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Duarte Gomes

Duarte Gomes

ex-árbitro de futebol

A arbitragem portuguesa tem obrigação de fazer mais e melhor. Mas não há decisões premeditadas, maliciosas ou deliberadamente erradas

Haja mais empatia e tolerância. Haja mais respeito e educação. É preciso não tornar este jogo numa guerra, onde hoje a destruição de caráter parece ser tão normal como beber um café ou comprar um jornal, escreve Duarte Gomes

Duarte Gomes

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Nos dias de hoje, a qualidade das arbitragens é avaliada em função de uma única variável: o processo de decisão. Para efeitos exteriores, pouco importa se um árbitro fala muito ou pouco, se é mais ou menos simpático, se é mais ou menos atlético.

O que importa é se toma boas ou más decisões. Se erra ou acerta. Para todos os efeitos, essa será sempre a única herança que ele deixará no imaginário das equipas e na memória dos adeptos. Pensando de forma fria, percebe-se que assim seja. Tal como em qualquer outra atividade desportiva, também o futebol tem um objetivo muito claro: ganhar.
E para ganhar é preciso marcar mais do que o adversário, cumprindo as regras. A vitória que resulte diretamente de um erro de análise do juiz ou de batota feita pela equipa contrária é injusta e mentirosa. É compreensível o incómodo, a frustração e a revolta momentânea de quem perde nessas condições.
Mas é nesses momentos que é importante ver para lá da espuma e tentar compreender tudo isto de forma superior, com algum equilíbrio e clarividência.
Pensem comigo: este é um jogo jogado, arbitrado e treinado por pessoas. Muitas pessoas. Vinte e duas dentro de campo, muitas outras nos bancos técnicos. Ali há contacto físico permanente. Há intensidade, entrega, agressividade, dureza e disputas de bola ao limite. Há muita velocidade, incerteza, dúvida e, tantas vezes também, malandrice, ilusão e nervos. Há insatisfação, irritação e excessos.
Acreditem quando vos digo... não é fácil ser árbitro numa realidade assim.
Como se isso não bastasse, a própria colocação em campo (ao nível dos jogadores) é tantas vezes suficiente para induzir ao erro de análise. Há ainda inúmeros fatores de pressão externa (cânticos e assobios, flashes e holofotes, gritos e protestos), o suor que escorre pela cara e que retira concentração, os jogadores que ‘chateiam’ a toda a hora, os bancos que saltam e esbracejam por tudo e por nada, as quedas aparatosas e teatralizadas, as costas, pernas e cabeças que bloqueiam a visão, enfim, tudo interfere, tudo afeta, tudo tolda a decisão.
Claro que a existência da tecnologia na I Liga aumentou a intolerância, porque de facto os árbitros têm hoje mais meios e condições para decidir, mas até aí há lances cujo veredito final será quase beliscado. Refiro-me àqueles que “se ele marca para a esquerda, leva com os da direita. Se ele marca para a direita, leva com os da esquerda.” Nada a fazer.
Não pense o caro leitor que este é um discurso de desculpabilização ou de desresponsabilização. Nada disso. A arbitragem portuguesa tem obrigação de fazer mais e melhor e isso é indiscutível.
O objetivo aqui é, mais uma vez, humanizar o papel de quem arbitra e fazê-lo entender que, por muito que a competência seja posta em causa, não há decisões premeditadas, maliciosas ou deliberadamente erradas. Não há mesmo.
A arbitragem em Portugal (como em tantas outras ligas) é fortemente pressionada por sociedades desportivas, imprensa e opinião pública. Muitas vezes, é até coagida e condicionada sorrateiramente, nas mais variadas formas. Sejamos sinceros, é mesmo assim.
Há árbitros que, pela sua personalidade, formação e caráter, estão preparados para lidar com essas pressões. Há outros - menos experientes, mais vulneráveis ou imaturos - que não.
O que a sua estrutura deve continuar a fazer é protegê-los ao máximo. É importante que eles se sintam defendidos e respaldados de qualquer tipo de tentativa, mais ou menos camuflada, que tente influenciar os seus desempenhos.
É também importante que continuem a trabalhar com qualidade e equidistância, para que em campo sintam-se plenos, confiantes e livres. No máximo das suas faculdades técnicas, mentais e emocionais.
Se pensarem bem, a ‘equipa’ dos árbitros não é muito diferente da ‘equipa’ dos jogadores: uns têm mais feeling do que outros, uns são mais talentosos do que outros, uns têm mais arcaboiço do que outros. É por isso que uns chegam mais longe do que outros. É assim com eles, com os treinadores e até com os dirigentes. É assim com os jornalistas e é assim com todas as outras pessoas, nas respetivas áreas de atividade.
Haja mais empatia e tolerância. Haja mais respeito e educação. É preciso não tornar este jogo numa guerra, onde hoje a destruição de caráter parece ser tão normal como beber um café ou comprar um jornal.
Os erros devem ser apontados, as falhas censuradas e a responsabilidade exigida. A partir daí é relativizar o peso que tudo isto tem nas nossas vidas.
(Texto escrito minutos depois de ver a atualização do número de mortes na Turquia e Síria - quase 18.000 - e de tomar conhecimento que o Tomás Batazu, de apenas 11 anos, não resistiu à mais traiçoeira das doenças).
Há vida para lá da bola e essa só se vive uma vez. Eu penso sempre nisso. E vocês?