Pepa (Tondela) tem 37 anos e é o treinador mais jovem da 1ª Liga portuguesa. Luís Freire (Estoril) tem 32 anos e era o treinador mais jovem da 2ª Liga portuguesa. "Era", porque a partir deste sábado o mais jovem passa a ser outro: Hugo Falcão.
O jovem de 27 anos, natural de Almada, é o treinador mais novo das Ligas profissionais de futebol, depois de ter assumido, esta semana, a liderança do Cova da Piedade, onde estava como adjunto de Eurico Gomes, que foi entretanto dispensado pela SAD, depois de uma vitória, um empate e duas derrotas na 2ª Liga.
Na sua segunda experiência como treinador de seniores - esteve na época passada no Fabril, no campeonato distrital -, Hugo Falcão diz que a idade não é um assunto, mas que gostaria de chegar à 1ª Liga antes dos 30 anos. Para já, está apenas focado no Cova da Piedade, o clube onde se formou, e parou tudo o resto - até o doutoramento que estava a tirar.
Sabes quem é o Nagelsmann?
[fica a pensar].
O treinador do Hoffenheim.
Ah, ok, sim, sim.
Estreou-se na Bundesliga com 29 anos e esta semana passou a ser o treinador mais novo na Liga dos Campeões, com 31 anos.
O do Schalke [Domenico Tedesco] também penso que tem 33, salvo erro.
E tu entras na 2ª Liga portuguesa com 27 anos. Quem é o Hugo Falcão?
Sim [risos]. O Hugo Falcão, antes de mais, é uma pessoa que abdicou de muita coisa. Se calhar não tive um percurso fora das aulas tão livre como alguns colegas meus. Fui sempre muito dedicado ao que podia controlar e o que podia controlar eram as minhas notas, o que eu aprendia e o que podia retirar dali para a minha atividade de futuro, que era ser treinador de futebol. Acabei por ter um bom crescimento dentro de uma cidade e de um clube com que sempre me identifiquei. Foi aqui que comecei a estagiar como adjunto e passados três meses estava como principal em futebol 7 e as coisas acabaram por crescer. Alguém se lembrou de mim nestes corredores e a partir daí as coisas foram crescendo e a minha capacidade de entrega em cada projeto se calhar também fez um pouco a diferença. Nós vamos crescendo muito com o passar dos anos e não é por termos mais ou menos formação. A formação é importante, mas delineares um caminho para ti e seres fiel a ele é o mais importante. Sempre fui muito fiel ao que queria e às pessoas que tinha à minha volta.
Hugo Falcão iniciou a carreira de treinador em 2011/2012, precisamente no Cova da Piedade, como estagiário
Nuno Botelho
Mas imaginavas estar na 2ª Liga aos 27 anos?
Não, não. E não era algo que fosse uma ânsia, nem tinha já essa ambição. Acho que cada coisa que nós conquistamos na vida tem um tempo certo. Os momentos surgem mas nunca sabes bem qual é o momento certo.
O Eurico Gomes sai da equipa e como é que surge o momento? Aceitaste imediatamente?
Neste clube sempre tive esta forma de estar: nunca serei um problema, serei sempre parte da solução. Se as pessoas que estão à frente da SAD pensam que sou a solução e me dão confiança, aí sinto-me em condições para desempenhar o meu papel. Quando vir que as pessoas não se sentem confortáveis ou não me dão confiança total, também sei qual é o meu lugar. O convite da SAD, inicialmente, surgiu no início da época, para que eu fosse um dos treinadores adjuntos da equipa técnica. Aceitei, porque já tinha trabalhado antes no clube e fui-me embora quando estávamos na 2ª Liga, por uma questão ética. Estava há cinco anos com um conjunto de pessoas e acabámos por levar, todos juntos, o clube até à 2ª Liga, desde a distrital...
Com o Sérgio Boris.
Exatamente. Fui adjunto do Sérgio durante cinco anos e na altura que ele saiu a SAD pediu-me para continuar, mas por uma questão ética disse que não me sentia bem em fazer isso, porque as pessoas que naquela altura tinham acreditado em mim estavam a sair, por isso o meu ciclo tinha acabado. No ano passado, tive a minha primeira oportunidade como treinador principal sénior, no Fabril, na distrital, e este ano as pessoas aqui da SAD contactaram-me e perguntaram se estava interessado em voltar ao meu clube, porque acima de tudo este é o meu clube. Foi o clube onde cresci como jogador e como treinador, por isso disse que sim. Fazia sentido para mim voltar e não tinha problema nenhum voltar a ser adjunto, até para aquilo que era a minha formação enquanto treinador - é bom estar em contextos competitivos mais elevados para depois termos acesso a níveis superiores de formação.
Não é demasiado complicado aceitar um cargo de adjunto numa equipa técnica em que não se conhece o treinador principal?
Sim, é um desafio. Mas, para mim, o que pesou mais foi o regresso ao meu clube. As pessoas aqui sempre me trataram bem e quando saí pediram-me para ficar e não fiquei, por isso senti que estava quase em dívida. Se foi difícil ao início? Foi, porque nós acabamos por ter a nossa ideia, mas quando existe um líder temos de respeitá-lo e defendê-lo. Cada treinador tem a sua forma de trabalhar, não interessa se é pior ou melhor, são ideias e são para respeitar.
Qual é a tua ideia?
A minha ideia é muito baseada em gerir o comportamento de cada indivíduo que pertence ao plantel. O que se procura neste momento é tornar o jogador mais confiante. Quando existe uma mudança de treinador num clube temos de saber identificar o que é que aquele plantel precisa naquele momento. Por vezes, o treinador deve subordinar-se ao que existe e não somente à sua ideia. Ou seja, eu tenho uma ideia que a médio/longo prazo poderá fazer sentido neste clube. A curto prazo e dentro daquilo que existe, dos recursos e ativos que temos, teremos se calhar de abordar o jogo de uma forma ligeiramente diferente. Ou seja, a minha ideia é ter uma equipa confiante, com diferentes soluções para abordar a fase ofensiva. Procurando ser dominantes no jogo, sabendo que não podemos sê-lo sempre, porque não existe sempre um controlo efetivo do jogo. Nem sequer as melhores equipas, com mais posse e mais remates, o conseguem sempre. Mas queremos tentar controlar e controlar essencialmente o individual, porque depois o individual, dentro do coletivo, é que vai surtir efeito. Se nos preocuparmos só com o coletivo e se um dos nossos jogadores em termos individuais não estiver bem, isso é o mais crítico, no futebol profissional. Porque tu trabalhas a tua organização defensiva, por exemplo...
Falas no individual, mas se, por exemplo, o teu setor defensivo não se comportar coletivamente, como um setor, vai ser complicado. Se vai cada um para seu lado...
Sim, mas dentro de cada ação individual podes comprometer o coletivo e é aí que tentamos chegar, no futebol profissional. Tens de focar o individual, porque como o jogo é tão equilibrado, tão igual, é necessário que o individual de cada um esteja num patamar muito elevado. Não posso ser só eu a subir o meu nível no jogo, se os outros dez não tiverem esse nível. Se há uma variável que não está bem, tens de reformular. Basicamente é tentar gerir o comportamento de cada indivíduo dentro do jogo. Se me perguntas se gosto mais de jogar em 4-4-2 ou 4-2-3-1, digo que o que procuro, essencialmente, é o desconforto do adversário. Dou diferentes soluções à minha equipa, jogamos de uma determinada forma, mas abordamos sempre o adversário, em função daquilo que queremos fazer para tornar o adversário desconfortável, na nossa fase defensiva. Temos de identificar padrões e obrigá-los a fazer coisas que eles não costumam fazer. Tenho de possibilitar que a organização da minha equipa impossibilite que eles consigam cumprir determinados padrões em que se sentem confortáveis. E tu dizes: ok, mas eles podem mudar a qualquer momento. Sim, mas isso demora, é difícil haver outros padrões diferentes. É muito por aí que nós vamos.
Então focas-te mais no lado estratégico do jogo, é isso?
Foco-me na estratégia, mas quando a minha equipa tem a posse, nós procuramos essencialmente o conforto de cada um. E o conforto de cada um é conseguires dentro dos onze que tens - ou um mais dez, porque a parte dos guarda-redes é muito específica e eu sou um admirador e tento aprender muito com o treinador de guarda-redes - teres zonas de conforto, para que o jogador se sinta quase num estado de flow, no sentido em que ele tenha uma emoção positiva e não sinta o esforço de jogar, que seja um prazer. Isso é o que mais procuramos na nossa fase ofensiva. Na fase defensiva, queremos o desconforto do adversário.
Então imagina que tens dois centrais que só estão confortáveis a bater a bola longa...
[interrompe] Ai não, aí não.
Então tem de se subordinar à ideia coletiva.
Sim, tentamos condicionar alguns comportamentos. A minha ideia - quando digo minha, digo nossa, falo da equipa técnica, porque sem eles não conseguia controlar o processo - é procurar ter um estilo de jogo muito mais apoiado do que direto. Mas se tivermos de jogar direto em determinados momentos e se isso for algo positivo para ultrapassar a equipa adversária, então faremos isso. Nós procuramos muito a estratégia, mas tens de ser coerente, porque tem de haver um equilíbrio. Muitas vezes a tua estratégia pode não resultar nos primeiros 15 minutos, pode não resultar nos primeiros 30 minutos. Então aí tens de alterar. Nós planeamos vários cenários. Claro que antes trabalhamos muito em observação e análise e vamos muito ao individual, mas temos de planear os cenários que podem acontecer. Há treinadores que preparam e depois a equipa adversária pode apresentar-se de uma forma que eles não estavam à espera, faz parte. É como estares a jogar um jogo de xadrez, jogas peça a peça, jogada a jogada, mas não podes pensar só na peça e na jogada, antes de fazer a jogada já tens de estar a pensar no que vai acontecer a seguir.
Aos 27 anos, Hugo Falcão tem a sua segunda experiência em seniores, depois de ter liderado o Fabril, em 2017/18
Nuno Botelho
Mas ainda nem tendo uma base sólida em termos de modelo de jogo, se te focas já no lado estratégico, não é mais difícil? Porque baseando-te no lado estratégico tens de estar sempre a mudar coisas e a condicionar-te ao que o outro faz.
A compactibilidade que podes criar na tua equipa, entre o ataque e defesa, permite-te trabalhar em termos estratégicos o que queres trabalhar em jogo. Claro que não vou mudar radicalmente a minha forma de defender só porque o adversário se apresenta de determinada forma. Interpreta as minhas palavras desta forma: vejo um, dois, três pontos no adversário, com bola, em que acho que eles são menos bons e nós procuramos condicionar o jogo para isso. De um momento para o outro o jogador pode não estar bem e é golo. E o golo em futebol profissional é rendimento. O que nós pretendemos com bola é o nosso modelo de jogo, a nossa forma de jogar - só adaptamos algumas situações em função de cada adversário. Por exemplo, se o adversário joga num bloco médio baixo, eu planeio o jogo de uma forma diferente do que se for um adversário que gosta de fazer uma pressão média alta. Agora, dizes-me que ainda temos pouco tempo de trabalho... As pessoas trabalham diariamente aquilo que querem. Eu posso trabalhar quatro horas por dia como posso trabalhar doze ou vinte. Ser treinador do Cova da Piedade, neste momento, não é só ser treinador da equipa A. Importa aos A ter rendimento, mas estamos num projeto vertical, com uma pessoa nova que entrou para diretor desportivo, o Edgar, e que faz também essa ponte, porque é preciso identificar talento nos sub-21 e sub-23. É importante definires o que queres para o presente imediato, mas não só. Tivemos agora uma semana e meia de pausa em que trabalhámos coisas muito boas, que se calhar só se vão ver daqui a duas semanas. Porque as pessoas não podem estar à espera que de um momento para o outro as coisas apareçam, não é? Não sou de dizer que não temos este ou aquele jogador. Gosto de chegar e trabalhar com o que temos. Se tivermos de fazer reajustes, fazemos. Agora, o que pretendo essencialmente é gerir o comportamento de cada um dentro do coletivo. Acho que o mais importante é criares zonas de conforto para o jogador intervir. Não estou a revolucionar nada nem a chegar aqui... Há muitos treinadores que fazem isto. Neste momento vou adaptar-me. Na 2ª Liga, como o equilíbrio das equipas é muito patente, a capacidade estratégica faz a diferença. Podes ter um jogo dinâmico perfeito, mas num canto, numa questão estática em que houve um erro individual ou uma boa ação do adversário, perdes o jogo. E tu trabalhaste bem, tiveste uma semana fantástica, fizeste a observação, mostraste, trabalhaste, planeaste... mas chegas ao momento e acontece.
Faz parte do caos do jogo, não podes controlar tudo.
Claro, por isso é gostamos do futebol, é imprevisível, é incrível. Por isso temos de tentar gerir isso e criar contextos, e isso tem muito a ver com o processo de treino. Agora, o que se pretende neste momento para o Cova não é só treino, não pode ser só treino. Temos de ter resultados, porque somos a imagem do clube. Quando alguns seniores saem aqui do campo - temos até alguns que já jogaram em patamares superiores -, os miúdos olham para eles. Por isso a mensagem que tenho passado é que é importante todos nós subirmos o nível e sermos exigentes. Porque este clube é também uma cidade. E há gente que se calhar não vive o clube de forma tão forte como eu e outras pessoas aqui dentro, mas temos de ter capacidade para passar essa mensagem. Há jogadores que são da casa, que vivem em Almada, que vivem na Cova da Piedade, sim, mas há outros que não. E quando vais para um clube, tens de te entregar ao clube. Tens de ser feliz dentro do clube. Temos de criar essas condições para eles estarem bem cá dentro, com coisas que nem custam dinheiro, às vezes.
Por exemplo?
Por exemplo, um pequeno mimo ao jogador, quando o jogador faz anos. Chega ao balneário às 8h da manhã e tem um bolo à sua frente. São coisas que não custam. Têm os equipamentos sempre impecáveis, não lhes falta nada. Chegam ao cacifo e têm a sua água, a sua proteína, a sua barra... Têm condições para crioterapia, banhos e massagens, um posto médico com ligação com o balneário... Era fantástico termos mais um campo para treinar, de relva, porque só temos dois e, às vezes, com o inverno, fica muito difícil treinar no principal. É fundamental o jogador sentir-se bem ao reconhecer no líder a sua preocupação nele. É diferente eu telefonar a um jogador para se calhar ir tomar um café para conversarmos do que pedir para ele vir ao meu gabinete depois do treino. Num contexto informal chegas mais perto deles. Vou utilizar esta expressão com muito cuidado: é o jogador não sentir necessidade de olhar lá para fora durante o jogo. O jogador não pode sentir essa necessidade. Só se pode preocupar com as ações dele e dos colegas. Se olhas lá para fora é porque alguma coisa faltou. E não pode faltar nada ao jogador, porque o jogador é que faz o nosso ordenado. Não é? [risos] Quando se ganha, raramente se fala no treinador, e não tens de falar, tens é de falar na organização que se conseguiu em 11 jogadores, mais três, mais todos os outros que ficaram de fora mas contribuíram para a semana de trabalho.
Em termos de gestão de balneário, foi fácil para ti? Porque, como dizias, há aqui jogadores muito experientes, como o Moreira, o Miguel Rosa, o Evaldo...
Olha, comecei a dar aulas na faculdade aos 24 anos e na primeira aula estava a pensar: "De certeza que vou ter ali alunos mais velhos do que eu, mas de certeza que se estão aqui é porque não sabem tudo e querem aprender, portanto terei algo para ensinar". Mas a primeira aula foi assim meio esquisita, porque dois anos antes estava ali sentado naquelas cadeiras. Houve um reconhecimento do meu trabalho e sempre que me dão uma oportunidade eu tento não desperdiçá-la. Claro que ao longo deste anos todos passei por muitas camadas, sub-11, sub-13, sub-15... Não estive em sub-17 e gostava muito de ter estado, porque acho que é a idade mais crítica da adolescência, em que eles querem tudo menos o desporto - de certeza que também já tiveste essa experiência com as tuas jogadoras [risos]. E treinei também aqui sub-19, antes de subirmos para a 2ª Liga, e já aí tinha 24 anos, salvo erro, e até foi benéfico, porque como estava muito próximo da idade deles a interação por vezes era mais fácil. Se calhar uma pessoa mais velha não chegava tão perto deles. Depois estive como adjunto durante vários anos, porque desde os 20 anos que sempre fui adjunto de seniores. Ou seja, a minha capacidade para estar dentro de um balneário já era alguma. Claro que apanhas jogadores com 30 anos e outros com 20, há sempre um misto entre os jovens e os menos jovens. A interação que estabeleces com eles tem de ser obrigatoriamente diferente. Sou aquele que quando é para trabalhar, é para trabalhar, não confundo as coisas. Falar com indivíduos de diferentes faixas etárias é sempre um desafio para ti e para a forma como o planeias. Claro que não chego ao balneário de manhã e digo o que me apetece. Muitas vezes planeio o que vou dizer e os cenários que possam acontecer. Mas não gosto muito de falar no balneário, gosto mais é de falar no campo. Nós quando falamos com as pessoas, temos de falar pouco tempo, porque elas só vão estar atentas durante um curto período, portanto o que eu disser tem de ser importante.
Hugo Falcão no balneário do Cova da Piedade, em Almada
Nuno Botelho
Acabaste por não me dizer como é que os mais veteranos reagiram à tua promoção para treinador principal.
Acho que reagiram bem.
Não é uma situação muito comum ter um treinador com 27 anos.
Sim, sim, percebo. Já tinha trabalhado com alguns deles, porque foram meus colegas na altura em que eu ainda jogava. Acho que o que importa aqui é a tua relação com as pessoas. Se as pessoas identificarem que tu és competente, que tu és organizado, que tu queres o melhor para elas, que tu estás aqui para ajudar, as coisas decorrem naturalmente. A capacidade de liderança faz-se dia a dia. Não vais impor a liderança só porque sim. Não, a tua liderança efetiva coloca-se no dia a dia, seja com um capitão que tem 36 anos ou com um rapaz que esteve no Campeonato de Portugal e chegou agora à 2ª Liga, com mérito. O próprio jogador sabe que quando lhe aparece uma pessoa nova à frente... Acho que as pessoas novas que estão a aparecer - como é o caso dos treinadores do Hoffenheim e do Schalke - têm capacidade para estarem onde estão, mesmo em balneários com jogadores mais velhos. Não olho para idades, olho para competências. Tudo aquilo que tenho para dizer, digo. A melhor forma que tens para teres a confiança de uma pessoa é seres verdadeiro. A partir do momento em que justificas essa forma de estar, o jogador não tem nada a apontar.
Sentiste isso como jogador?
Se calhar o grande problema que senti ao longo da carreira como jogador, e como treinador também em alguns casos, foi esse: muitas vezes os treinadores criam expetativas nos jogadores e depois não conseguem cumpri-las. E eu não sou assim, eu digo a verdade, e a partir daí as coisas são simples.
Então a idade do treinador não é um assunto aqui?
Não, porque a forma como já trabalhava antes e forma como me apresentei aqui novamente este ano foi igual. Eu sou igual, eu sou sempre o Falcão. As pessoas que me conhecem tratam-me por Falcão.
Os jogadores também?
Os jogadores tratam-me por mister, cá dentro, mas lá fora, sem qualquer tipo de problema, é por Falcão. Eles têm toda a confiança para me tratarem como alguém próximo deles. Só a minha mãe e a minha avó é que me tratam por Hugo [risos]. O resto é tudo Falcão, até o diretor desportivo e o presidente da SAD. Os jogadores, cá dentro, tratam-me por mister. Lá fora, Falcão. Mas não é por isso que me sinto mais ou menos treinador. Sinto-me respeitado como treinador é quando eles fazem o que é pedido. Não é por me chamarem A ou B, não tenho complexos com isso. A essência do futebol é informal, é rua. Eu fui daqueles que ainda tive a sorte de ser criado num bairro, a jogar à bola na rua.
Aqui?
Sim, aqui perto. Se puder dar ao meu filho um crescimento assim, em que nunca me faltou o essencial, agradeço a Deus por isso... Tive aquela experiência de ficar a jogar à bola das duas às sete da tarde e a minha mãe na janela a chamar por mim. A magia do futebol está aí, por isso é que há o contraste entre o futebol da América do Sul e da Europa, atualmente. O jogador puro de rua normalmente vem de lá, onde ainda não há futebol de indústria. E aquela zona de conforto de que te falava inicialmente tem a ver com isto, com eles poderem explorar a sua criatividade e a sua improvisação, porque isso é algo que falta na 2ª Liga - e na 1ª Liga também. Falta espaço de libertação para o jogador, especialmente nos clubes mais pequenos.
O presidente do Fabril, onde te estreaste como treinador de seniores na época passada, referiu-se a ti como tendo potencial para ser "melhor do que o Mourinho".
É uma comparação que não deve ser feita. Mourinho é uma figura que nós devemos continuar a respeitar e há muita gente que não o respeita. Há gente que vê o seu sucesso no fracasso do outro. É uma pessoa que vai continuar a ser especial durante muito tempo, ganhou muitos troféus e passou por clubes em que se calhar só 2% dos treinadores do mundo passaram. E a pessoa que está aqui à tua frente, o Falcão, não tem títulos como treinador principal. Assumiu agora um projeto aos 27 anos e tem uma ambição interior e uma vontade muito grande de ajudar um clube. Felizmente conquistei tudo com o meu esforço e com a minha capacidade de ser e de estar. Acho que a comparação não foi a mais correta, mas é pessoa que me deu uma oportunidade e que também ajudei numa fase crítica do clube e acabou por resultar.
Como é que deixaste de jogar e passaste para treinador?
Tive a felicidade de jogar aqui e depois de estar quatro anos no Benfica, onde fui muito bem tratado e ainda hoje me dou com muitas pessoas dessa altura. Passei lá dos episódios mais marcantes da minha vida, que me despertaram o interesse pela área de treinador: fui operado lá, duas vezes, aos joelhos, aos 14 anos. É um acontecimento marcante, porque estás na tua curva de crescimento e na altura até era capitão dos iniciados A, mas tive aquelas duas lesões e parei durante mais de um ano. Isso depois influenciou um bocado o meu crescimento e a minha confiança. Depois saio do Benfica e vou para o Vitória de Setúbal e aí percebi por que razão é que as pessoas gostam do Vitória. Depois dos juniores tive hipótese de ir para o Oriental, que na altura era treinado pelo Carlos Manuel, mas... Já começava a perceber que gostava muito de futebol, mas já não queria ser jogador. Na altura decidi de um momento para o outro. Estava na iminência de entrar para a faculdade e decidi mesmo acabar com a bola. "Quero ser o melhor naquilo que for tirar" - foi isso que pensei. Os meus pais ajudaram-me a entrar na faculdade que eu queria e ainda bem.
Onde?
Entrei em desporto, na Lusófona. Pensei na FMH, mas para mim era mais fácil a Lusófona em termos logísticos, porque tinha colegas que também iam para lá. E depois adotei uma postura de foco total. Quando defino uma coisa, é até ao final.
Aí já estavas a pensar ser treinador?
Sim, aí já tinha plena consciência de que queria ser treinador. Não tinha nenhuma ânsia em ser treinador principal, mas queria pertencer a uma equipa técnica, aprender, ver os diferentes contextos, perceber o que é lidar com sub-8 ou sub-19... Acabei por entrar numa turma que foi uma turma de sucesso e que me deu para perceber várias áreas, com a Telma Monteiro, atleta olímpica, com o Francisco Ramos, que é um personal trainer que trabalha com jogadores de futebol, com o Gonçalo Cruz, que treina na formação do Sporting, pessoal do judo que está na seleção de Cabo Verde e do Japão, e muitos mais. Era uma turma muito competitiva e criou-se ali um bom espírito, mas também percebi que havia muitos que queriam ganhar, como eu queria. Então se o nosso mercado tem muita gente, eu tinha de me distinguir, e a única coisa que podia fazer naquele momento era tirar as melhores notas e conseguir com isso um estágio em algum lado ou qualquer coisa assim, porque é preciso uma oportunidade. Lembro-me que quando comecei no futebol sénior estive lá três anos e ganhava 50 euros. A treinar às nove da noite e com frio e com tudo. Mas era algo de que eu gostava e acreditava nas pessoas que lá estavam e no projeto. Então tive algum sucesso na faculdade e depois fiz também o mestrado em treino de alto rendimento. Neste momento estava a tirar o doutoramento, mas tive de parar, porque não dá para tudo, não é? Também parei com as aulas, porque estava a dar aulas no Instituto Piaget, aqui em Almada. Ou seja, larguei tudo aquilo que tinha construído até agora, porque este é um projeto que para mim foi uma oportunidade única e por vezes há oportunidades que tens de aproveitar e justificar. Acima de tudo, o que quero agora é focar-me no Cova da Piedade.

Sérgio Boris treinou o Cova da Piedade entre 2011/12 e 2016/17
Gualter Fatia/Getty
Quem são as tuas referências como treinadores?
A minha referência como treinador é alguém com quem trabalhei muitos anos e com quem aprendi muito: o Sérgio Bóris, que neste momento está em Angola, no Recreativo Libolo. Partilhámos muitas coisas e deu-me uma grande base. Depois tenho algumas referências ao nível dos professores, como o Olímpio Coelho, de pedagogia, que acho que devia ser uma referência nacional, para mim é um master. Dá-te uma capacidade de gerir conflitos, de gerir a capacidade comportamental da tua equipa... Tive outros professores que também me influenciaram, como o professor Jorge Proença, diretor da faculdade de desporto, o próprio professor Jorge Castelo, que teve uma influência muito positiva na forma como penso o treino... E depois tenho alguns treinadores que sigo, se calhar mais pelo clube onde estão e não tanto pelos treinadores, porque eu identifico-me mais com os clubes. Por exemplo, estive a ver o Schalke com o Porto e o jogo do Schalke acaba por se identificar com aquilo que eu defendo, com e sem bola. O próprio Rui Vitória tem coisas muito boas, com bola e sem bola... Há muita gente que diz que o melhor treinador é aquele que adapta. Eu tento observar muito e depois refletir. Enquanto pessoas, as principais referências sempre foram os meus pais.
É para chegar à 1ª Liga antes dos 30 anos?
Eu tenho um ideal de carreira: gosto de trabalhar onde me sinto desejado. Quando me sinto desejado, dou tudo por aquele projeto. Se gostaria de estar numa 1ª Liga aos 30 anos? Gostaria. Mas se estiver dez anos na 2ª Liga ou se baixar um patamar para voltar a ser feliz e voltar a ter as minhas ideias, sem dúvida que o mais importante é sentir-me bem e desejado. Se as pessoas quiserem a estrutura que acompanha a minha pessoa...
Estás pronto?
[sorri].