Jogar, arbitrar, treinar e dirigir será sempre uma escolha. Saber estar no futebol com dignidade e elevação é uma obrigação moral
Quando já não falta muito para o início da nova época desportiva, o antigo árbitro internacional Duarte Gomes lembra que as maiores obrigações de todos os atores são aquelas que estão umbilicalmente ligadas à coluna vertebral: "Errar mas com o coração, nunca com a cabeça"
11.07.2022 às 14h30
Gualter Fatia/Getty
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Não falta muito para o pontapé de saída da nova época desportiva.
Tal como em anos anteriores, a expectativa é grande, pelo menos para quem gosta do jogo. Sociedades desportivas, adeptos, imprensa, toda a gente está à espera que a bola comece a rolar. A sede é muita e isso é bom. Há talento novo para conhecer, golos bonitos para ver e jogadas perfeitas para aplaudir.
O futebol é exatamente isto: paixão, pura paixão. Não há nada que se equipare a ele. Nada que agarre novos e velhos, miúdos e graúdos assim, desta maneira tão única e portentosa.
Mas essa força tremenda acarreta responsabilidades que, na verdade, só assume quem quer, quem escolheu estar ligado a este grandioso espetáculo.
Convém não nos esquecermos que nunca houve uma única pessoa obrigada a ser presidente de um clube, acionista de uma SAD ou treinador de uma equipa. Nunca ninguém foi forçado a ser guarda-redes, ponta de lança ou árbitro. Só quem quis. Só quem se candidatou ou tentou até conseguir. Até percorrer esse caminho.
Parece-me por isso importante que todas essas pessoas (e são muitas, felizmente) nunca descurem aquela que é a mais importante de todas as suas obrigações: as que estão umbilicalmente ligadas à coluna vertebral.
Se jogar, arbitrar, treinar e dirigir é e será sempre uma escolha, saber estar no futebol profissional com dignidade e elevação é uma obrigação moral.
Tudo o que fazemos obedece sempre a duas dimensões distintas: a uma que pressupõe competência operacional (como em tudo na vida, uns serão tecnicamente melhores do que outros) e outra, que exige dimensão humana (onde todos devem ser absolutamente insuperáveis).
Isso é ainda mais verdade no desporto, sobretudo quando o desporto se chama futebol.
Ser qualificado na profissão e desviado no caráter não tem valor nenhum. É a integridade moral de uma pessoa que oferece dignidade ao que ela faz e conquista. Tudo o que conseguimos com talento mas sem ética ou caráter estará sempre ferido de morte, porque o verdadeiro valor das coisas não está no resultado, mas na forma como chegamos até ele.
E nós, todos nós - lá dentro e cá fora - temos que ser vigilantes e exigentes, não permitindo que uma atividade tão poderosa e contagiante seja menos do que um lugar íntegro, com gente honesta e decente.
O jogo é muito duro e competitivo e, não raras vezes, testa a carcaça emocional de toda a gente. Obviamente que testa. Mas não é a esses devaneios que me refiro. Sim. Todos têm direito a deslizes, a momentos infelizes, a excessos pontuais. Todas as boas pessoas fazem ou dizem coisas que nem sempre as define.
O que as pessoas boas nunca fazem é agir com malícia deliberada, repetida, direcionada. As pessoas boas são ambiciosas, mas não são gananciosas. Têm alma. Não recorrem conscientemente a subterfúgios rasteiros. Não consideram a hipótese de ganhar à margem das regras.
Fica, de novo, o apelo, porque o futebol já nos mostrou toda a sua bipolaridade. É capaz de oferecer o melhor e o pior.
Todos temos memória de momentos inesquecíveis de tão mágicos e inenarráveis de tão maus.
Errar sim, pois claro... mas com o coração, nunca com a cabeça.
O único sítio onde se ganham jogos é dentro de campo. Sempre foi e sempre será. Tem sempre que ser.
Quem continua a achar que pode vencer fora das quatro linhas está definitivamente do lado errado da barricada. E quem está do lado errado da barricada, está a mais.
Estará sempre a mais.
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