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Rui Vitória

Rui Vitória

Treinador de Futebol

A legitimidade do dinheiro, os Ronaldos que só nascem às vezes e a rua no treino: o ensaio de Rui Vitória sobre o papel dos pais no desporto

O bicampeão nacional pelo Benfica e atual selecionador do Egito escreve acerca da postura dos pais na evolução da cultura desportiva em Portugal, detalhando-o em seis pontos. Entre os quais está o “poder do não” e os perigos de “novos Mourinhos” que no futebol de formação procuram “a vitória a todo o custo” como sinal de sucesso

Rui Vitória

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1. Sobre a importância dos pais

É inegável que o Estado português deve um profundo agradecimento aos pais pela sua contribuição fundamental na prática desportiva dos jovens, consagrada na constituição como um direito. Os pais, por vezes apontados como um dos problemas na formação desportiva em Portugal, e eu também sou pai de três filhos desportistas, são atualmente um parceiro essencial do Estado na promoção do desporto e na prevenção de desestabilizações na governação do país.

São os pais que, diariamente, num quotidiano cada vez mais exigente, conseguem arranjar tempo para levar os filhos aos treinos, acompanhar os jogos aos fins de semana e, muitas vezes, ser os únicos espetadores nos recintos desportivos. Eles também são responsáveis por financiar o material desportivo e contribuir para a sustentabilidade dos clubes locais. Sem a sua presença e apoio, o desporto jovem não existiria como existe hoje, e os problemas sociais e de saúde seriam certamente mais graves entre a nossa juventude.

2. Que tipo de pessoa quero formar no final deste ciclo?

Essa é a pergunta primordial que os clubes e, consequentemente, os pais, devem fazer ao colocar os seus filhos a praticarem desporto, a fim de entenderem o que esperam ganhar com isso. Todos sabemos que jogadores como Cristiano Ronaldo nascem de vez em quando e não com muita frequência. Apenas uma pequena parcela chegará ao topo do desporto de alto rendimento, mas todos se tornarão homens e mulheres do futuro e muitos dele vão ser adeptos de desporto em geral.

Isso quer dizer que existem duas vias claras para o desporto de formação: a formação de jogadores de elite e a formação de futuros cidadãos com uma cultura desportiva melhor. Em ambos os casos, a prática desportiva é de importância elementar. Para os bons, ela fornece um conjunto de ferramentas e requisitos essenciais para o alto rendimento, mas principalmente - e fundamentalmente- para os “outros”, os que não vão atingir o auge, é onde eles convivem pela primeira vez com os recursos que serão extremamente úteis para sobreviverem na sociedade atual e futura. É aqui que eles aprendem e vivenciam conceitos como trabalho em equipa, cooperação, resiliência e responsabilidade.

O desporto é uma ferramenta poderosa para formar pessoas, seja no alto rendimento ou na vida quotidiana. Todos podem beneficiar dessa prática, independentemente de chegarem ou não ao ponto mais alto de uma carreira. Portanto, a pergunta que todos devem fazer é: que tipo de pessoa quero formar no final deste ciclo?

3. Novos tempos, novas mentalidades

O desporto em Portugal sofreu grandes mudanças na última década. Nos meus tempos de criança, era inimaginável que os meus pais pagassem para eu jogar futebol. Uma cidade tinha o seu próprio clube que cada um de nós orgulhosamente representava. Curiosamente, naquela época, os pais não tinham problemas em pagar para que os filhos frequentassem a ginástica ou a natação, por exemplo, mas no futebol, assim como na maioria das modalidades coletivas, jogava-se gratuitamente.

Hoje em dia tudo é diferente e isso traz aspetos positivos e negativos. Quase todas as crianças que praticam desporto, com poucas exceções, pagam uma mensalidade. Embora isso ajude a manter os clubes ativos e os obrigue a terem formadores de qualidade e a melhorar as suas instalações desportivas, também dá aos pais uma grande legitimidade para exigirem, condicionarem e protestarem em relação a tudo, desde o tempo de jogo do seu filho até às reclamações contra árbitros e dirigentes. No entanto, o desporto nem sempre pode atender a essas exigências e, por vezes, os interesses dos clubes e dos pais não se alinham. Isso pode levar a uma outra noção de filiação, tornando bastante singular o ambiente dos espetáculos desportivos de sábado e domingo à tarde e, por sua vez, ter impacto no desenvolvimento das crianças.

Tudo isso faz com que os clubes, e o desporto português em geral, enfrentem novos tempos e mentalidades. É preciso perceber e adotar as estratégias adequadas a esta nova realidade; encontrar um equilíbrio entre a necessidade de financiamento dos clubes e a importância da prática desportiva para as crianças e jovens.

4. Equilíbrio entre diversão e aprendizagem

Para quem já esteve presente numa bancada em dias de jogos ou treinos de crianças, ou num grupo de pais em momentos característicos como o início ou fim de uma partida de futebol, é comum ouvirmos diferentes opiniões. Algumas pessoas defendem que os miúdos devem apenas divertir-se e brincar, pois estão na idade para isso; outras descobrem parecenças com o Barcelona e exultam pelo facto dos filhos treinarem como se fossem jogadores profissionais.

É evidente que para cada faixa etária deve haver conteúdos específicos, mas a partir do instante em que os pais optam por colocar as crianças numa academia ou num clube, onde há um professor ou treinador, regras e limitações de espaço, os conteúdos devem ser desenvolvidos de acordo com essa realidade. A idade para iniciar essa prática mais direcionada é uma outra questão que também merece reflexão. Alguns países começam muito cedo com uma especialização precoce, enquanto outros abordam o desporto de maneira mais generalista e chegam à especialização mais tarde. Eu defendo uma abordagem multidisciplinar que culmina na especialização no final do ciclo.

Para cada escalão, é importante definir conteúdos adequados e aplicá-los com critério e responsabilidade. É claro que as crianças devem brincar, mas o grande desafio é como fazer com que elas, simultaneamente, aprendam. Como, atualmente, não há muitas oportunidades para se “jogar na rua”, é preciso trazer a rua para o treino. Não vejo problema em ter um treino bem organizado com conteúdos próprios para a idade, desde que estejam direcionados aos objetivos pretendidos. Será que um miúdo de sete anos que pratica ginástica ou natação não precisa de brincar também? Muitos pais ficam orgulhosos quando os seus filhos já sabem nadar quatro estilos ou fazem um mortal encarpado. Quando se trata de outras modalidades, especialmente o futebol, parece que é aceitável e quase obrigatório que o treino seja menos rico.

Não estou a defender o extremo oposto, com equipas altamente organizadas e manipuladas em idades jovens. O importante é ter uma definição clara dos conhecimentos práticos a serem adquiridos. Por fim, é importante entender que cada escalão exige conteúdos adequados e que cabe aos clubes, academias, professores e treinadores, definir e aplicar esses conteúdos com critério e responsabilidade.

5. Novos Mourinhos

Fala-se muito da importância e do perfil do treinador de formação em contraste com o do futebol sénior. É fácil chegar a qualquer campo num fim de semana, ou a qualquer clube, e encontrar um treinador que é reconhecido por ser “muito bom” e "ter futuro". Essa avaliação, frequentemente, é baseada nos resultados das equipas que dirige ou na qualidade do jogo apresentada. No entanto, na minha opinião, esses critérios por si só não podem ser usados para avaliar um treinador. O próprio técnico também não deve pensar que apenas porque ganha jogos e coloca as equipas a jogar bem, será sinónimo de sucesso e qualidade futura.

Ser um treinador de alto nível é algo muito difícil de alcançar nos dias de hoje. É importante que clubes, pais e treinadores tenham uma noção clara do que é importante. Em primeiro lugar, é essencial ter a compreensão de que treinar crianças é diferente de treinar adultos. Em segundo lugar, ainda mais relevante, é entender que o primeiro grande foco da formação é formar jogadores antes de formar equipas. Essa abordagem filosófica faz toda a diferença.

Com essa perspetiva, surge a necessidade de escolher as pessoas certas, com determinados requisitos, para treinar em determinadas idades. Os treinadores de formação devem ser altamente valorizados e sentirem-se amplamente motivados para o trabalho que desempenham. Não devem correr o risco de sacrificar o potencial de jogadores talentosos em prol do sucesso imediato. Como líderes e orientadores, têm a responsabilidade de nutrir e desenvolver ao máximo as capacidades dos jovens atletas das nossas equipas, em vez de simplesmente procurarem a vitória a todo o custo.

6. O poder do “não”

O poder do “não” é frequentemente subestimado na sociedade atual. Muitas vezes, as pessoas associam o “não” a algo negativo e indesejado. O “não” tem o poder de criar nos jovens a oportunidade de perderem e lidarem com a frustração da derrota, de não conseguirem atingir um objetivo e aprenderem a encarar, de serem preteridos e ouvirem um “não, não jogas hoje” e, assim, mais à frente, não desistirem com facilidade. É na formação que eles têm a chance de respeitar a autoridade, a idade e aqueles que os lideram; a hipótese de lutarem por um propósito comum e perceberem que, sozinhos, não serão ninguém.

É nesta fase que eles têm a possibilidade de admirar os melhores e aceitar que nem sempre vão ser o centro do mundo. Por isso, deixo-vos o desafio: permitam que os vossos filhos experimentem o fracasso e mostrem-lhes que vocês, enquanto pais, entendem, respeitam e os valorizam. Escutarem um “não” irá beneficiá-los pela vida fora e eles vão lembrar-se disso. Acreditem que lhes estão a fazer um favor e a prestar-lhes um grande serviço para o futuro. E é nesse futuro que o jogador de futebol não será o mais forte, o mais técnico, o mais alto ou mais rápido. Será a pessoa que tomará as melhores decisões dentro e fora do campo, com autodisciplina e muito mais bem preparado para o mundo à sua volta.