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Duarte Gomes

Duarte Gomes

ex-árbitro de futebol

Se queres ver o caráter das pessoas, dá-lhes poder e dinheiro. Em Portugal, o que está mal não parece ter fim à vista

O desporto português deveria cuidar melhor de si e, no seu texto semanal, Duarte Gomes destaca, contudo, uma honrosa exceção: a Autoridade para a Prevenção e Combate à Violência no Desporto. O que tem conseguido em tão pouco tempo devia fazer corar de vergonha o que tantos outros não conseguiram em demasiado

Duarte Gomes

Chris Brunskill/Fantasista/Getty

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O desporto nunca pode nem deve tolerar atos que violem sistematicamente o seu espírito e valores originais. Há muito que a prática desportiva deixou de ser apenas uma forma de estarmos mais saudáveis e felizes. Ao nível profissional, de topo, ela é hoje um negócio rentável, composto por atletas de excelência, técnicos qualificados e gestores competentes.

Mas esse avanço não deve nunca ferir a sua matriz fundadora. O respeito, a educação, o fair-play, a empatia e a tolerância têm que ser sempre o ponto de partida e de chegada. O centro de tudo. Infelizmente, o dia a dia continua a mostrar-nos que as coisas nem sempre são assim.

Por cada gesto de desportivismo, surgem logo duas ou três ameaças, cabeçadas ou pontapés. Tudo isto em pouco tempo. Às vezes, no mesmo instante até. É de uma bipolaridade sem paralelo.

Parte do problema é sociologicamente fácil de perceber: são pessoas que lá estão. E essas serão sempre o reflexo da sua educação, da sua formação, da personalidade que desenvolveram e do contexto em que se encontram. No ringue ou no pavilhão, no estádio ou na pista, elas são tudo: praticante e treinador, dirigente e adepto.

E se a esse contexto sociocultural (agora também económico) juntarmos a pressão competitiva, a luta por objetivos, a rivalidade e a vontade de afirmação, mais de metade de algumas condutas ficam logo ‘explicadas’.

Mesmo assim, tem que haver limites. Tem que haver uma linha que separe entusiasmo de excesso, emoção de irracionalidade. E a verdade é que essa nem sempre está bem definida, sobretudo em atividades capazes de mexer com muitas outras variáveis.

Como dizia alguém: “Se queres ver o caráter das pessoas, dá-lhes poder e dinheiro”. Vejamos o exemplo do futebol, desporto-rei por cá e no mundo.

Praticamente todas as jornadas há relatos de práticas positivas, mas também de incidentes que nunca podem ter lugar na modalidade. Enquanto se mostra o ‘cartão branco’ aqui, leva-se o atleta para o hospital ali; enquanto se elogia o fair-play além, tenta-se perceber a loucura acolá.

O que está bem, bem está. É para continuar através de campanhas de sensibilização, iniciativas didáticas e investimento em ações que apelem aos melhores exemplos.

Mas o que está mal, não parece ter fim à vista. Se é verdade que culturalmente nada se muda de um dia para outro (é preciso estratégia, compromisso e tempo), já em termos sancionatórios há muito a ser feito e, aí, o exemplo que Portugal nos dá roça a mediocridade.

Nesta matéria, a minha opinião é clara: tal como a civil, a justiça desportiva é má, porque é lenta, burocratizada e muitas vezes inconsequente.

A nossa Constituição da República Portuguesa (CRP), as várias leis que lhe seguiram e a regulamentação desportiva que foi sendo criada continuam muito aquém do que deviam ser. Continuam a ser demasiado simpáticas para quem se porta mal.

Os conselhos de disciplina estão algemados nas suas atuações e sem grande margem para fazer mais e melhor; os infratores continuam a usar todos os expedientes que podem para adiar ou inverter o rumo da justiça; e os recursos sucessivos, as suspensões provisórias, as anulações definitivas, as idas e regressos de processos levam ao ridículo de termos, por exemplo, decisões relativas a épocas que já acabaram ou jogadores punidos depois de terem terminado a carreira. Não é anedota, é mesmo verdade.

Não pode haver uma única pessoa decente que, sem se rir, consiga dizer que tudo isto está certo e que é suposto ser assim.

Não obstante esforços recentes no sentido de atenuar o estado das coisas, ainda há muito caminho a percorrer. Sabem porquê? Porque se multiplicam os casos de agressões e levantamentos de rancho, de ameaças credíveis e coações inaceitáveis, de táticas pouco claras e estratégias cinzentas. E isso só acontece porque alguém permite. Porque alguém está a falhar.

Há uma honrosa exceção que merece aqui o meu reconhecimento. Chama-se Autoridade para a Prevenção e Combate à Violência no Desporto (APCVD). O que este serviço do Estado tem conseguido em tão pouco tempo devia fazer corar de vergonha o que tantos outros não conseguiram em demasiado.

Se têm dúvidas, passem os olhos nas notícias ou viajem até ao site oficial da APCVD. Desde continuadas ações de sensibilização (trabalho fundamental) à punição adequada de quem se porta mal, dentro do limite daquelas que são as suas limitadas atribuições legais. Está lá tudo. Ao todo, são milhares de contraordenações e coimas, interdições de acesso a recintos desportivos, envios de notícias de crime para o Ministério Público e muito mais.

Mas não é tudo. A APCVD, que não me mandatou para este elogio, é o exemplo perfeito de um órgão que consegue associar transparência de processos (está tudo lá, às claras, passo a passo, para quem quiser ler e consultar) a celeridade, atuando com rapidez muito rara nestas bandas.

O equilíbrio que consegue entre prevenção e sanção é perfeito. Uma autêntica gota de água num vastíssimo oceano de vazio.

O desporto português tem mesmo que cuidar melhor de si. É suposto ser um espaço de festa e entretenimento, de bem-estar pessoal e familiar, com segurança, emoção e alegria, sem violência, sem intolerância e sem conflitos.

Quando não é apenas isso (e tantas vezes é o seu contrário), algo tem que ser feito. Não sejamos ligeiros na forma de ver tudo isto. A violência é sempre má, mas no desporto é cancro maligno dentro de um corpo saudável. Os sinais repetem-se e só não vê quem não quer.