavista subsista, que tenha força, que ganhe ânimo para conseguir ir. Se conseguir, está tudo bem, o Panteras Negras não existe para mais nada. Se o Boavista não for, o Panteras Negras vai estar ao lado para poder segurar. É isso que os jogadores também sentem.”
FERNANDO VELUDO / NFACTOS (EXCLU
Há quem o sinta bastante, ao ponto de as palavras serem poucas. É o caso de Álvaro, o ‘Bigodes’, Ferreira de apelido de nascimento. Não vai para o novo, dispensa óculos de ver ao longe se procurar pelos 37 anos, é Pantera Negra faz muito tempo e custa-lhe explicar a ambivalência que o tem a sorrir. Causa um “sentimento agridoce” estar na equipa que é filha da decadência do clube que apoia e contra o qual calhou jogar. “O clube do coração vai ser sempre o Boavista, é inevitável não pensar no Boavista, mas estou no Panteras, vou dar tudo pelo clube”, diz, confessando ser “esquisito” ir a campo para ganhar ao clube que lhe arranca devoção quando está na bancada. Eu sou barbeiro, corre-me bem a vida graças a Deus, sempre que dá vou apoiar o Boavista.” Pelas suas mãos já esteve a melena de Bruno Fernandes, visitante da sua barbearia onde o chão, de pintura axadrezada, também é devoto.
O jovial Álvaro quer “muito expressar” o quão profundo o Boavista está no seu coração, mas, nele há este “mas’, os pulmões fornecem outro sustento: “Eu respiro Panteras Negras.” O jogador com o telhado do lábio cuidado, a justificar a alcunha, fala do “carinho” que nutre por ‘Sousa’, o presidente que conhece desde os 5 anos e acompanhará “até ter energia”. Já o fazia e faz na claque que lhe proporcionou “conhecer esta malta toda”. Pluralizando o sentimento, discursa em nome dele e dos restantes, reunidos ali a metros, na galhofa, antes de o engolirem em brincadeira finda a atenção que merece do jornalista: “Todos os que são boavisteiros e passam aqui têm um carinho especial pelo Boavista, mas agora somos do Panteras Negras e vamos levar isto até ao fim.”
Prevenir não, fazer perceber
Incerto é que fim será esse. Sem o precisar por não poder desvendá-lo, Pedro Cortez ressalva, por mais do que uma vez, que o moribundo Boavista está a salvo de ter um último suspiro. Falámos antes de 5 de setembro, dia da assembleia-geral de credores que aprovou a liquidação do clube, não sinónimo de extinção. Sabe a Tribuna Expresso que três das empresas lesadas que perfazem 75% do que é devido pelo Boavista (a Somague, a BTL e a Ares) não querem o encerramento do clube, mas sim vendê-lo, incluindo o estádio que até ver continua interditado pela Proteção Civil. “O Boavista já não está em perigo, mas a maior parte do universo boavisteiro não tem essa perceção. Temos a certeza de que o Boavista não vai fechar portas”, garantia o diretor do Panteras Negras.
Seja necessária essa manobra, chegue tal vislumbre, o dirigente relembra que o projeto respeitará a sua génese e ficará a jeito de se fundir com o Boavista, a sua boia de salvação sempre à vista na linha do horizonte. Mas também repete, com tom acrescido, a exigência: “Não vamos dar o nosso trabalho a qualquer indivíduo que chegue aqui e que tenha a vaidade de ser presidente do Boavista Futebol Clube, mesmo que ele feche a porta, que é o que está em causa.” Até lá, será o seu esforço, as suas carteiras e a dos sócios das Panteras Negras a pagarem por material, deslocações e logísticas, com a bonança de ajudas vindas de fora: “Temos já vários parceiros, o nosso equipamento já está preenchido, se hoje quiseres patrocinar o clube já não tens hipótese.”
Pedro Cortez, diretor-geral do Panteras Negras, integrou a candidatura (derrotada) de Filipe Miranda às últimas eleições do Boavista clube.
FERNANDO VELUDO / NFACTOS (EXCLU
Sensível a outras possibilidades e ao potencial de falatório, e para tentar prevenir caldos entornados, o Panteras Negras quer aproximar as partes: já reuniram com a PSP, a Associação de Futebol do Porto ou a Ágora, que gere as instalações desportivas municipais, porque o clube vai jogar no campo de Ramalde, a poucos quilómetros do Bessa. “Imagino que os nossos jogos terão alguma procura, que pode ser muita. Temos de criar as condições de segurança e comodidade”, trilha Pedro Cortez. Eles já imaginam, caso zaragatas ou algo assim suceda, o tipo de dedos que lhes serão apontados: “‘Foi aquela claque, foram os gajos tipo Canelas’”. O esforço de quem corre de chuteiras terá a companhia do trabalho além-campo para “as pessoas perceberem quem nós somos”. Numa frase, há outra intenção-mestra: “Queremos mudar o paradigma.”
O Sr. Vilela espera bem que sim. Muito já chorou pelo Boavista, só de pensar nessas ocasiões os olhos enxaguam, o seu discurso trava. “Não queria voltar a chorar, a sentir aquilo que já senti muitas vezes”, estima José e o seu coração mole que o faz ser “um bocado sentimental” e desconhecer como vai lidar quando vir o Panteras a defrontar o Boavista. Já é uma vida de preto e branco, de elétricos a deslizar pela avenida e de palmas na bancada do Bessa, onde um dia a pantera de peluche lhe caiu nos pés, quase premonição, atirada por Alfredo, no hábito que o mítico guarda-redes do clube mantinha em cada partida e deu motivo à fundação da claque. “Pensei que ele tinha atirado aquilo para mim. A lógica daquilo era: eles atiram a pantera, a pantera tem que ficar ali. E eu peguei nela e vim embora. E eles, os adeptos, ‘ó miúdo, bota aí’.”, conta. “Nesse dia já nem o jogo vi e vim embora, com medo deles. São coisas que ficam, que marcam.”
Como o vincou, na alma, a carta de despedimento que recebeu recentemente do Boavista, a cortar o vínculo formal ao clube, mas nunca o umbilical, esse que encharca as suas palavras em embargo. Ao contrário de Ricardo Gaia quando tem o megafone a descansar, José Vilela já não é funcionário dos axadrezados, do que resta do clube, mas ainda outro dia lá foi ajudar a estampar camisolas, “não custa nada”, e durante 15 dias, madrastos são os hábitos e tanta é a sua boa-vontade, ainda continuou, durante 15 dias, a pôr-se a pé às 5h30 da manhã para “ir à Dona Lurdes, à Badalhoca, buscar o pão para o pequeno-almoço”.
É a devoção, os amores confundem-se, estão já fundidos. “Gosto demasiado disto.” Disto, do Boavista, o que vai dentro do Panteras Negras.