I ker Casillas está de calções e ténis, com o corpo solto, a caminhar pela zona da Foz, no Porto, tranquilo da vida. Aproxima-se de uma doca onde, apesar do clima bipolar entre o calor abafado e a densa neblina, está uma dúzia de miúdos. Estão a fazer uma pausa dos saltos para a água. Surge o guarda-redes e, superada a admiração com a inesperada aparição, é só preciso um par de minutos para o guarda-redes, vencedor de 24 títulos — incluindo um Mundial e dois Europeus com a Espanha, três Ligas dos Campeões com o Real Madrid e o último campeonato português, com o FC Porto —, estar sentado no meio deles, a trocar piadas e a conversar. Os corpos do jornalista e do fotógrafo são mais estranhos do que o do espanhol, de 37 anos. Casillas está tão entranhado no Porto como a cidade está nele, mesmo que lhe tenha sido “muito difícil” sair de Madrid, pela primeira vez. Iker não age, nem fala, ou gosta que o tratem como uma estrela, que não é no trato, mas é no palmarés, que pede aos companheiros que esqueçam.
Ainda passeias pelo Porto de bicicleta e com um capuz a tapar-te a cabeça?
[Ri-se, levemente] Sim, sim, ainda passo muitas vezes pela baixa, pelas zonas ao lado do rio Douro. Gosto e dá-me uma sensação de tranquilidade, de poder estar próximo das pessoas. Gosto muito do Porto por isso: pela tranquilidade que tem e pela forma de como se vive.
Consegues estar relaxado em qualquer sítio?
Bom, há vezes em que vou à baixa e há mais portistas, mais adeptos, mas o carinho e o respeito são ao máximo. A verdade é que me encontro bem. As duas primeiras temporadas aqui não foram fáceis, não conseguimos nenhum título e sempre houve muitas dúvidas. Mas, na época passada, ganhámos o campeonato e conseguimos outro título, com a Supertaça de Portugal, que para nós era importante, para começarmos bem. Ou seja, antes já havia muito carinho, agora há mais do que o habitual.
Qual é a diferença?
Nos dois primeiros anos houve muita incerteza, muitas mudanças, também, na nossa maneira de jogar. Não conseguimos conquistar um troféu e, agora, ganhámos o campeonato e fomos capazes de tirar o penta ao Benfica. As pessoas celebraram muito, muito, não só na cidade como no estádio. Pude ver o que realmente significa conquistar o título com o FC Porto.
O que te dizem as pessoas na rua?
Há que ganhar, há que ganhar e há que ganhar. E que o FC Porto tem de estar no lugar mais alto de Portugal. Acho que isso contagia e te dá mais força. Creio que, na época passada, quando conquistámos o campeonato, demo-nos conta que as pessoas tinham saudades de conquistar títulos.
Esse contacto dá-te mais pressão?
É normal, mas, por certo, um jogador de futebol chega a uma altura, sobretudo com a minha idade, em que mais do que deveres a ti mesmo, deves a muita gente. Quando és jovem, um miúdo, e começas a jogar, és egoísta. Pensas no futebol, em como podes viver amanhã, pensas em ser uma estrela. Quando tens uma carreira muito prolongada no tempo e a sorte de conquistar muitos títulos, chegas a uma cidade, como esta, mais pequena e acolhedora do que era Madrid, ou a um clube mais humilde — em comparação com o Real —, também notas mais isso. Que fazes as pessoas desfrutarem. Portanto, preocupas-te mais em fazer com que as pessoas desfrutem e possam chegar ao final da época e dizer que o seu clube, neste caso o FC Porto, logrou conquistar o campeonato.
Falaste em mudanças no estilo de jogo. Quando chegaste, o treinador era Julen Lopetegui, que tinha uma forma de jogar apoiada, baseada na construção desde trás, que exigia muito do guarda-redes na participação com bola. Custou-te a adaptar?
Não. O mundo do futebol está em evolução constante e exige-se cada vez mais aos guarda-redes. Já não é só o ser bom na baliza, mas também que seja bom com os pés, porque é mais um jogador de campo e tem de ser aproveitado como tal. E se, todos os dias, tocares na bola com os pés, a controlares e jogares com os teus companheiros, tu vais ganhar o hábito de participar no processo de dar saída de bola desde trás.
O que achas da importância que se dá hoje ao jogo de pés de um guarda-redes?
Sou muito tradicional. Para mim, um guarda-redes tem que estar na baliza para defender as bolas e pouco mais. Ou seja, tentar evitar golos, porque isso é o mais importante. Só depois, obviamente, se tens um bom jogo de pés, também podes dar saída à bola e tens que dar mais profundidade: porque podes sair por um lateral, na ala, ou até procurar um avançado que receba mais perto do círculo central do campo. Tens de ser um pouco como uma referência, para que os teus companheiros também tenham confiança em ti para te passarem a bola. Mas, sou muito clássico — o guarda-redes está lá para defender bolas, não para outra coisa.
És do tempo em que só se pedia isso.
Exatamente. Era sempre chutar a bola para a frente e saías poucas vezes desde trás. Isso começou a mudar há cerca de 10 anos e, agora, acho que se exige a todos os guarda-redes que, no mínimo, tenham esse conhecimento, de passar a bola.
Iker Casillas perto do Farolim de Felgueiras, na Foz do Douro, no Porto, na segunda vez que o Expresso o fotografou
FOTO Rui Duarte Silva
Treinar essa saída depende mais da parte técnica ou de estimular a tranquilidade quando se tem a bola?
Sim, tens que ter essa confiança em ti mesmo, de quem sabe mexer na bola, e a confiança dos teus companheiros. Assim, quando tens de circular a bola desde trás, as coisas serão mais fáceis. É o que te digo, isso está de acordo ao que tem sido a evolução do movimento futebolístico. Já se exige a todos os guarda-redes que tenham o mínimo de conhecimento de controlo de bola.
Por ter sido guarda-redes, Lopetegui sabia-o, não?
O Lopetegui criou-se na escola do Barcelona, com muitos jogadores que fizeram parte da equipa campeã europeia, em 1992, que perderam a final de 1993 ou que ganharam quatro ligas espanholas seguidas, que se tornaram treinadores e davam muita importância à circulação de bola. O exemplo mais claro é o Guardiola, que sempre exigiu aos seus jogadores e, sobretudo, ao seu guarda-redes, que movam a bola. Depois, há o Luis Enrique, o Lopetegui, o Abelardo, o Blanc… Creio que todos saíram com essa metodologia.
Ele chegou à seleção e nunca te chamou. Continuaram a falar?
Não, não. Ele quando se tornou selecionador de Espanha teve a amabilidade de se deslocar aqui ao Porto e falar comigo, para dialogarmos, e transmitir-me o que ia acontecer na seleção. Já tinha pensado no David de Gea como o seu guarda-redes, em quem ia apostar para o Mundial da Rússia e que iria dar mais facilidade a jogadores jovens. Disse-lhe que me parecia bem, que respeitava a decisão, sendo ele o selecionador. A partir daí não houve mais conversas; agora é treinador do Real Madrid e que faça o seu melhor, porque como madridista que sou, espero que o Real continue a ganhar.
Conheces a pressão que Lopetegui sentirá no Real Madrid.
Claro, ainda mais depois desta dinâmica de ter ganhado três Champions seguidas, o que é muito difícil. Acho que o Ajax foi a última equipa a consegui-lo.
E o Bayern de Munique.
Sim, e o Real Madrid, há 60 anos, ganhou cinco seguidas. Depois da saída do Zidane, vão-lhe exigir o mesmo. O Real Madrid é um clube exigente, tem adeptos por todo o mundo, mas o Lopetegui deu um passo gigante para assumir esse risco.
É a pior altura para um treinador chegar ao Real Madrid?
Também era difícil na época passada, quando o Zidane decidiu continuar após ter conquistado duas Ligas dos Campeões. Seguiu e ganhou a terceira, da mesma forma que continuou depois de vencer a primeira e conquistou a segunda. Claro que vão exigir títulos ao treinador do Real Madrid, o clube tem sempre de ter essa missão, um pouco como acontece aqui no FC Porto, onde não conquistar o campeonato ou a Taça de Portugal não é suficiente. Portanto, no Real Madrid, as pessoas vão-lhe exigir que conquiste a liga, a Champions e a Taça de Espanha.
É possível jogar no Real Madrid e viver uma vida tranquila?
Ser jogador do Real Madrid equivale a que estejas sempre a ser analisado e observado. Tem uma responsabilidade. És visto por toda a gente, em todo o lado: onde vás jantar e onde quer que vás dar um passeio pela cidade. Ser jogador do Real Madrid tem o lado bom e o mau — tanto de exaltam e és um jogador reconhecido a nível mundial, como acontece o contrário, quando as coisas não vão bem. Tens que assumir essa responsabilidade.
Sentiste o lado mau quando coincidiste com o José Mourinho. Foi a pior altura da tua carreira?
Não. Os momentos em que não conquistas um troféu, uma liga ou uma Champions, doem muito mais. Doem a ti, pessoalmente, e também ao adepto. As polémicas que tive com o Mourinho já estão saldadas. É um tema que, depois de cinco ou seis anos... não deves falar mais sobre isso, porque já é absurdo. Ele tem a sua vida em Manchester e eu tenho a minha no Porto, casualmente ele também vem cá. São coisas que acontecem no futebol e há que as empurrar para o lado. E também não tens que olhar para trás e ver qual foi a tua melhor época. Com ele conquistei uma liga, uma Copa do Rei ao Barcelona, uma Supertaça de Espanha. Há que ficar com as coisas boas, porque as más não servem para mim, nem para ele, nem para ninguém.
Esse episódio alterou a perceção que as pessoas tinham de ti?
Não, porque com os três anos que levo fora de Madrid, as pessoas continuam a tratar-me bem. Estão no seu direito de me ver com uma imagem que não é a adequada. Também nem toda a gente me cai bem. Isso é normal. Não tento agradar a ninguém — tento é fazer bem as minhas coisas, neste caso no FC Porto, como tentei com o Real. Quem não gostou, pronto, lamento muito, é totalmente respeitável, mas não vale a pena continuar a olhar para as coisas em que te terás, ou não, enganado. Na vida, há que olhar para a frente e continuar a caminhar. É isso que levamos connosco.
No Real Madrid treinavas diariamente com fenómenos e tinhas que parar as bolas rematadas por génios.
É a sorte de pertenceres ao Real Madrid. Quando jogas num grande clube vais estar sempre rodeado de grandes jogadores, o que faz com que cresças, neste caso, como guarda-redes. Já enfrentei o Cristiano Ronaldo na seleção, ou o Benzema; mas enfrentá-los diariamente nos treinos, faz com que melhores. É verdade que estive [suspira e olha para cima]... bom, só de pensar, a lista é interminável: estive ao lado de Raúl, Figo, Zidane, Roberto Carlos, Redondo, Seedorf, Owen, Beckham, Sneijder, Robben, Kaká, e podia continuar.
É uma das razões para seres o guarda-redes que és?
Influi um pouco de tudo. Tens que ter talento. Depois, tens que ter sido criado numa boa cantera. Entrei no Real Madrid com 9 anos e saí com 34. São 25 anos da minha vida e estou muito agradecido. Também ‘mamei’ o que é o madridismo desde muito pequeno e sempre soube o vínculo que tinha com o clube. Convivi com grandes jogadores desde miúdo, o clube selecionava os melhores dos arredores de Madrid e de Espanha.
Uma vez disseste que não ias ao ginásio ou treinavas fora de horas.
É como cada um. Há crianças a quem nascem primeiro os dentes, outras aprendem a andar mais cedo, outras conseguem controlar melhor as suas necessidades do que outros miúdos [ri-se], o que acaba por ser parecido com os jogadores. Eu, pelo meu físico, ir ao ginásio há 10 anos seria fazer pior. Agora não. Tenho que ir um bocadinho ao ginásio, cuidar da minha alimentação e descansar mais. Isso é o que cada um vai encontrando. Não acredito que se tenha de ir ao ginásio todos os dias, como a metodologia italiana, que é físico, físico, físico, porque o futebol evoluiu. Sim, deves ir em doses diferentes, e em momentos diferentes da tua vida.
A idade pesa muito?
Antes, com 20 anos, saía à noite para jantar e podia deitar-me um pouco mais tarde. Agora já não, porque preciso de descansar. É básico e no pasa nada.
rui duarte silva
Se estivesses com um treinador que controla o que comes e a que horas dormes, terias paciência?
Sim, porque o mister Sérgio é uma pessoa muito disciplinada com o rigor, o tema do peso e a alimentação, e acabas por te habituar ao que o treinador quer. E a verdade é que, nestes quase dois anos — e não que Nuno, Lopetegui, Rui Barros ou José Peseiro não o sejam — em que coincido com Sérgio Conceição, a mim, que tenho 37 anos, beneficiou-me ter um treinador que exige que tenhas um peso e uma alimentação, porque controlo mais o meu físico. Depois, também depende do quanto queiras dar. Se tens esta idade e competes contra companheiros que têm 26 ou 27, então tens de cuidar mais destes aspetos para poderes competir.
Sérgio Conceição é um treinador intenso?
É um treinador exigente, muito exigente. Quer o melhor dos seus jogadores, quer que deem 100%, ou melhor, 120%, porque estamos num clube que exige. As 50 mil pessoas que enchem o estádio exigem que o clube seja campeão, então, a cadeia é simples: os adeptos exigem ao presidente, ele coloca um treinador, exige-lhe o melhor para as pessoas, e o treinador, por sua vez, exige aos jogadores que deem 120% no campo. As coisas podem sair mal ou bem, mas tens o estímulo de tentar fazer as coisas como ele quer. Parece-me bem.
Foi a exigência que te custou a titularidade em alguns jogos, em 2017-18?
O treinador tinha as suas razões. Considerava, talvez, que eu não estava bem, optou por outro companheiro, o que é naturalmente respeitável e, aí, o que tens de tentar fazer é pensar no que podes e deves melhorar para voltares a competir pelo lugar. Às vezes, é um estímulo ver de fora os teus companheiros, porque cria-te um obstáculo e ter um obstáculo aos 36 anos é bom. Sobretudo para mim, que sempre gostei de ter obstáculos na vida.
História. O espanhol tem mais de 100 jogos pelo FC Porto, conquistou um campeonato e uma Supertaça de Portugal e diz que “é uma sensação muito bonita” dar alegrias aos adeptos
rui duarte silva
Ficaste chateado?
Não, não.
Contigo mesmo?
Não, tens é que dar mais. Este balneário sabe perfeitamente que gosto que olhem para mim como mais um. Não estou a olhar para trás, para a carreira que tive, ou para os troféus. Sempre disse aos companheiros que pela veterania, sim, sou o mais velho, mas o que gostava era de ganhar um campeonato com o FC Porto. Que o que queria era ganhar uma taça com o FC Porto. O que me aconteceu antes não serve para nada. O currículo não me garante jogar em todos os fins de semana. O que faz com que jogue é treinar bem. Isso sim, é o meu dia a dia. Se olhar para trás e vir o Mundial, os dois Europeus, as cinco ligas com o Real Madrid e as Champions, o mister diz que sim, pronto, pelo palmarés tens que jogar — mas o que interessa é demonstrá-lo dentro de campo. Peço-lhes sempre o mesmo: que não olhem para mim pelo que fui, mas pelo que sou. Que não olhem para o nome, nem para o bilhete de identidade.
Mas os guarda-redes que lutam contigo por um lugar não dão mais por seres o Iker Casillas?
É possível. Eu tive a sorte de competir com o Bodo Illgner, campeão do Mundo e campeão da Champions, com 18 anos. Ajudou-me e aprendi muito, é uma pessoa fantástica e como guarda-redes era espetacular. Competi também com o Santi Cañizares, o Molina ou o César. Na vida tens que ter esses estímulos e tentar competir, de forma sã, com os teus rivais, porque a posição de guarda-redes é injusta, só pode jogar um. Mas, hombre, tento aprender sempre com os meus companheiros. Aprendo com a energia do Vaná, da força e do companheirismo que emana; aprendo com a superação do Fabiano, que passou oito ou nove meses com uma perna lesionada e que voltou com uma vontade espetacular; aprendo com o José Sá [a entrevista decorre antes da sua ida para o Olympiakos], um jovem com raça, ganas e um futuro tremendo; até aprendo com o Diogo, campeão europeu de sub-19.
Concordas que o auge dos guarda-redes é a partir dos 30 anos?
Totalmente. Conheces-te melhor, sabes a alimentação que podes ter, sabes os momentos em que precisas de ir ao ginásio, percebes mais o descanso. Se tiveres uma família contigo, também vais à boleia da família, porque é muito importante.
A posição de guarda-redes é solitária, sobretudo em equipas como o Real Madrid e o FC Porto, que têm jogos sem receberem um remate.
Acontece-me desde os 9 anos. Quando jogávamos contra miúdos vindos dos arredores de Madrid, os resultados eram 7-0, 8-0. Ou 6-1, chegavam uma vez à baliza e metiam-te um golo. Pufff, ficava um pouco chateado. A responsabilidade era muito parecida à que tenho agora. Chegam pouco à tua baliza e nas vezes que chegam, tens de responder.
Como manténs a concentração?
Desfrutando. Neste momento, desfruto do futebol, porque nunca sabes quando será o teu último jogo. Com 37 anos, tens de aproveitar cada época como se fosse a última e, no fim, logo veremos o que sucede.
Nunca te aconteceu começares a pensar no que comprar no supermercado, por exemplo?
Isso não, mas em outras coisas, sim, é normal. Se te apanhas a pensar em outras coisas, então é porque ainda não deste uma resposta no campo. Tens de te tentar focar no que é o jogo.
Como se treina isso?
Estando muito focado nas sessões diárias de treino, não pensando noutras coisas. Há sempre momentos para brincar e falar com os teus companheiros, mas quando o mister exige 100% da tua atenção, tens que estar preparado.
Onde colocarias a concentração na hierarquia de qualidades de um guarda-redes?
No primeiro ou segundo lugar.
E qual seria o top-3?
A concentração, a superação e a tranquilidade. Essas três são as mais necessárias. Tens que estar sempre focado no teu trabalho e conseguir pré-visualizar as jogadas que podem acontecer num jogo. A superação, porque não te podes conformar com o que já conseguiste, tens de querer mais, sempre; se chegaste à Lua então deves querer chegar a Marte, e depois a Júpiter. E a tranquilidade, claro, porque o nervosismo não é bom.
Não mencionaste um aspeto técnico.
Porque para trabalhar o corpo, primeiro, tens que ter estas coisas, ou tê-las bem. Há muita gente que tem um talento descomunal no corpo, mas a cabeça não funciona. Se ela tiver bem mecanizada, o resto podes ir melhorando. É uma união, obviamente. O físico com a cabeça seria o ideal, mas se tiveres uma boa cabeça, aí podes arrastar o teu físico e ir melhorando.
Quando fazes aquela defesa ao Robben, na final do Mundial de 2010, estavas tranquilo?
Sim, sim. Foi uma jogada rápida. Recordo-me que a bola estava no campo adversário e, de repente, um passe deixou-o ali isolado, à minha frente. Não entendes bem como é que aquilo aconteceu tão rápido. E, nesse momento, àquela distância, tentas pensar no que ele vai fazer. Imaginei quatro jogadas que o Robben podia fazer: qual, onde, para que lado, pela direita, pela esquerda, se corre para ali. Tentei prever o que podia fazer. O Robben é muito rápido e sabia que, por um lado, estava a chegar o Puyol, tinha este espaço mais livre e tentei levá-lo para o outro [exemplifica, com as mãos], no caso de me fintar. E aguentei o máximo que pude.
Estudas os avançados adversários antes dos jogos?
Sim, aqui facilitam-nos o acesso a um vídeo antes das partidas, sobre como jogam os avançados e como podem chegar à área: se atacam o primeiro poste num cruzamento, ou se preferem o segundo. Esse tipo de coisas.
Quais foram os mais difíceis de ler que defrontaste em Portugal?
O Soares, por exemplo. Quando jogámos contra o Vitória, lembro-me de pensar: “Este tem coisas que ainda não vi aqui em Portugal.” O Slimani também era muito complicado. Depois, claro, o Jonas, que é veterano e tem muita experiência, também jogou em Espanha. São jogadores mais inteligentes e tens que tentar adivinhar o que eles podem fazer.
Que tipo de avançado gostas menos?
Um que seja mais alto, porque sabes que podem rematar muito de cabeça, ou um que seja canhoto e muito técnico, pois têm sempre algo de especial. Na verdade, qualquer avançado é difícil.
O que há de especial nos canhotos?
Sempre se disse que são menos previsíveis, não? Têm algo de especial que os destros não têm. Acho que são mais difíceis de ler. Eu sou canhoto, talvez seja por isso [ri-se].
Sempre foste um guarda-redes de defesas muito instintivas. Como explicas isso?
Podes ter reflexos, é uma coisa tua e ninguém te vai tirar isso. Depois, entra um pouco o estudo que fazes dos adversários e, claro, o tipo de jogada que é. Se apanhas um avançado a entrar por uma lateral, tens que prever um pouco por onde pode ir a jogada. Tens que ler, ter essa leitura de jogo para imaginar os sítios onde a bola pode entrar, ou de que forma o avançado pode driblar o teu defesa. São muitos jogos, muitas experiências já jogadas, tento guiar-me um pouco por isso.
Ganhas mais instinto à medida que ficas mais velho?
E experiência, veterania e sentido de posicionamento. Vais deixando de precisar tanto de fazer estiradas impossíveis e sabendo melhor onde te deves colocar na baliza.
E foste-te guiando por alguém?
Sempre gostei do Peter Schmeichel. Cresci a vê-lo ganhar o Euro-92, com a Dinamarca, foi uma competição espetacular para ele. A partir daí comecei a segui-lo no Manchester United.
E Gianluigi Buffon?
Também, claro. À medida que fui crescendo, era o Peter Schmeichel. Depois, quando já tinha uns 18 anos, comecei a ver outros guarda-redes que considerava muito bons: Buffon, Van der Sar, Barthez também, conquistou o Mundial e o Europeu; Vítor Baía, Cañizares e Oliver Kahn. Tive a sorte de crescer com uma geração de guarda-redes muito boa. Acho que eu, Buffon e Petr Cech somos os últimos roqueiros, os mais velhos que ainda jogam, pelo menos no panorama europeu. Tanto o Buffon como eu tivemos uma vida muito paralela, as nossas carreiras foram muito iguais. Ele também começou a jogar quando era muito jovem, no Parma, de onde foi para a Juventus, e eu no Real Madrid. Somos dois guarda-redes diferentes. O Gigi é mais alto, eu lido com circunstâncias distintas das dele. Mas, sim, se olharmos para as nossas carreiras, temos de ficar contentes com o que fizemos.
Tu e ele são raros: ganharam muito mais do que perderam.
Não é essa a realidade do futebol. Toda a gente contempla jogadores mediáticos, que vão jogar um Mundial e têm fama. São superestrelas. Mas a realidade do futebol não é essa — é que chegam poucos [ao topo]. Os que chegam têm a sorte de fazer parte de um Barcelona, Real Madrid, FC Porto ou Benfica, que competem por chegar a finais e ganhar campeonatos. Mas, depois, há o mundo real dos jogadores que jogam para não descer de divisão, ou por subir.
Como é que se mantém a fome após conquistar 24 títulos?
Pelo que te disse no início. A nível pessoal, é gratificante dares alegrias a muitos adeptos e, também, porque assim és reconhecido por eles e desfrutam em conjunto. Sentires que eles podem dizer que o FC Porto, o clube que representas, é campeão nacional, é uma sensação é muito bonita.
Imaginas-te como treinador, a teres que transmitir esse tipo de coisas aos teus jogadores?
Seguramente que o faria, mas não sei se o faria bem, ou mal [ri-se]. Porque sou muito exigente, que é uma coisa boa, mas não sei até que ponto. Chateio-me muito rapidamente, não sei. A mudança de jogador para treinador é difícil.
Já pensas nisso?
Vais pensando no que pode acontecer dentro de alguns anos, é a lei da vida. Não me restam 10 anos de futebol, acho que não posso jogar até aos 47. Quando tinha 17 anos achava que ia jogar até aos 27, e depois até aos 32. Agora, com 37, estou mais próximo de retirar-me do que de continuar a jogar. Tenho é que desfrutar do tempo em que ainda vou aqui estar.
Serias treinador de guarda-redes?
Hum, não. Se queres ser treinador, então não deves só treinar os guarda-redes. Tens que lidar e passar o teu conhecimento a todos os jogadores. No meu caso, tive a sorte de, emocionalmente, ter vivido muito e seria bom transmiti-lo a todos os jogadores.
Os jogadores não teriam demasiado respeito por ti?
Provavelmente, mas é como tudo: não se pode estar a olhar para o palmarés. O que fizeste como jogador não te garante nada quando fores treinador. É certo que tens um conhecimento e uma vivência que outros futebolistas não tiveram, mas não sei. Ainda não tenho ideia. Seguramente que vou tirar o curso de treinador, porque o quero fazer, mas não sei se, depois, continuarei ligado ao futebol dessa maneira, ou de outra.
Ficarás mais nervoso no banco do que na baliza?
Vai ser pior, de certeza, porque não estás dentro do campo, estás fora e não sabes bem o que está a passar pela cabeça dos teus jogadores. Acho que ficas mais nervoso.
E imaginarias o que farias diferente em relação a quem estiver na baliza?
Não, cada um tem de ter a sua personalidade. As comparações não são boas, os elogios sim. Ou que as pessoas se recordem de ti. Mas comparar, não, ninguém é igual ao outro, cada um tem de trabalhar com a sua maneira de ser, isso é o mais positivo.
Preferes um elogio ou uma crítica?
Bom, os elogios são sempre melhores, querem dizer que as coisas te correm melhor. Uma crítica pode ser boa ou má. Se for construtiva, depende de quem venha. Se for da tua mãe, ótimo, se vier de um jornalista, não. Portanto, é melhor ser um elogio.