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Duarte Gomes

Duarte Gomes

ex-árbitro de futebol

O Benfica-FC Porto teve quase sempre boas decisões. E quando não teve, nunca deixou de ser aplaudido com respeito

Elogiando a prestação do apito de Artur Soares Dias e do ambiente que rodeou o último clássico, Duarte Gomes escreve que jogos deste quilate, entre dois monstros do futebol português, com 60 mil nas bancadas e milhões em casa, não podem reduzir-se apenas a opiniões baseadas em slow motions

Duarte Gomes

TIAGO PETINGA/LUSA

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Na sexta-feira, enquanto acompanhava as incidências do clássico em trabalho, ia recebendo notificações sucessivas com reações ao minuto. Reações que as redes sociais e a imprensa iam emitindo, umas mais informativas, outras mais emotivas.

O poder que o futebol tem é fantástico e digno de ser objeto de estudo que avalie comportamentos humanos. É inacreditável o impacto que a bola tem nas emoções e bem-estar das pessoas.
Quanto às tais reações, tudo mais ou menos normal, face à dimensão desportiva do jogo: os media online serviam notícias detalhadas sobre o que ia acontecendo em campo; a multidão de anónimos ia destilando excitação, frustração, alegria ou raiva (em função do resultado ou das decisões do árbitro); e as habituais figuras com peso relativo na formação de opinião iam fazendo o que fazem tão bem: destilar ódio, gozar, ironizar, incendiar ou apenas opinar de forma “emocionalmente desonesta”.
No meio de tanta azáfama, uma constatação inegável: o FC Porto foi um justo vencedor porque foi sempre melhor, mais equipa e maior no jogo. Qualquer adepto benfiquista que se preze (honra seja feita à elegância de discurso do seu treinador) terá a capacidade de o reconhecer, sem precisar das habituais 72 horas para digerir emoções e pensar com outra lucidez.
É caso para dizer que o resultado final do clássico da Luz traduz, em pleno, aquilo que aconteceu nas quatro linhas: ganhou quem foi superior.
Quando assim é, qualquer eventual erro da equipa de arbitragem (mesmo que relevante) passa a ser relativo, porque não impediu que vencesse quem merecia vencer. Não impediu que o jogo tivesse a justiça que tinha que ter.
Nos tempos que correm, com tanta análise, repetição e gente pronta a disparar, é bom. É muito bom.
Ao contrário do que parecem pensar alguns adeptos mais insatisfeitos, Soares Dias provou ser um árbitro talhado para jogos deste quilate.
Não fez um trabalho perfeito - nenhum outro faria, é garantido - mas a forma como agarrou o jogo, como controlou os jogadores e como impediu excessos, levaram a que fosse respeitado por todos do primeiro ao último minuto.
Isso não se chama apitar. Chama-se arbitrar e não é para todos.
O SL Benfica-FC Porto teve quase sempre boas decisões. E quando não teve, nunca deixou de ser jogado, dirigido e aplaudido com respeito, desportivismo e elevação. Ao contrário de muitos outros clássicos ou dérbis, jogadores, bancos técnicos e até adeptos estiveram quase sempre bem, ajudando a promover um espetáculo que teoricamente tinha tudo para se tornar num incêndio de grandes dimensões.
O mérito maior foi de todos, mas também do portuense e da sua equipa.
Era importante que as pessoas que gostam de futebol conseguissem ganhar o hábito saudável de olhar para o trabalho dos árbitros de forma mais ampla e global, sem valorizar pequenas tecnicidades, lances de nim ou toques que podem ter análise diferente.
A tecnologia, que tem inúmeras vantagens, tem hoje também o problema de expor tudo ao mais ínfimo detalhe, dando a sensação que qualquer contacto considerado como aceitável em campo possa ser tido como ilegal nas imagens. Este é porventura o pior dos seus danos colaterais e mesmo o facto de merecer análise técnica detalhada por parte de quem, como eu, tem por missão profissional analisar lances, não pode levar a que cá fora se perca o contacto com a realidade. E a realidade é que o jogo tem dinâmica, é veloz e permite contactos.
Analisar, sim, mas avaliar depois com olhos de ver. Com bom senso e tolerância. O aluno que falha meia dúzia de trabalhos de casa e tem uma ou duas negativas também passa de ano e com boas notas.
Jogos deste quilate, entre dois monstros do futebol português, com 60 mil nas bancadas e milhões em casa, não podem reduzir-se apenas a opiniões baseadas em slow motions. Deixem os analistas analisar o que têm para analisar, mas não lhes deem demasiada importância: tenham a capacidade de enquadrar a parte no todo.
O momento no contexto.
Teoricamente pode haver uma resposta, mas, na prática, é possível compreender outra.
Claro que se o erro for grosseiro, reiterado ou tiver impacto direto no resultado, percebe-se a crítica e insatisfação. Percebe-se a censura. Mas na Luz não foi assim e é por isso que, no final do jogo, ninguém falou de arbitragem. Já viram como isso é raro por cá?
Soares Dias já provou vezes sem conta que sabe dirigir jogos com qualidade e consistência. É tempo de permitir que outros árbitros possam ter a possibilidade de tentar o mesmo (quando o timing for ideal para os lançar).
Não há outra forma de lhes dar traquejo e experiência competitiva.
A arbitragem portuguesa tem que crescer em qualidade e isso pressupõe risco e aposta. Pressupõe também que cá fora todos tenham a capacidade de olhar para o jogo de outra forma.
Vamos a isso?