Do bom e do mau: o que nos separa dos tubarões é a nossa insistência inacreditável em sermos sardinhas
O ex-árbitro Duarte Gomes pensou que algo iria mudar no futebol, depois das turbulências com a pandemia de covid-19, mas, afinal, voltou quase tudo igual. E agora?
10.06.2020 às 16h58

Gualter Fatia
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Não é segredo para ninguém que os últimos meses foram difíceis.
Mudámos rotinas, perdemos parte da nossa liberdade, abdicámos do que tínhamos como certo. A segurança habitual deu lugar à incerteza e à ansiedade. Fomos surpreendidos por uma tempestade invisível, que nos impôs a reclusão e nos lembrou quão frágeis somos.
Teve as suas vantagens, este puxão de orelhas. Ajudou-nos a repensar a vida e a entender o que faz sentido.
A este propósito, Paul Romer (Prémio Nobel da Economia e ex-Presidente do Banco Mundial) afirmou que não pode haver recuperação da economia se não existirem pessoas saudáveis, confiantes... e vivas.
Tudo dito quanto a prioridades. Quanto à ordem que as coisas devem ter na vida.
Tenho que vos confessar que essas e outras palavras, aliadas ao tempo que tive para refletir, criaram-me falsas expetativas. Exponenciaram-me o romantismo. Desta vez, pensei mesmo que as coisas passariam a ser diferentes.
Claro que foi sol de pouca dura.
Ainda a bola não tinha rolado e já a novela estava de regresso. A mesma de sempre, com os mesmos dramas e atores, com a mesma música, com a trama habitual.

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Tenho um respeito tremendo por todos aqueles que estão no futebol. Sei quanto a indústria lhes deve e conheço a sua mais-valia pessoal e profissional, mas confesso que não percebo o que leva algumas pessoas inteligentes, competentes e experientes a insistirem num discurso e estratégia que, claramente, nada acrescentam ao produto. Não percebo mesmo.
O que é que ganham com isso? O que é que o futebol ganha com isso? O que é que ganham as operadoras, os patrocinadores e os adeptos? O que ganham todos aqueles que amam e sustentam esta máquina fantástica? Não ganham nada. Rigorosamente nada.
Quem é que convenceu alguns dirigentes que o tipo de discurso bélico, ofensivo, corrosivo, insinuante e acusatório era o melhor para os seus objetivos? Quem é que lhes pôs na cabeça a ideia de que o futebol faz mais sentido quando é jogado fora do tabuleiro? Quem é que as convenceu que o jogo deve ser protagonizado por elas e não por quem dá o litro no relvado? Por quem tem talento e qualidade para treinar e jogar? Quem foi?
Terão sido enganadas ou, pior, andam todo este tempo a enganar-se?
Que sede de poder é essa, o que é que está por detrás do raciocínio de quem acha que a "morte desportiva" de um é o caminho para o sucesso de outro? Quem é que lhes vendeu a ideia de que o vencedor é aquele que primeiro que derrubar o concorrente direto?
Será que ainda não perceberam que, cá fora, estamos todos cansados? Exaustos? Fartos disto tudo?
É verdade que a postura pode até hipnotizar meia dúzia de idólatras, de coração vencido e visão toldada, mas até esses um dia acordarão para a vida e dirão: "Chega"! Porque, na verdade, chega.

Gualter Fatia
O futebol português está cheio de pessoas experientes e qualificadas. Pessoas que, noutras circunstâncias, já deram provas de maturidade, sensibilidade e astúcia.
Porque não usam todas essas valências para fazer o que está certo e da forma certa? Porque não fazem dessas competências o seu modus operandi? Porque não aproveitam esse saber para melhorar o espetáculo cá dentro e lá fora? Porque não usam esse talento e capacidade para construirem algo positivo, forte e imparável?
Será que elas têm noção do potencial que temos por cá? Dos talentos que temos em campo? Será que já não é altura de pensar mais, melhor e diferente?
Todos fazemos más opções, todos tomamos más decisões, todos dizemos o que não queremos, aqui e ali. Faz parte. Mas passar anos a fio a alimentar discussões, discórdia e divisões não é normal. Não é bonito. Não é digno.
Desculpem, não é.
Façam-nos o favor de se deixarem disso. Pode ser? Entreguem as vossas energias ao que é mais importante.
Os jogos ganham-se em campo. Só em campo. O melhor vence sempre, mesmo que, pelo meio, perca meia dúzia de vezes. É e sempre foi assim.
À imprensa o que é da imprensa. Aos tribunais o que é dos tribunais. E ao futebol o que apenas é só do futebol.
O que nos separa dos tubarões é a nossa insistência inacreditável em sermos sardinhas.
Vamos lá mudar isso, se faz favor. Pode ser? Daqui a dez anos ninguém nos pára.