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Opinião

Uma Taça sem talento

Faz sentido haver uma 'final four' numa competição que pouco tem de interessante? As assistências das meias-finais e finais da Taça da Liga, desde 2009/10 até hoje, dizem que não, por muito que o presidente da Liga possa crer no contrário

Mariana Cabral

O Vitória de Setúbal venceu a Oliveirense, por 2-0, e passou à final da Taça CTT 2018

HUGO DELGADO/LUSA

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Num lampejo de modernidade, a Liga Portuguesa decidiu um dia destes apelidar o nosso futebol de #futebolcomtalento, assim como de #campeãodeinverno o vencedor da Taça da Liga. Caso o estimado leitor não tenha por hábito consultar as redes sociais, cabe-me a mim informá-lo que parece que, hoje em dia, quase tudo o que tiver um '#' a precedê-lo (que é como quem diz uma 'hashtag') torna-se imediatamente muito mais moderno.

Ora, depois da entrada de Pedro Proença na Liga, em 2015, é inegável que houve uma tentativa de modernização do organismo que rege parte do nosso futebol, pelo menos no que diz respeito à imagem das competições - assim como uma estabilização louvável nas contas, com a Liga a apresentar no exercício relativo à época passada um lucro de €2,5 milhões.

O problema é que nem tudo o que parece é e a Liga frequentemente quer fazer parecer algo que não é. Como - chegando onde estávamos a ir - a Taça CTT, que, no seguimento desta modernidade toda, poderia ter o seguinte 'gif' a ilustrá-la:

É mais ou menos como esta história de Rafael Lago, escrita n' "O Velho da Montanha e outras histórias", que me caiu no ecrã, hélas, através das modernas redes sociais:

- Alô, pelamordedeus, eu preciso de ajuda!

- Você ligou para o Corpo de Bombeiros, boa noite.

- Tá pegando fogo em tudo aqui e...

- Para incêndios, tecle 1. Para ambulância, tecle 2...

- Ca*%#&"! Tecle o quê?

- ... para falar com um de nossos atendentes.

- Me#&$... Teclar 1, eu acho...

- Líru, líru, líru, lí-ru-ru, lili luri... Corpo de Bombeiros, Elisete falando. Em que posso ajudá-lo?

- Minha casa tá pegando fogo! O endereço é...

- Pois não, senhor. Qual é a sua seguradora?

- Seguradora?

- Sim, senhor. Seguradora. O senhor tem um seguro contra incêndio?

- Não, mas...

- Vou precisar do número do seu cartão de crédito para estar registrando sua ocorrência, senhor.

- O quê? Cartão de crédito? Que absurdo! Minha casa tá pegando fogo, porra!

- Senhor, o senhor está sendo rude. Vou estar transferindo o senhor para nossa outra célula de atendimento. Aguarde um instante.

Após grandes diligências, a chamada é transferida mais algumas vezes, daqui para ali e dali para aqui, até a história acabar com a seguinte fala desesperada do homem que tem a casa a arder:

- Minha casa... Putz, esquece.

Isto, hoje em dia, é a Taça CTT, vulgo Taça da Liga (ou 'Taça dos Correios', 'Taça da Cerveja', 'Taça Lucílio' - e por aí fora, desde o tempo que foi perdendo credibilidade). Há toda uma organização em volta da prova, há uma Liga TV, há uma 'final four', há um programa de atividades, há isto, há aquilo, há aqueloutro.

Como vai apregoando diariamente Proença, que garante que esta prova é "uma festa para a família" e para os adeptos: “Estamos a viver um momento extraordinário e único no panorama do futebol português, com sete dias repletos de atividades”.

Pedro Proença, presidente da Liga

Pedro Proença, presidente da Liga

HUGO DELGADO/LUSA

É inegável que Braga, local escolhido para a 'final four' desta época, tem acolhido uma série de atividades ao longo da semana - podemos comprová-lo no programa disponibilizado pela Liga (AQUI).

O que é questionável aqui é o seguinte: para que é que um adepto de futebol quer ver Pedro Proença, presidente da Liga, e Ricardo Rio, presidente da Câmara de Braga, a jogar Playstation; para que é que um adepto de futebol quer ver um/dois/três concertos de Herman José, Fernando Alvim e Anselmo Ralph; para que é que um adepto de futebol quer ver empresários (?) a jogar à bola; para que é que um adepto de futebol quer ver Youtubers a fazer umas coisas?

Ou, pondo a questão noutros termos: onde está o futebol? Com talento, já agora. Resposta: noutro sítio que não a 'final four' de uma Taça que nem sequer dá acesso à Europa (em Inglaterra, por exemplo, o vencedor da Taça da Liga entra na 2ª ronda de qualificação da Liga Europa).

A ideia da 'final four', em teoria, faz algum sentido, mas, como costuma parafrasear Jorge Jesus, a prática é o critério da verdade. E a verdade é que, num dia útil, às 20h45, a dezenas ou centenas de quilómetros de casa, não há muita gente a querer ir ao futebol. Nem quando os intervenientes são Oliveirense (que fez um belíssimo jogo) e Vitória de Setúbal - terça-feira, o Municipal de Braga tinha 1600 adeptos nas bancadas - nem quando são Sporting e FC Porto - o mesmo estádio, que tem capacidade para 30286 pessoas, teve apenas 26536 cadeiras ocupadas, mesmo com bilhetes a preços simpáticos, entre os €5 e os €15.

E, mesmo assim, estes números já são bem melhores do que os da 'final four' da época passada, disputada no Estádio do Algarve. As meias-finais entre Vitória de Setúbal e Sporting de Braga, e Benfica e Moreirense, a meio da semana, também às 20h45, tiveram a aterradora soma de 13062 adeptos nas bancadas, enquanto a final entre Moreirense e Braga teve... 6713 pessoas.

Se, em Portugal, estes números às vezes até já são vistos como "normais" em determinados estádios, a verdade é que, neste caso, têm mais a ver com o dia e com o local. Porque, em todas as épocas anteriores ao formato 'final four', houve sempre bem mais gente nos estádios, nas meias-finais. A diferença? Eram disputadas em casa de um dos semi-finalistas, o que, obviamente, aproxima os adeptos locais do jogo em questão. Em 2010/11 e 2009/10, foi até superada a barreira dos 50 mil adeptos, como pode conferir na infografia abaixo.

Infografia de Sofia Miguel Rosa

Nas épocas anteriores a 2015/16, inclusive, apenas a final era 'deslocalizada', disputada num estádio designado previamente pela Liga, no fim de semana, a horas relativamente decentes (19h45) que, ainda assim, podiam ser bem mais simpáticas para os adeptos que têm de regressar a casa e trabalhar no dia seguinte após o jogo (voltando a Inglaterra: a final da Taça da Liga é disputada em Wembley, ao fim de semana, à tarde - e quem diz 'tarde' diz 16h30 e não 19h45).

Porque, afinal, não é o adepto que mais interessa nisto tudo? E o que diz o adepto, por exemplo, do Portimonense, quando vê que a Liga confirmou que vai continuar a fazer a 'final four' da prova em Braga, até 2020?

E se a 'final four' de 2018/19 tiver Portimonense, Vitória de Setúbal, Cova de Piedade e Belenenses? Faz sentido que seja em Braga? Um adepto de Portimão tira férias a semana toda para ficar em Braga para meias-finais e final? Ou vai à meia-final, volta para casa e depois vai outra vez de viagem? E há dinheiro para isto tudo? Por que razão não se escolhe um local e um horário que facilite a presença dos adeptos, especialmente os das equipas ditas 'pequenas'?

"A Liga avançou com este modelo muito a pensar na ligação com o adepto e Braga soube entender e interpretar isso. É com muita satisfação que estaremos aqui até 2020, pelo espírito, vontade e compromisso demonstrados. Fizemos uma grande festa desta competição e que a próxima edição seja ainda mais inovadora", disse Pedro Proença.

Com certeza a intenção da Liga será a melhor - a ideia da conferência de imprensa conjunta de treinadores, por exemplo, é ótima -, tal como foram as promessas de aproximar o futebol, em geral, dos adeptos, mas depois, na prática, o que se viu ao longo desta época foi um atropelo dos próprios regulamentos da organização, no que à calendarização das jornadas diz respeito, não tendo sido cumprida, por vezes, a antecedência necessária na divulgação das mesmas.

E quem se lixou, claro está, foi o adepto. De futebol. Porque o que mais interessa no futebol é, pasme-se, o futebol, e não as atividades que gravitam à volta dele. Por favor, protejam o nosso talento.