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No banco com os misters

Miguel Cardoso: “Nunca mais me vou esquecer do Tarantini: 'Mister, eh pá, que desfrute. Jogámos tanto à bola, minha nossa senhora’”

Na sua primeira época enquanto treinador principal em Portugal, aos 46 anos, Miguel Cardoso foi a revelação da Liga, ao guiar o Rio Ave ao 5º lugar. Não só marcou pelos resultados como pela forma de jogar, com uma equipa pequena que procurava ser grande, mesmo contra os grandes. E é por isso que o Sporting (e não só) parece estar interessado nele para ocupar a vaga deixada por Jorge Jesus. Na primeira grande entrevista que concede, conheça as ideias de um treinador que sabe bem o que quer, mas que chorou quando teve de deixar de ser professor de educação física

Mariana Cabral

Miguel Cardoso tem 46 anos e cumpriu em 2017/18 a sua primeira época enquanto treinador principal em Portugal

FERNANDO VELUDO/NFACTOS (EXCLUSIVO PARA EXPRESSO)

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Miguel Cardoso anda no futebol português há quase duas décadas, mas só agora o conhecemos verdadeiramente. É que este ex-professor de educação física da Trofa passou muitos anos na sombra: começou na formação do FC Porto, chegou à equipa B do clube enquanto preparador físico, desempenhou essas mesmas funções no Belenenses e no Braga, com Carlos Carvalhal, foi adjunto de Domingos Paciência, também em Braga, no Sporting e no Deportivo, e de Paulo Fonseca, na Ucrânia - país onde também se estreou como treinador principal, na equipa B do Shakhtar Donetsk.

Em 2017/18, assumiu o primeiro projeto em Portugal enquanto treinador principal, no Rio Ave, e deixou marca: no clube, pelo 5º lugar conquistado, com recorde de pontos somados; e na Liga, pela forma de jogar positiva, "à grande", que somou elogios atrás de elogios - e, também, algumas críticas, que o treinador rebate nesta (longa) entrevista.

Antes de entrares no Rio Ave, eras praticamente um desconhecido.
Tenho essa consciência, sim, até porque sempre fui uma pessoa discreta. Na descrição de um treinador adjunto, na minha opinião, essa é uma das qualidades e eu tive funções enquanto adjunto durante muitos anos. Isso fez com que muito daquilo que é o Miguel fosse um percurso de sombra. Isso não significa que não tenha sido um percurso progressivo, importante, de acumulação de aprendizagens e reflexões. No fundo, é isso a experiência, é o que fazemos para transportar a nossa prática para a confrontação com aquilo que são teorias e formas de pensar, e para a construção de novas práticas. A experiência não é a idade, bem pelo contrário. Foi um percurso que me pareceu natural, até determinado ponto, e obviamente também é natural que eu tenha passado sem grande protagonismo.

Em que momento quiseste, aliás, não é apenas "querer", em que momento sentiste que efetivamente já estavas preparado para ser treinador principal?
Sentia que já estava preparado há algum tempo. Uma coisa é sentir que estou preparado, que tinha competências para isso, mas outra coisa é entender que, dentro dos projetos em que estava, me sentia útil e importante, o que me levava a não ter razões para abandoná-los. Foi assim nos últimos anos em que trabalhei como adjunto com o Domingos em Portugal, por exemplo. Até porque, coincidentemente, os últimos anos com ele foram anos mais ricos, e quando tu sentes que estás a viver experiências muito ricas também não as queres abandonar, independentemente de não estares nas funções de liderança. Partilhámos momentos de grande exuberância desportiva, como aqueles dois últimos anos no Braga, e depois a passagem para o Sporting. Agora, paralelamente, outras coisas vão acontecendo, como eu ficar mais velho [risos], ter necessidade de pensar também no futuro da minha família, e as minhas vontades pessoais também começarem a ser muito maiores.

É aí que surge a ida para a Ucrânia, para treinar o Shakhtar Donetsk B?
É na conjugação daqueles três fatores que surge claramente a minha opção de assumir o papel de treinador principal e a minha ida para a Ucrânia não é mais do que isso, porque me permitiu ser treinador principal, ainda que numa equipa B, mas estamos a falar de uma equipa B de um clube de grande dimensão, num projeto altamente sedutor, porque era patrocinado, entre aspas, pelo treinador principal da altura, o Mircea Lucescu. Eu chego à Ucrânia e a primeira coisa que me acontece é ser levado diretamente para um almoço com ele, portanto eu nem sequer conheço o que quer que seja naquela altura, só tive uma primeira conversa com eles, por Skype, de quase três horas. Mas a minha primeira ida à Ucrânia é assim: sair do aeroporto e entrar num restaurante italiano, em Donetsk, com o Mircea Lucescu e com o Sergei Palkin, diretor-geral do clube, e eu sinto naquele momento que estava a passar por uma triagem. E foi uma conversa fantástica, porque o Lucescu tinha sido nosso adversário, no Braga. Nós tínhamos jogado contra o Shakhtar para a Liga dos Campeões no ano anterior, portanto havia da minha parte um conhecimento muito grande da equipa do Shakhtar. Daí que estivéssemos muito tempo no almoço a discutir o que foi a preparação daqueles jogos. Eu conhecia claramente a identidade - desculpa, conhecia o modelo de jogo, porque identidade e modelo, para mim, são coisas claramente distintas -, eu conhecia o modelo, mas não conhecia a identidade do clube, isso é outra questão. Há um momento chave no almoço, em que vejo o Lucescu a piscar o olho para o Sergei, quase que a dizer 'ok, vou-me embora porque isto está bom e já fiz o meu serviço'. Ele saiu, até porque depois ia ter treino e imediatamente o Sergei pega em mim, leva-me ao Donbass Arena, ao gabinete dele, e começa a dizer-me que tinham duas funções que precisavam de preencher. A primeira era a de treinador da equipa B, porque eles tinham despedido o treinador que lá estava - a gota de água foi ter perdido 8-1 com o Dinamo de Kiev -, e ao mesmo tempo queriam um coordenador da academia de formação, porque o holandês que lá estava tinha ido para o Cazaquistão. "Então gostávamos que tu fizesses as duas coisas", disse-me ele. Pensei: "Ei meu Deus, mas isso é uma empreitada brutal". Sabia que, indo para a Ucrânia, a minha família não me iria acompanhar, até porque em Donetsk não havia escola inglesa. Só mais tarde é que chamei o Telmo [Sousa], que agora está na equipa A do FC Porto, não levei ninguém para trabalhar comigo, portanto eu sabia que ia estar muito tempo sozinho...

Portanto mais valia estares sempre ocupado.
Exatamente. Por isso aceitei o desafio. Naturalmente não aceitei imediatamente, primeiro fiz questão de fazer perceber às pessoas que tinha de tomar contacto com um conjunto de coisas e só depois podia dizer que sim, mas eles deixaram-me um objetivo muito claro. "Miguel, nós tivemos um coordenador holandês e os holandeses são muito 'eles' no que pensam sobre o jogo e nós não conseguimos fazer a aproximação à equipa principal. É por isso que queremos que faças as duas coisas, porque acreditamos que, sendo treinador da equipa B e ao mesmo tempo coordenador da academia, conseguias fazer aquilo que não conseguimos durante anos, que é começar a colocar jogadores na equipa principal. Isto implica perceberes o Lucescu e o jogo dele, porque ele está há 12 anos no clube, e tentares replicar algumas coisas." Consegui fazê-lo em algumas coisas, mas havia ali coisas em que eu não consegui mesmo. Não consegui porque não quis, assumi que não queria percorrer esse caminho.

Por exemplo?
Por exemplo, para mim, o processo defensivo do Shakhtar não tinha sentido absolutamente nenhum, não me identificava com aquilo e sempre fiz coisas ligeiramente diferentes. Mas, na globalidade, havia que encontrar esse caminho, porque era um caminho que podia permitir que os nossos jogadores conseguissem mais facilmente entrar na equipa principal. Comecei a assistir aos treinos da equipa principal, inclusivamente estava autorizado a entrar no campo e observar, sem qualquer problema, comecei a conviver com os adjuntos do Lucescu, comecei a receber jogadores da equipa principal para jogar na minha equipa, porque era permitido ter quatro jogadores com mais de 21 anos a jogar. Gradualmente, os jogadores da equipa B começaram a treinar com mais frequência na equipa principal. Mas estamos a falar de um processo de três anos.

Miguel Cardoso foi adjunto de Paulo Fonseca no Shakhtar Donetsk em 2016/17, já depois de ter passado três épocas enquanto líder da equipa B ucraniana

Miguel Cardoso foi adjunto de Paulo Fonseca no Shakhtar Donetsk em 2016/17, já depois de ter passado três épocas enquanto líder da equipa B ucraniana

Anadolu Agency/Getty

Chegaste em 2013/14 mas depois em 2016/17 foste para adjunto do Paulo Fonseca na equipa A.
O meu primeiro ciclo era de dois anos e depois renovo novamente contrato por mais dois anos, sendo que depois entrei na equipa principal com o Paulo [Fonseca]. Isto para dizer que quando cheguei à Ucrânia, em abril de 2013, não peguei logo na equipa, fiquei a observar até junho. Comecei a fazer uma seleção dos melhores jogadores, desde alguns que estavam a acabar o processo de juvenis e iam passar para juniores a outros que estavam já na equipa B e a uma outra equipa que tínhamos, a que chamávamos o Shakhtar 3, que competia na terceira divisão. Fiz um grupo a que chamei grupo de elite e durante três anos esses jogadores trabalharam na minha equipa. Obviamente também fizeram jogos da Youth League, porque isso era um fator altamente promotor de desenvolvimento e de afirmação competitiva, inclusivamente no segundo ano chegam à final, não comigo, porque não era o treinador, só era o coordenador, mas naturalmente ia a todos os jogos e estava em todos os momentos. Mas eram jogadores que treinavam comigo e iam dois, três dias aos sub-19, faziam a preparação do jogo e jogavam juntamente com os outros. Isso foi brutal, porque ao fim de três anos, e alguns até antes, começaram a aparecer jogadores na equipa principal. O primeiro é o Viktor Kovalenko, que é o que se afirma mais, é internacional; depois o [Mykola] Matvienko, que também já é internacional A; depois o [Oleksandr] Zubkov, o [Vyacheslav] Tankovsky, o Oleh Kudryk... E, com a chegada do Paulo ao Shakhtar, este processo não para, continua. Obviamente foi ele o responsável pelo plantel e atualmente são cinco os jogadores que subiram para a equipa A, além de até se ter resgatado outros que já tinham sido emprestados, em função também do contexto socioeconómico da Ucrânia, com a questão da guerra e da redução do poder económico, não do clube, mas do país. O clube não sofreu grande impacto económico, mas teve de se ajustar à realidade social. Se o país passa dificuldades então nós temos de respeitar o momento. Pronto, basicamente este foi o meu primeiro momento de afirmação. É curioso porque estávamos em pleno terceiro ano deste processo e na paragem de inverno, quando estou no Brasil de férias, recebo um telefonema do diretor-geral: "Miguel, estou a ligar-te porque estamos a pensar no ciclo normal de substituição do treinador e gostaríamos que integrasses esse processo e nos ajudasses". Obviamente fui apenas uma das pessoas envolvidas, houve mais pessoas no processo, até com muito mais responsabilidade, mas naquele momento pediram-me que de alguma forma ajudasse a acolher aquela mudança que iria ocorrer, que era quase uma mudança epistemológica.

O teu trabalho ali terá de alguma forma influenciado a direção dessa mudança, uma vez que as ideias de jogo do Lucescu eram algo diferentes das tuas e das do Paulo?
Há ali uma ideia óbvia de que os tempos passam. O Lucescu tem um trabalho brutal no Shakhtar, porque ganha 20 e tal troféus, o que é incrível. Ele tem o mérito de conseguir perceber que os brasileiros, naquele contexto, pela sua criatividade e pela sua forma de estar, eram uma mais-valia brutal, até porque o Shakhtar conseguia recrutar jovens de grande valor, já internacionais, como o Willian, o Alex Teixeira, o Douglas Costa, o Fernando... Nós chegámos a ter 13 brasileiros, porque depois ainda chega uma segunda leva, com o Marlos, com o Taison, com o Bernard, com o Ismaily, com o Dentinho... Um conjunto alargadíssimo de jogadores de grandíssima qualidade, que aportam uma qualidade técnica ao jogo brutal. E o jogo do Lucescu era muito isso, era o prazer, no ponto de vista ofensivo, de libertar aquilo tudo. Sob o ponto de vista defensivo, era um jogar diferente, um jogar que tinha marcações homem a homem, por exemplo. Isso, obviamente, são coisas que não têm a ver comigo e que o Paulo também alterou quando chegou, naturalmente. Essa foi a grande mudança até, foi regular um jogo que era um jogo muito selvagem, brutalmente ofensivo, mas muito entregue apenas à criatividade. Houve um processo de regulação do jogo, o que é a ação do treinador. Ok, aquilo é importante para a equipa, mas é preciso dizer que a equipa "é isto", a ideia "é esta" e todos nós temos de comungar desta ideia. O Paulo tem esse mérito, naturalmente, vê-se pelo caminho do Shakhtar desde que ele chegou. Não tira mérito a um nem acrescenta ao outro, são processos absolutamente diferentes, porque as eras também são diferentes, e temos de compreender que não há muitos anos o Shakhtar ganhou a Liga Europa. O que aconteceu foi que nos últimos dois anos de Lucescu não se ganhou o campeonato, mas também há que perceber que estávamos em pleno conflito de guerra e o clube não está deslocado, o clube já é completamente deslocado.

O clube deixa de estar em Donetsk.
Todas as dinâmicas são alteradas, há uma pré-época com jogadores que se recusam a aparecer, portanto, é um momento social e político de grande impacto. O Shakhtar teve uma capacidade inacreditável, suportado também pela vontade do presidente Rinat Akhmetov, que é uma pessoa que adora futebol e adora o clube, e tem uma equipa brutal de dirigentes à volta dele, gente jovem e muito apaixonada por aquilo que faz. Conseguiram transportar o clube de Donetsk para Kiev, praticamente separando-o em partes, porque parte da estrutura diretiva foi para Lviv, depois agora já está em Kharkiv, e parte ficou em Kiev. Também tive um trabalho inacreditável na academia, tive de deslocá-la duas vezes de local, de Donetsk para Poltava. Num primeiro ano começamos com os sub-19, os sub-21 e o Shakhtar 3 em Poltava e pusemos as equipas dos sub-14 aos sub-17 em Kiev. Eu fazia 400 km todas as semanas, para um lado e para o outro, para tentar acompanhar minimamente os processos. No ano seguinte, graças à capacidade de persuasão do Lucescu, voltamos a conseguir juntar toda a gente, em Kiev, o que era fundamental, porque os campeonatos sub-21 são duros porque há jogadores mais velhos. Portanto precisávamos de ter uma ligação forte, até porque os jogadores da equipa A muitas vezes desciam para ter um espaço de competição. Lá, os jogadores não se recusam a jogar a equipa B, aceitam isso normalmente. Cheguei a ter Ismaily, Dentinho, Fernando... Todos eles jogaram amiúde na equipa em alguns momentos. É uma cultura diferente da que há aqui, em que não é tão habitual ver jogadores já feitos a jogar na equipa B, porque não vêem isso com bons olhos. Conseguimos então voltar a reunir toda a gente em Kiev, para um terceiro ano muito interessante. Para mim foi uma experiência brutalmente enriquecedora.

Miguel Cardoso fotografado no Hotel Yeatman, em Gaia, onde concedeu ao Expresso a sua primeira grande entrevista na época 2017/18

Miguel Cardoso fotografado no Hotel Yeatman, em Gaia, onde concedeu ao Expresso a sua primeira grande entrevista na época 2017/18

FERNANDO VELUDO/NFACTOS (EXCLUSIVO PARA EXPRESSO)

Estando numa equipa B é mais fácil experimentar ideias, uma vez que não há tanta pressão para obter resultados?
Foi possível, acima de tudo, confrontar realidades e perceber como extrair daquela gente o melhor possível. Tem de haver um esforço muito grande para aprender a lidar com outro tipo de dificuldades: como comunicar quando não dominas a língua; como emocionar pessoas e uni-las em redor de um projeto, quando não és tu que te expressas diretamente e não consegues impactar. Isto são questões brutais. E eu confesso-te que houve momentos em que senti que podia dar mais do que aquilo que dei. Por exemplo, houve algumas coisas no Rio Ave em que procurei, não é manipular, porque essa não é bem a palavra certa, mas induzir para que acontecessem determinado tipo de coisas, porque acredito que tudo o que tem a ver com emoções é fundamental ser criado e gerido e estimulado. Porque o jogo é tático, mas por trás do tático há muitas outras coisas. A tática, por si só, não faz ganhar. O lado emocional é brutalmente importante. Depois, além da língua, também houve um levar de coisas novas para aquela gente, levar algo que não era património para eles. A Ucrânia é claramente influenciada pelo modelo Lobanovsky, do Valery Lobanovsky, que foi selecionador russo. É um modelo soviético, completamente distinto do nosso, que valoriza outras coisas. Não é melhor nem pior, é o que é. Eles também ganharam assim e como ganharam assim e como o povo ucraniano é avesso à mudança, não é fácil transportar dinâmicas distintas.

Por exemplo?
Posso dizer que tive dificuldades em coisas pequenas que para mim eram tão simples... Por exemplo, como é que oriento os meus apoios no 1x1 defensivo quando sou lateral e enfrento um ala. Tiro para fora, dou-lhe o espaço exterior ou dou-lhe o espaço interior? Como faço a gestão desta situação? Como princípio, quero que o adversário vá para fora. Mas eles diziam: "Não, não, deixa-o vir para dentro, porque se ele vier para dentro vem esbarrar com os meus médios e se for para fora não tem mais ninguém". Desmontar estas coisas quando tu não podes ir para o conflito - quando digo conflito é no sentido de discussão -, porque não tens argumentos verbais suficientes e tens de ter sempre um tradutor, isto é... Tens de fazer um esforço muito grande e isso é muito forte em termos de aprendizagem, porque tens de encontrar outras formas de lhes fazer ver as coisas.

O que fizeste?
Nessa situação foi desde procurar vídeos de outros treinadores a falar sobre isso a ir falar com o Srna para ele dizer qual era a opinião dele e eu depois mostrar-lhes: "Vejam o que diz o vosso lateral direito da equipa A". Coisas deste género. É um esforço muito grande, mas acaba por ser também transformacional dentro de ti próprio, porque te dá bagagem, dá-te outros instrumentos, porque tens de encontrar soluções. É nesses momentos que nós encontramos coisas dentro de nós que nem acreditávamos que existiam, porque somos obrigados a ir à procura de soluções. A questão do relacionamento humano também foi brutal, porque tive de lidar com uma equipa técnica de ucranianos, não tinha nenhum elemento português, e dizer-lhes qual era a ideia.

E eles acreditavam na tua ideia?
Eles são disciplinados, ou seja, o povo ucraniano é habituado à ordem. Se é para fazer, eles fazem, não têm de acreditar. Ou seja, eles sempre foram fiéis ao que eu lhes pedia para fazer. Acreditar é outra coisa. Agora, naturalmente que fui procurando seduzi-los, à medida que íamos fazendo caminho. Fomo-nos aproximando e nunca tivemos conflitos, mas eles próprios diziam-me que não eram como eu. Quando se gera o conflito em Donetsk - havia as primeiras manifestações de rua, a guerra estava a começar, pessoas a serem mortas, começa a haver checkpoints, há a autoproclamação de independência da região de Donetsk e Luransk - nós começamos a discutir entre nós, porque estávamos na Turquia num estágio após a paragem de inverno. Porque eu dizia que não conseguia perceber algumas coisas do conflito e eles diziam que eu não percebia porque não era igual a eles. "Mas em quê?", perguntava eu. "Não vejo no que somos diferentes", dizia-lhes. "Mas nós vemos no que somos diferentes de ti", diziam eles. É claro que lidar com pessoas de outro país é diferente, mas é altamente motivador e aliciante, porque eu fui para lá para isso. Fui para aportar conhecimento diferente àquelas pessoas.

Miguel Cardoso não é de sorriso fácil, pelo menos no campo, onde diz que mantém a postura necessária "para ter rendimento"

Miguel Cardoso não é de sorriso fácil, pelo menos no campo, onde diz que mantém a postura necessária "para ter rendimento"

FERNANDO VELUDO / NFACTOS (EXCLUSIVO PARA EXPRESSO)

Foi por isso que não levaste equipa técnica portuguesa?
Exatamente. Porque quando discuti com o meu diretor-geral, ele disse-me assim: "Espera aí, eu tenho aqui treinadores adjuntos, eu tenho aqui preparadores físicos, eu tenho aqui analistas de vídeo. Tu vens para cá para trazeres o teu conhecimento para as minhas pessoas, não é para vires cá, teres resultados, ires embora e os meus ficarem iguais. Só te permito trazeres alguém se precisares de alguém que faça alguma coisa que nós não tenhamos cá". Foi assim que, passados três meses, pedi uma pessoa para com conhecimentos da área da preparação física específica para o futebol, da performance individual e da prevenção de lesões, como eu queria que fosse ensinada. "Traz-me cinco currículos", disse-me ele. "Qual é o primeiro? É este? Este não, que este é muito caro, vem o segundo". E é assim que o Telmo chega ao Shakhtar. Porque era preciso alguém que aportasse aquele conhecimento que eu não tinha, porque não sou especialista. Eu sou um aglutinador de conhecimentos, é esse o papel do treinador. Todos eles têm de ser melhores naquilo que fazem do que eu. Mas eu tenho de ser melhor do que eles todos no processo de aglutinar o conhecimento deles todos. Porque eu tenho uma formação engraçada: fui professor de educação, sou licenciado e tenho um mestrado, fui preparador físico, fui treinador adjunto, treinei em todos os escalões da formação no meu tempo do FC Porto, também tive experiências na equipa B do FC Porto, portanto tenho uma transversalidade muito grande ao longo do meu processo de formação até aos seniores. Foi isso que seduziu - e continua a seduzir - muitas das pessoas quando olham para o meu currículo. Fala-se cada vez mais na necessidade que os clubes têm em ser formadores. Quem é que é o treinador que tem capacidade para apostar em jovens? Que perfil tem esse treinador que efetivamente faz, não é só dizer que faz. É assim que aparecem o Nélson Monte, o João Novais e outros. Do dizer ao fazer há um caminho que é preciso percorrer e os clubes precisam disso, porque precisam de gerar mais-valias.

Quando foste convidado pela primeira vez para o futebol profissional, em 2004, para ser adjunto do Carlos Carvalhal no Belenenses, até choraste.
É verdade, chorei. Porque sou uma pessoa de pessoas. Sei que não pareço um treinador aberto de coração, pareço uma pessoa fechada, mas isso tem a ver com aquilo que eu, naquele momento, acho que é importante. Não porque crie um cenário, não, eu não crio cenário nenhum, mas vivo e instalo em mim as emoções que acho que são fundamentais para eu ter rendimento e para que a minha equipa potencie o o seu rendimento. Outra coisa é aquilo que efetivamente eu sou. E eu sou uma pessoas de emoções, de pessoas, de afetos. Quem me conhece sabe isso. E tu, se calhar, depois de conversarres comigo duas horas, já vais dizer: "Porra, de facto tinha uma ideia diferente de ti". Naquela altura de que falas, a escola, para mim, era um projeto quase pessoal. Eu era não só professor de educação física como gestor, porque era vice-presidente do Conselho Executivo da EB 2/3 de Ribeirão, com uma colega minha de quem continuo a ser amigo, que era a presidente. Aquilo era quase um projeto a dois, com mais gente na equipa, claro, mas era um espaço de criação. Obviamente hoje não me identifico com a escola que temos, ponto. Porque acho que é uma escola desumana, com muito menos valores, onde as pessoas não podem criar, não podem dar por dar. Naquela altura, eu recebia muito da escola, o que não invalida que eu não tivesse vontade de trabalhar como profissional, porque tinha. Aliás, quando estava na equipa B do FC Porto, no tempo em que o engenheiro Luís Gonçalves era o vice-presidente, com o professor Ilídio Vale, com o Domingos Paciência, com o Fernando Bandeirinha, em que tínhamos um conjunto fantástico de pessoas no clube, o André, o Vítor Pereira, o professor José Guilherme, o professor Rui Pacheco, o José Mário... Todo um conjunto de pessoas com percursos incríveis. Eu obviamente tinha vontade de mais, e daí ter dito que sim, até porque o convite veio de uma pessoa a quem eu dava crédito e de quem tenho o prazer de ser amigo, que é o Carlos. É curioso porque o Carlos dá uma entrevista em que diz: "Vou trazer para trabalhar comigo o melhor preparador físico de Portugal". [risos] Mas foi um momento de sofrimento, porque é um momento de passagem. Não quer dizer que não haja prazer, mas largamos coisas, é uma transformação. A saída da zona de conforto, entre aspas, porque era uma pessoa de muito volume de trabalho, porque na altura já coordenava a academia de futebol do Domingos e do Rui Barros, que criei juntamente com eles, no Porto, dava aulas de natação e era o único membro da equipa B do FC Porto que não era profissional, era isso que te queria dizer há pouco. Obviamente tinha aspirações em ser profissional, porque também sentia que o tempo que eu tinha de dedicar às minhas outras tarefas me retirava a possibilidade de me transformar em melhor, porque o tempo para refletir, o tempo para analisar, o tempo para investigar, o tempo para conversar - tudo momentos de grande crescimento -, até o tempo para ver futebol era pouco. Mas foi com uma ilusão muito grande que comecei no futebol profissional, depois de oito anos na formação do FC Porto.

Miguel Cardoso foi adjunto de Domingos Paciência no Sporting de Braga em 2010/11 e 2011/12

Miguel Cardoso foi adjunto de Domingos Paciência no Sporting de Braga em 2010/11 e 2011/12

Joern Pollex/Getty

Enquanto desempenhavas as tuas funções de adjunto, com o Carlos e com o Domingos, também eras como os ucranianos, ou seja, fazias o que tinhas de fazer ou havia comunhão de ideias com o treinador principal?
Sou uma pessoa de opinião e o Carlos também é uma pessoa de opinião, que sabe os caminhos que trilha, mas ele nunca foi uma pessoa que se escusou a conversar, bem pelo contrário. Naturalmente houve momentos em que as pessoas tinham opiniões diferentes e discutiam, mas isso faz parte do processo normal. E com o Domingos era a mesma coisa. Nunca me esqueço do Domingos me dizer logo: "Ó Miguel, a mim podes dizer-me tudo aquilo que quiseres." E muito bem, porque essa é a descrição de um treinador adjunto. Tem de conseguir dizer ao treinador aquilo que pensa, para que ele possa decidir. O respeito pela decisão tomada pelo treinador é a parte imediatamente a seguir ao momento em que lhe digo o que penso. Depois de estar no Belenenses com o Carvalhal, fomos para o Braga, mas depois o Carvalhal saiu e eu fiquei em Braga, cerca de quatro meses, mais ligado ao departamento de formação e depois ainda terminei a época ligado ao Jorge Costa. No final dessa época, aceito o convite do Domingos para trabalhar com ele e já éramos amigos, já nos conhecíamos desde o tempo da equipa B do FC Porto, mas disse-lhe abertamente: vou, mas não quero ser preparador físico, quero ser adjunto. É nessa altura que vamos buscar o Rui Santos, que já tinha trabalhado com o Domingos no Leiria, e eu assumo claramente funções de adjunto. Porque, lá está, naquele momento, as funções de preparador físico já não preenchiam as minhas necessidade de estimulação e as aspirações que eu tinha. Mas passar para outras funções, tão próximo do treinador, com responsabilidade, obviamente, em muitas das tarefas que a equipa técnica tinha, com confiança da parte dele, independentemente de ter sido convidado várias vezes para assumir projetos, até de 1ª Liga, como treinador principal. E o Domingos soube. Porque sempre lhe perguntei se ele estava satisfeito e ele dizia que sim. Recordo-me que uma das vezes até lhe disse: "Podes ser tu a dar a resposta ao Salvador relativamente à proposta que tenho para ir para fora, nem preciso de falar eu". O que quis foi ter sempre a certeza de que tinha um espaço profissional largo, no sentido de estar em crescimento. Agora, voltando ao que perguntaste, "yes man" nunca fui.

Isso quer dizer que tinhas uma influência alargada no processo de treino?
Também, sim. Porque discutíamos as coisas, havia espaço para propor, para discutir, para conversar, para estar ao lado dele e todos fazermos uma construção conjunta, como é normal numa equipa técnica que é funcionante. Acredito que não seja assim com toda a gente, mas na minha equipa técnica é assim que gosto. E sou completamente democrata até ao momento em que tomo decisões. A partir daí sou autocrata. O Domingos era assim também. Obviamente tinha muita confiança em mim e sempre me auscultou, porque éramos amigos - e somos - e porque trabalhávamos em conjunto e convíviamos entre famílias, havia ali um entorno forte. Até ao momento em que entendi que era altura de seguir outro caminho, porque havia outras coisas a que dar resposta, dentro de mim. Há um momento em pensas assim: bem, está na altura de eu me experimentar a mim próprio. Porque a vida é isso mesmo, é aceitar desafios. Aí sim, dei o passo seguinte.

Quando chegaste ao Rio Ave, agradeceste por terem apostado no teu "projeto pessoal enquanto treinador". Nessa altura, qual era esse projeto?
Eu já tinha sido convidado para ser treinador do Rio Ave, noutro momento, não interessa qual. Isso deve-se claramente à posição do dr. Miguel Ribeiro - e do presidente do Rio Ave -, sei que ele foi impulsionador dessa vontade. Ainda a época não tinha acabado na Ucrânia e eu recebo um telefonema a perguntar: "Como é? É desta vez que podemos contar contigo?" Eu disse que não. Mas, passado algum tempo, falei com o Shakhtar e decidi mudar a minha vida novamente, tinha a ver sobretudo com as minhas aspirações, e voltei para Portugal, sem clube. É curioso que chego a casa e projeto umas férias de verão que já não tinha há quatro anos, porque sempre tive férias de inverno, e passado dois dias estava em casa sozinho e pensei que tinha de fazer qualquer coisa. Mandei uma mensagem ao Miguel: "Estou em Portugal e cancelei o meu contrato com o Shakhtar". E pronto, a partir daí as coisas aconteceram. Estou muito grato. Não é que se não fosse no Rio Ave não acontecesse noutro lado, porque ia ser noutro lado, porque não foi a primeira vez que me convidaram para treinador principal. Agora, naquele momento tiveram vontade, anteriormente tiveram vontade e quando mostrei disponibilidade tiveram muita vontade. E assim foi.

Chegas ao Rio Ave com uma ideia de jogo já construída na tua cabeça?
Cheguei ao Rio Ave com uma certeza muito grande de um caminho que queria percorrer. Disso não tenho dúvidas nenhumas.

E foi um caminho que teve imediatamente um grande impacto na Liga portuguesa.
Logo de início, sim. O que significa que era um caminho muito claro, porque se não fosse muito claro então não tinha capacidade para crescer para aquele momento. Isso marca-se logo na pré-época. Eu sabia muito bem o que é que queria. Ou melhor, sabia muito bem a identidade que tenho. E agora falamos um bocadinho daquilo que é a identidade, para mim. Isto é ainda no plano abstrato e depois falamos de algumas coisas que são mais concretas. Isto da identidade tem muito a ver com os valores, com aquilo que eu tenho como valores pessoais. E tu dizes assim: mas como é que isso influencia o teu jogo? Claro que influencia. Porque é abaixo dessa identidade que tu constróis o teu modelo. Porque o modelo é que o dá intenção à tua identidade. É aquilo que vai expressar quem tu és. No fundo, o modelo faz-te viver a tua identidade. E eu vou dar-te uma frase e tu vais perceber: aquilo que eu sou reflete-se no meu jogar e este jogar faz-me ser quem eu sou. [pausa] O Miguel, quando chega ao Rio Ave, sabe muito bem aquilo que quer, em termos de modelo. Agora, a grande transformação é quando esta identidade não é a identidade do Miguel mas é a identidade da equipa. Aí é que está a diferença. Porque há muitos treinadores que provavelmente não passam do momento em que têm uma identidade e até têm um modelo, mas não o conseguem transportar para a equipa. Isso até pode acontecer-me a mim noutro processo qualquer, mas neste não aconteceu. É esta a grande luta de um treinador: fazer os seus jogadores perceberem quais são os valores que podem partilhar em conjunto e eu no primeiro dia discuti-os claramente com a minha equipa.

Disseste isso logo no primeiro dia?
Ah, pois. Não é "disse", é "discuti". Lancei algumas pistas, mas discuti. Porque aquilo que eu sou é importante, mas é ainda mais importante aquilo que nós vamos ser. O que é que nós queremos ser? Eu discuto valores, como sejam: nós vamos querer desfrutar do nosso jogo ou não? Nós vamos caminhar para a excelência ou não? Nós vamos ser responsáveis e ter um compromisso muito grande ou não? Qual é o grau de coragem que vocês estão capazes de ter? Qual é o foco e a visão que vocês têm? Isto tem a ver com valores morais, valores éticos, valores de grande profundidade. E quando tu partilhas isto claramente e assumes e gostas e sentes-te confortável em ser assim, é meio caminho andado para que quando as coisas correm mal tu digas: "Espera aí, nós somos assim". Aquilo que te acontece não marca aquilo que tu és. O que marca aquilo que tu és é a tua identidade. O que te acontece já é algo do plano concreto, dos comportamentos, dos contextos. Já tem a ver com planos de jogo. E os planos de jogo só são 90 minutos. O que tu és, quando o árbitro apita, continuas a ser. E é essa grande diferença quando perdes e quando ganhas, de como queres perder e como queres ganhar. Aquilo que tem de te marcar é o que vais fazer com o que te aconteceu, isso é que tem a ver com a tua personalidade, com a tua identidade. A identidade é supra.

Miguel Cardoso tem contrato com o Rio Ave por mais um ano, mas é provável que não esteja em Vila do Conde em 2018/19

Miguel Cardoso tem contrato com o Rio Ave por mais um ano, mas é provável que não esteja em Vila do Conde em 2018/19

FERNANDO VELUDO / NFACTOS (EXCLUSIVO PARA EXPRESSO)

Aqui a grande questão é como é que fazes para que essa identidade seja partilhada por todos. Para que a meio do jogo, por exemplo, o central, receoso com a pressão de alguém, não mande um pontapé para a frente. Sendo isto um exemplo já num plano mais concreto.
Certo, certo. Mas isso já tem a ver com a credibilidade entre aquilo que é o teu modelo de jogo e o teu modelo de treino. Tens de ser altamente congruente com a ideia de jogo que lanças, com o teu modelo, e com a ideia diária de treino. Isso foi algo que os jogadores disseram várias vezes ao longo do ano: nós treinamos e tudo o que fazemos no jogo bate ali. Nós não treinamos para outra coisa, nós treinamos para o nosso jogar. Porque o que é arriscado no futebol não é fazer coisas que tu treinas. O que é arriscado no futebol é fazer coisas que tu não treinas. Penso que o Xavi disse isso recentemente a propósito da construção de jogo do Barcelona. Isso também foi uma coisa da qual se falou muito sobre o Rio Ave ao longo do ano. Arriscado não é o Barcelona fazer aquilo, porque o Barcelona treina para fazer aquilo e a saída tem sempre a ver com a forma como tu queres chegar à frente. Por isso é que se sai de uma determinada maneira, porque a intencionalidade é o que é que vamos provocar com aquilo. O que é que a regularidade daquele comportamento nos permite alcançar e em que circunstâncias devemos fazê-lo e porquê e como. Porque o processo de treino é um processo de convencimento, de credibilidade do treinador. O treinador pode apresentar no plano teórico um modelo muito bonito, mas aquilo que é fundamental no treinador é quando ele vai para a prática e os jogadores percebem que o que fazem tem correspondência com o que é explicado e acima de tudo tem consequência com comportamentos que lhes dão eficácia. E tudo em cima de uma base que eu não consigo retirar, que é a base do prazer, da fruição, do ficar encantado com aquilo que se faz. É esta a base do convencimento dos jogadores do Rio Ave relativamente àquilo que é a ideia de jogo que lhes foi proposta. Foi o perceberem que havia uma ideia, que havia um treinador que treinava para aquela ideia, que era altamente vinculado a isso, que o grupo partilhava valores dos quais não estava disposto a abdicar e que marcavam a sua identidade, mas depois que, amiúde, em função dos contextos, definiam planos de jogo que aplicavam e, eh pá, umas vezes com sucesso, outras vezes sem sucesso, como é normal numa equipa como o Rio Ave.

Ganhar ajuda, claro.
Naturalmente que ganhar cimenta as coisas. Começar a ganhar foi muito importante. Receber o Belenenses, ir ao Bessa e receber o Portimonense, sempre a ganhar, cimenta muito, mas não tira todas as dúvidas, porque os processos são assim. Mas ajudou a resolver algumas dúvidas, claro.

Mas tiveste resistência por parte dos jogadores?
Naturalmente, naturalmente. Repara numa coisa, tens jogadores, uns mais novos, uns mais velhos, com patrimónios completamente distintos, proveniências completamente distintas, uns que nunca tinham jogado na Europa, uns que nunca tinham jogado em Portugal, uns que vinham de equipas grandes, uns que vinham de equipas pequenas... Estamos a falar de um plantel que sofreu nove ou dez saídas brutais. O plantel da época 2017/18 não tem nada a ver com a época 2016/17. As saídas são inacreditáveis: Petrovic, Krovinovic, Gil Dias, Traoré, Roderick, Rafa, Gonçalo Paciência, Pedrinho... Eh pá, um conjunto alargadíssimo de jogadores. E quando se pega nesta gente toda e se faz com que eles vivam coisas que eles não conhecem, é natural que eles digam que é diferente. E tudo o que é diferente, à partida, gera estranheza, porque tem a ver, lá está, com a necessidade de saíres da tua zona de conforto. Eu até ia para o futebol profissional, que até era o meu sonho e um objetivo, e até chorei para conseguir sair da escola, imagina os jogadores para jogarem um jogo novo. Agora, o que marca não é esse momento, o que marca é o que acontece a seguir. Momentos de tentativa de levá-los naquele caminho e eles perceberem: "Eh pá, a gente até gosta de treinar assim. A gente até gosta de fazer assim. Isto até dá um gozo do c..." E, a cada treino, eles desfrutam e depois começam a sentir que são competentes, porque há um jogo posicional que lhes dá capacidade de ter muita bola, que é difícil de contrariar por parte dos adversários, e há uma intencionalidade de correr muito menos do que de passar, há uma vontade de ser dominador e não de ser dominado, há uma vontade de pôr os outros em stress emocional e nós conseguirmos gerir isso mesmo, há uma vontade de não ter vertigem em chegar à baliza, mas há uma vontade de trabalhar para poder ser vertiginoso nos momentos em que temos de sê-lo... Agora, resistências, sim, é claro que sim. Não é fácil virares-te para o Cássio - e o Cássio é um exemplo paradigmático do que é a transformação num guarda-redes - e dizeres-lhe: "Aos 37 anos, o que é que tu podes fazer que ainda não fizeste? Este ano vais fazer coisas que nunca fizeste e eu acredito que no final tu vais olhar para mim, olhos nos olhos, e vais dizer assim: 'Ó mister, eu quando acabar, um dia, a falar aos netos, vou lembrar-me de si, o homem que chegou à minha beira e me disse que aos 37 anos eu ia fazer coisas diferentes.'" Porque ele fez coisas diferentes. Agora, passou por um processo de muito trabalho, com muito mérito do treinador de guarda-redes que trabalhou com ele e muito mérito dos colegas que se disponibilizaram também a ajudá-lo nesse caminho.

Cássio, guarda-redes do Rio Ave, a receber indicações de Miguel Cardoso

Cássio, guarda-redes do Rio Ave, a receber indicações de Miguel Cardoso

Gualter Fatia/Getty

Houve momentos mais importantes no processo de convencimento?
Houve momentos chave. Por exemplo, a propósito da construção curta... Ao contrário do que passou, a minha equipa não tinha que sair sempre curto. Aquilo que nós fazíamos era encontrar um dispositivo inicial, com determinadas dinâmicas, que permitisse ao guarda-redes escolher. Ou seja, para mim, quando se joga, o que é fundamental no futebol é dar ao portador da bola várias escolhas. Essas escolhas não são umas escolhas quaisquer, são aquelas que nós queremos que sejam as escolhas, obviamente. Mas a possibilidade de nós termos escolhas é a melhor coisa do mundo. Quer dizer, eu se só tiver a possibilidade de ir para casa por um único caminho, vou toda a vida por aquele caminho. Mas se tiver vários caminhos, posso escolher.

Um pode estar fechado e vais por outro.
Exatamente. Hoje apetece-me ir por ali, vou para ali que é mais rápido, ou vou por ali que é mais bonito... Portanto, há escolhas. O que fizemos foi insistir permanentemente com a equipa para que desse escolhas ao Cássio. Escolhas essas que podiam ser curtas, que podiam ser mais largas e até, estrategicamente, em alguns jogos, montámos cenários distintos de construção para que ele tivesse escolhas em função das formas como os adversários nos poderiam pressionar. Nem sempre ele, ou eu, ou os colegas disponibilizámos os melhores recursos para os momentos, mas, como regularidade, disponibilizámos recursos que permitiram ver coisas inacreditáveis, inacreditáveis, em termos de futebol.

Contra o FC Porto, em Vila do Conde, há uma certa altura em que ele deve ter tocado na bola mais de dez vezes em dois minutos, sem qualquer problema.
É verdade, é verdade. Porque o objetivo da saída é muito simples: é encontrar o homem livre. Onde é que está o homem livre? Se o adversário não pressiona o guarda-redes, supostamente esse homem livre não existe.

O Sporting, por exemplo, pressionava o Cássio e ele calmamente procurava colocar no colega que ficava livre.
Exatamente, exatamente. Ou seja, normalmente o homem livre é o guarda-redes e a bola irá mais vezes ao guarda-redes. O que ele terá sempre de fazer é ter calma, é não se precipitar. Porque se ele não está pressionado, então é como outro jogador qualquer noutra zona do campo. Calma, deixa-te estar. Porquê? Porque compete aos colegas movimentarem-se no sentido de proporcionarem um homem livre, uma solução de passe. Claro que nem sempre se decidiu bem, mas essas dinâmicas de movimentos permitem encontrar linhas de passe mais próximas, mais longe, mais à largura, mais dentro do adversário, mais às costas das defesas... Naturalmente se o Cássio tivesse a capacidade de passe longo que o Ederson tem, por exemplo, muitas vezes ele se calhar teria optado pelo Guedes, porque nós também queríamos que o Guedes esticasse na profundidade, para levar defesas e ganhar espaço por dentro. Confesso que se calhar sou ao contrário de muitos treinadores. Muitos treinadores gostam de jogo exterior, eu adoro jogo interior. Porque é no coração que se mata as pessoas. Para cortar um braço, podemos morrer na mesma, mas vai sangrar muito e vai demorar. Se eu espetar a faca no coração, mato mais rápido. E o nosso processo de construção tinha muito a ver com a saída pelo espaço interior, muito, muito. Precisamente porque a partir daí tens sempre dois espaços laterais para jogar, mas quando metes para um lado geralmente ficas logo condicionado e só tens uma opção para dentro.

Quando a bola está no Cássio, essas soluções de que falas estavam hierarquizadas ou ele tinha liberdade?
Não, não, de todo. O que nós dizemos é: "Tens aqui, tens ali, tens acolá e acolá. Escolhe. O que tu escolheres para mim está bem feito". Agora, ele teve foi a coragem, muitas vezes, de encontrar soluções que permitiram ter mais certeza, por regularidade, por tendência. Em 20 vezes, ele encontrou 18 soluções que teoricamente para quem vê de fora são de risco, mas para nós não eram risco, porque eram o que nós fazíamos. E tu perguntas assim: mas treinavam assim? Assim e pior: treinávamos com dez contra onze. Agora tiro um médio, tiro o Pelé. Agora tiro o Tarantini. Agora tiro o Geraldes. Agora tiro um ala. Agora tiro um lateral. Agora o Guedes. E fazia isto 20 vezes seguidas. E contra a equipa B, por exemplo, em que dizia: agora vocês pressionam o guarda-redes, agora não pressionam o guarda-redes, agora fazem parede ao guarda-redes daquele lado, agora ficam à espera. Isto é dar soluções em contextos de dificuldade acrescida e incorporar permanentemente o guarda-redes nos exercícios de treino. E depois há uma coisa fundamental: o que é que é tão importante assim que faz a diferença toda quando se quer jogar desta forma? Não se pode receber bolas de costas. É preciso estar de apoios abertos. É preciso o próprio Cássio permanentemente estar preparado para receber a bola, seja para o lado contrário ou para o mesmo lado, é preciso que os colegas se movimentem para que o guarda-redes tenha soluções. Agora, também disse ao Cássio: "Não há problema nenhum se tu entenderes que a bola deve ser longa. Se entenderes que a equipa está num momento em que não quer sair curto, ou porque não te deu linhas de passe ou porque o adversário está numa fase muito pressionante... São vocês que decidem". São eles que decidem. Para mim, este é o princípio de tudo. O treinador não pode decidir pelo jogador. O treinador tem de querer que o jogador seja corajoso, mas é para mim tão corajoso sair curto como ficarmos todos cá atrás, a 10 metros da baliza, em linhas baixas. Só que são formas completamente diferentes de ser corajoso. Uma dá um prazer do caraças e outra provavelmente dá 90 minutos de sofrimento. Eu prefiro ter prazer.

Relativamente aos momentos chave...
Há um momento que é altamente catalítico. À 2ª jornada, nós vamos jogar ao Bessa... E já muita gente dizia: "Um dia destes vão sofrer um golo a sair a jogar curto, o adversário vai pressionar e vão sofrer". E eu disse: "Pronto, gente, quando isso acontecer, sou eu que sofro esse golo. Sou eu que, na conferência de imprensa, assumo o erro pelo processo, por mim, e não por vocês, porque vocês fazem aquilo que eu vos peço."

E no Bessa sofrem um golo quando uma bola longa é chutada para a frente.
Foi uma bola longa. A gente vai ao Bessa, o Marcelo recebe uma bola na direita, a equipa não lhe dá uma solução de passe e ele 'boom', bola cruzada lá para a frente. E o lateral direito do Boavista vem cabecear ao meio-campo, isola o avançado e 1-1, aos 78 minutos - e nós antes disso com o jogo controladíssimo. Ou seja, curiosamente, o primeiro golo que nós sofremos é numa bola longa e não numa bola curta. Isto significa que toda a gente morre. A questão aqui é como é que tu queres morrer. Há pessoas que querem ser cremadas, há pessoas que querem ser deitadas ao mar e há pessoas que querem ser enterradas na terra. É tudo uma questão de escolhas. Mas a tua escolha condiciona o leque de oportunidades que tu vais criar à frente. E eu sempre entendi, e a minha equipa aceitou e entendeu, que as escolhas que estávamos a fazer eram aquelas que provavelmente nos iriam permitir cumprir objetivos. A possibilidade de jogar como jogam as equipas grandes. A possibilidade de ser aquilo que eles querem ser. A possibilidade de acreditarem que estariam mais perto de cumprir objetivos que são objetivos de vida deles. E objetivos que não são mais do que melhorarem as suas vidas, jogarem num clube melhor. É bom jogar no Rio Ave? É bom, claro. É bom ser treinador do Rio Ave? É bom. É possível ser melhor? É possível ser muito melhor. Depois é todo um conjunto de coisas que acontecem com naturalidade, porque eles começaram a perceber que conseguiam ter bola durante muito tempo, que conseguiam gerir tempos de jogo, que não tinham sempre um jogo vertiginoso, que tinham um jogo que tinha tempos, porque começaram a perceber que o futebol é como a música: a música que é toda do mesmo ritmo a gente não ouve durante muito tempo. O futebol precisa de nuances, tem tempos, tem timings, tem momentos, tem espaços que é preciso utilizar e criar, tem um desbloquear de situações que é preciso fazer - e tudo isto é, no fundo, a nossa construção. E essa construção, lá está, baseada numa identidade muito clara, num conjunto de valores que todos assumimos. Porque eu não posso criar um grau de exigência brutal em termos de treino e os meus jogadores antecipadamente não acreditarem que o valor da excelência é um valor fundamental. Porque o sofrimento - salvo seja - e o prazer de nos entregarmos a uma tarefa de treino... Eh pá, às vezes a chover, com frio, isso só se vai fazer cabalmente se nós percebermos que isso nos vai permitir chegar a um valor que nós temos dentro de nós. Eu quero chegar à excelência e estou disposto a fazer este sacrifício de me levantar para vir treinar, quando hoje o que me apetecia era ficar na cama, porque eu sei que isto é o meu caminho para a excelência. Porque repara numa coisa, eu não me esqueço de jogar futebol na rua quando era miúdo. Eu nunca fui jogador, portanto estou a viver, como treinador, aquilo que nunca consegui ser como jogador. Vivi num contexto de desporto, porque o meu pai foi professor de educação física, o meu irmão também, e sempre vivemos apaixonadamente o desporto. Joguei voleibol, pólo aquático, futebol, mas nunca fui atleta. Mas brinquei muito na rua, porque sou de uma aldeia, que agora é uma cidade, que é a Trofa, e a minha rua era de terra e nós jogávamos futebol descalços. Nunca me esqueço que havia sempre um que levava a bola para jogarmos. E quando esse jogador que levava a bola, que geralmente era o gordinho, não tocava na bola, o que é que ele fazia?

Pegava na bola e ia-se embora.
Pegava nela, metia-a debaixo do braço e dizia: "Acaba o jogo porque eu não estou a jogar". Ou seja, até o gordinho queria ter direito a jogar. Porque aquilo que nos alimenta, aquilo que é natural em nós é o prazer de tocar na bola. A bola é o elemento catalisador de tudo isto. Portanto, só assim é que tu efetivamente vais desfrutar do jogo. Há uma frase muito gira do professor Vítor Frade que diz o seguinte: "Tê-la pouco, tocá-la muito". Isto é na perspetiva individual: tê-la pouco no momento, mas tocá-la muito para os outros. Tê-la muito como equipa e pouco como individual. Mas tê-la sempre como equipa. O Riquelme também tem uma expressão muito engraçada que é: "Não me preocupa muito quando uma equipa está a correr muito, preocupa-me quando ela começa a jogar". Eh pá e eu acredito muito nisto. É muito mais interessante para nós e preocupante para o adversário quando nós jogamos do que quando corremos. Eu quero que a minha equipa corra muito pouco. Só precisa de correr quando não tem a bola, porque quando a tem eu quero é que eles saibam posicionar-se para tê-la, criando indefinições nos adversários, pondo os adversários em situações que não controlam. Ainda esta semana li uma entrevista do Iago Aspas em que ele dizia algo com que concordo plenamente: "Às vezes a melhor desmarcação que posso fazer é ficar quieto no meu lugar". Às vezes. Mas quando são essas vezes é mesmo assim. Muito difícil foi dizer aos meus jogadores que em alguns momentos tinham era de estar quietos num determinado sítio. Espera, porque nós atraímos aqui para libertar aí. Estando aí, tu vais ser decisivo e a bola quando vier a ti não podes ficar com ela, é para tocar, porque atraíste para outros poderem entrar, para outras coisas poderem acontecer. Isto já tem a ver com dinâmicas da equipa, que resultam do sistema, obviamente, mas resultam de algo ainda mais profundo. Há uma outra expressão muito engraçada, já não sei de quem, que diz que o importante no futebol não é jogar ordenados, é ordenar-nos enquanto jogamos. Ou seja, nós temos uma dinâmica tal que na ligação entre todos, em função dos princípios da equipa, todos devemos saber o que cada um faz, ao mesmo tempo, para que todos, no conjunto das nossas funções, sejamos capazes de funcionar como equipa, assegurando aquilo que queremos, que é ter a bola, e estarmos preparados para o momento em que a perdemos. Isso tem a ver como uma ordenação, que não é uma ordenação qualquer, é aquela que o treinador quer.

Miguel Cardoso ainda não sabe em que clube estará em 2018/19, apesar de ter vários interessados

Miguel Cardoso ainda não sabe em que clube estará em 2018/19, apesar de ter vários interessados

FERNANDO VELUDO / NFACTOS (EXCLUSIVO PARA EXPRESSO)

A fase de construção do Rio Ave era manifestamente excecional, no sentido em que tinhas imensas dinâmicas coletivas para dar soluções ao portador. O que faltou para a fase de criação ser também desse nível? Porque as oportunidades de finalização não eram criadas com tanta frequência. Não havia tantas dinâmicas coletivas nessa fase, havia mais liberdade individual - ou até uma falta de criatividade individual dos jogadores?
Concordo em parte com o que estás a dizer, mas não concordo na totalidade. Há aqui coisas engraçadas, até em termos estatísticos, que nos permitem de alguma forma refletir sobre o que estás a dizer. O Rio Ave é a equipa da Liga com mais passes efetuados; é a equipa da Liga com mais passes longos de sucesso - e, se nós não esticávamos o jogo na frente, isso tem a ver necessariamente com as nossas variações de corredor, porque nós atraíamos a um lado para jogar no outro; é a equipa que tem a segunda maior taxa de posse de bola; é a equipa que sofre mais faltas da Liga, em média, por jogo - o que significa que não era fácil parar-nos, ou pelo menos, que as equipas ficavam nervosas e tinham de recorrer à falta para nos parar; é a equipa que, a seguir aos quatro grandes - já incluo aqui o Braga - menos golos sofreu; e curiosamente não é a quinta equipa que mais golos marcou, mas é a quinta equipa com um melhor diferencial entre marcados e sofridos. Isso significa que não marcámos muitos golos, é verdade. Repara que nós nas posições da frente jogamos com três jogadores que não são jogadores de grande profundidade nem de grande velocidade, são todos eles jogadores de grande qualidade técnica. O Rúben, que entretanto saiu, o Francisco e o João Novais, e o Óscar também - foram esses os que jogaram mais vezes, depois de vez em quando também o Pedro Moreira, o Nuno Santos...

E o Diego.
E o Diego e até o Gabrielzinho. Tirando o Gabriel, que jogou pouco, e o Nuno, que jogou muitas vezes mas quase sempre por poucos períodos de tempo, os outros eram todos jogadores de características muito iguais. Se me perguntares se acho que se aqueles jogadores fossem diferentes poderíamos ter tido coisas diferentes à frente, é verdade, mas também acho que o jogo se faz muito mais pelo equilíbrio das quatro fases do que propriamente pela dominância de uma sobre as outras. E aquilo que encontrei foi muito mais um equilíbrio entre os diferentes momentos com esses jogadores do que um desequilíbrio que se calhar me aconteceria se eu tivesse outros caminhos ou pedisse outras coisas com outros jogadores. Acho que isso é muito importante de perceber: o que é que nós queremos na globalidade do jogar. Quem é que se adapta e se adaptou melhor àquilo que tu querias, porque jogar com três jogadores em espaços interiores não é fácil, é preciso ter um recorte técnico e um conforto muito grande para conseguir jogar em espaços confinados, naturalmente. E quiçá outros jogadores que nos podiam dar mais verticalidade, que nos podiam dar mais chegada rápida à frente, se calhar iam tirar-nos outras coisas que nós também queríamos. Nunca senti que nós tivéssemos dificuldades em fazer golos. O que senti sempre foi que fomos uma equipa muito equilibrada em todos os momentos. Nós tínhamos gente que era muito irrequieta no momento da perda, quer através da reação forte que tinham na frente, condicionando quase todas as equipas em termos de sucesso de saída, mas depois também quando o conseguiam fazer, conseguíamos ter o controle sobre os jogadores adversários que estavam a preparar o ataque. Tínhamos uma preocupação grande em resolver na frente e, se não conseguíamos, tínhamos de remediar lá atrás. Conseguimos muitas vezes também fazer golos em ataques rápidos, ainda que sem sermos vertiginosos no ataque rápido, tendo sempre uma consciência... Podíamos ter sido mais? Podíamos, mas com os jogadores que tínhamos se calhar era difícil. Porque o Diego não é extremamente profundo e rápido, o João também não, o Rúben também não, o próprio Chico é mais um jogador com bola do que sem bola, em termos de progressão... O que acho que tivemos também de muito bom foi o critério na transição ofensiva, porque nós conseguimos muito bem tirar a bola da pressão em muitos momentos, fosse para a frente, fosse para a largura, e depois tínhamos critério suficiente para entender se devíamos entrar em ataque organizado ou em ataque rápido. Por exemplo, fizemos golos em ataque rápido na Luz, ao Portimonense, em Braga... Mas não éramos uma equipa que o explorava muito, porque éramos uma equipa que queria ter a bola.

Muitos desses golos funcionavam bem porque a construção curta atraía muita gente e depois havia mais espaço lá atrás.
Exato. Agora, eu percebo o que me estás a dizer: investíamos tanto na saída e depois muitas vezes não tirávamos o proveito que podíamos tirar para ir lá marcar. É verdade, nisso concordo que podíamos ter eventualmente tirado mais proveito. Mas também muitas vezes saíamos para lá e conseguíamos instalar-nos, ou seja, não saíamos e perdíamos. Recordo-me de um jogo, que foi talvez o jogo mais difícil - ou melhor, com consequências mais dramáticas - por nós termos insistido no passar a bola para trás. Até tivemos depois de fazer um alinhamento relativamente a alguns comportamentos. Foi em Guimarães. Sem necessidade, nós fizemos a bola chegar muitas vezes ao Cássio, mas mesmo sem necessidade, com soluções até para jogar para a frente. Fizemos chegar ao Cássio e depois nem demos as soluções de ligação que devíamos ter dado imediatamente, o que permitiu ao Guimarães passar de um momento do jogo em que nós estávamos a controlar e a assumir para um momento em que passámos por alguma tensão e alguma pressão. E, na sequência disso, sofremos de canto. Porque a equipa ficou instável, se calhar a certo momento atemorizou-se e sofremos. Aí senti isso. Mas também sempre senti que ganhávamos muito mais com aquilo que fazíamos do que aquilo que perdíamos. Nunca mais me vou esquecer que quando vamos jogar a Paços de Ferreira a penúltima jornada do campeonato, na conferência de imprensa de antevisão, o treinador João Henriques...

De certo modo compara o Rio Ave com o Manchester City.
Porque alguém lhe diz que é fácil saber como é que o Rio Ave joga. E ele diz: "Pois, toda a gente sabe como é que o Rio Ave faz, toda a gente sabe como é que o City faz, toda a gente sabe como é que o Barcelona faz. Saber é uma coisa, conseguir contrariar é outra." Eh pá, quando nós estamos a duas jornadas do final e um treinador adversário diz isto... E também disse que o Rio Ave era das poucas equipas, tirando os grandes, que tem efetivamente um ataque posicional claro, eh pá, isto é um orgulho brutal. Isto alimenta os meus jogadores. É pegar nestas coisas e fazer-lhes perceber isto. Nunca mais me vou esquecer que nós jogámos nas Aves e empatámos 0-0, para a Liga, à 6ª ou 7ª jornada, já não me recordo ao certo, e eu recebo uma mensagem do Tarantini a perguntar se eu podia esperar por ele, porque ele tinha ficado no controlo anti-doping. Eu esperei e quando ele se sentou ao meu lado no carro disse-me: "Mister, porra, pá, que desfrute do c.... Um gajo não ganhou o jogo mas eu hoje diverti-me como o c..... Eh pá, jogámos tanto à bola, minha nossa senhora". Eh pá, isto é inacreditável. Isto é o momento em que tu sentes que aquela identidade e aquele modelo já não são teus, são nossos, porque eles já o absorveram completamente. É por isso que é muito fácil chegar à 4ª jornada e ir jogar com o Benfica, depois de ter vencido três jogos. Tu dizes assim: ora bem, esta merda agora é um momento engraçado. E chegas aos jogadores e perguntas assim: "Como é que vocês querem jogar com o Benfica? Nós vamos jogar como vocês quiserem jogar. Há duas maneiras: ou montamos um ferrolho e ficamos cá atrás e se calhar vamos chegar lá à baliza, ou então vamos jogar igual, como temos jogado, e vamos testar-nos. O que é que nós perdemos, se perdermos? E o que é que nós ganhamos, se ganharmos? Que caminho é que vocês querem percorrer?" E os jogadores não tiveram dúvidas: "Vamos jogar igual, caralho." Então vamos. E vamos ver se conseguimos competir. E competimos. Competimos muito a sério nesse jogo. Fomos muito competentes e muito competitivos, mantendo alguma regularidade dentro do que queríamos. Claro que quem joga com o Benfica tem momentos diferentes ao longo do jogo, mas chegas ao fim e sais dali íntegro. E isso permite-te encarar a semana seguinte com a confiança de que estás no caminho certo e não tens de sair dele. Depois, quando jogas com o Sporting...

Esse jogo também foi muito competente.
Eh pá, foi brutal, o jogo com o Sporting foi brutal. Basta ouvir a conferência de imprensa do Jesus. O Sporting ganhou e, eh pá, eu não tenho de me gabar disto, mas alguns dos jogadores do Sporting, no final do jogo, vieram ter comigo e disseram-me assim: "Mister, o que é isto, pá? Minha nossa". Eles reconheceram o que se passou. Aliás, eu nunca falei muito sobre isso porque as pessoas foram falando, eu não tinha de falar, por isso é que eu nem dou entrevistas, tanta gente falou que eu não tinha de falar. Depois disto é quando eu digo que eu não tenho de lhes fazer acreditar que eles gostam de ser assim, porque já sei que eles gostam, mesmo que não corra bem o jogo. Tenho é de fazer alinhamentos, ou seja, trazê-los do plano de jogo, da esfera da ação e dos comportamentos, para fazê-los vir cá acima, à identidade, ao modelo. "Aquilo que vos marca, não é isto que vos aconteceu hoje, aquilo que vos vai marcar é aquilo que nós vamos fazer com aquilo que nos aconteceu hoje." Isto é o nosso plano de jogo, não correu bem, mas qual é o problema? Porque repara numa coisa [levanta-se e começa a andar para diferentes sítios da sala], tu quando começas uma semana estás no ponto A e imediatamente queres atingir o ponto B. Depois do jogo acontecer, em que ponto estás? Estás à mesma num ponto A qualquer. Tu gostavas que o próximo ponto A fosse no sítio onde estava aquele ponto B, mas muitas vezes isso não é possível. Agora, o importante é que mesmo que vás parar aqui lado, que pode ser um empate ou uma derrota, tu digas: o que é que eu vou fazer agora? E o que tens de fazer é ir à essência de ti próprio. Portanto para mim foi muito mais fácil do que noutros contextos lidar com as derrotas. Porque a minha equipa tinha uma consciência muito clara daquilo que queria ser e daquilo que era. Houve momentos difíceis em que foi preciso fazer esses alinhamentos, foi preciso dizer: "Ei, ei! Calma, c... Calma". Foi preciso eles dominarem isto, terem essa capacidade.

Quais momentos?
Houve outros momentos difíceis: em janeiro, quando aparece na imprensa a questão do match fixing'da época anterior. Disse-lhes: "Gente, isto não é para nos perturbar a nós. Nós não somos isto." É o mesmo raciocínio. Isto está a acontecer-nos, mas nós não somos isto. Não vamos deixar que isto perturbe aquilo que nós somos. Porque há coisas que nós não podemos resolver. Não posso resolver ter chegado ao Dragão, ter perdido por três e nesse jogo até podia ter perdido por sete. Fizemos um jogo muito mais competente quando levámos cinco do que quando levámos três. Ponto. Agora, o que interessa é perceber o que podemos fazer depois de perder. Analisar o porquê. Porque os gajos da frente desligaram, porque sabíamos que era fundamental sermos altamente pressionantes quando perdíamos a bola, porque o FC Porto em dois passes mete a bola nas costas, porque sabíamos que se não resolvéssemos os problemas à frente, atrás íamos sofrer para carago, porque nós sabíamos que podíamos ter sido muito mais competentes do que fomos a pressionar a bola... Porque é que os jogadores da frente não foram tão competentes como noutros momentos e expuseram a equipa atrás? Porque é que nós não conseguimos resolver esses problemas atrás? Porque depois é tudo visto na dimensão coletiva. Por mais que estejamos em superioridade, não são movimentos fáceis de dominar, em função da dimensão atlética dos jogadores. Efetivamente esses momentos de alinhamento tiveram de acontecer algumas vezes. Também o fiz quando jogámos no Dragão e perdemos por 5-0. Fechei o balneário durante 15 minutos e tive de fazê-los perceber que nós não éramos aquilo e que aquilo não tinha de nos influenciar. O que era importante era o que seríamos capazes de fazer logo no dia seguinte de manhã, quando fossemos treinar. Porque perder perde toda a gente. Na semana anterior tinha ido lá o Marítimo e tinha perdido por quatro a defender com três centrais e todos lá atrás - não é a jogar com três centrais, é a defender com três centrais e com os outros todos. E perdeu na mesma.

Já que falaste no FC Porto, recordo-me que nesse 3-0 tu até falaste, na conferência de imprensa, dessa falta de reação na frente e do controlo de profundidade do setor defensivo. O controlo da profundidade por parte do setor defensivo não foi um problema para ti, esta época? A ideia que fica é que, a certa altura, o Rio Ave tirava imensos foras de jogo ao adversário e utilizava muito bem esse recurso para encurtar o campo, mas, depois, especialmente nos momentos de transição defensiva, parecia exagerar no risco, porque mesmo quando o portador da bola não estava pressionado...
Mantinha-se a linha alta.

O setor defensivo não recuava para retirar a profundidade, continuava a manter-se alto para poder tentar o fora de jogo.
Certo, se não retiras a profundidade tens problemas.

Morreste algumas vezes assim.
Não foram muitas vezes. Tirando o jogo com o FC Porto, se calhar tens dificuldade em apontar mais golos assim.

Contra o Portimonense também.
Sim, aí também. Mas aí... Esse jogo foi marcado por uma semana muito difícil, com a equipa num momento emocional complicado, porque foi naquela altura em que se fala da saída do Marcelo para o Sporting. Portanto acaba por ser um jogo muito particular. Mas, ok, há esses dois jogos. Nós quando perdemos por cinco na Luz sofremos três golos de bola parada, não teve a ver com isso, portanto depois não houve muito mais momentos. Ninguém nos fez golos de contra ataque. Nós fomos capazes de corrigir quando fizemos mal, porque soubemos que fizemos mal. No modelo as coisas nunca são perfeitas, mas a gente sabe que quando faz bem é menos provável ter problemas. Obviamente sabemos que não podemos ter a bola descoberta e manter a linha alta e dar 40 metros nas costas, principalmente quando o adversário tem jogadores que vão à profundidade. Porque, por exemplo, se é o Luiz Phellype, do Paços de Ferreira, que está a ponta de lança, a gente não tem problema nenhum em manter a linha alta, porque ele vai é fazer um movimento de aproximação. Agora, se estiver lá o Marega, que alarga ao corredor e pira-se para ir buscar às costas, com o Aboubakar a vir buscar entre linhas para receber e meter logo lá, então aí já tens problemas. Ou seja, também tem a ver com questões estratégicas, porque há momentos em que podes manter a linha alta. Até porque eu acho que a grande diferença entre as equipas de altíssimo nível e as que podem ter algum nível é essa: não é baixar a linha pelo facto de a bola estar descoberta, é apenas quando se pressente que há intencionalidade em fazer o serviço à profundidade, o que é uma coisa distinta. Esse é o patamar de excelência. Não é apenas pela bola estar descoberta, é por que há de facto uma intencionalidade de agressão à profundidade. E tu dizes assim: isso já é um patamar de risco.

De muito risco, porque mesmo lendo as intenções do portador da bola dificilmente tens tempo para recuperar a profundidade.
O que é que é fundamental para controlar a profundidade? Primeiro, a forma como posicionas os teus apoios. Segundo, compreender o adversário com quem estás a jogar, porque há adversários pelos quais tens de ter mais respeito, em função das suas características particulares, porque mesmo que o adversário esteja três metros atrás, partindo de frente, e mesmo que tu tenhas os apoios orientados, ele vai-te buscar os metros, mas isso tem a ver com quem é o teu adversário. Mas também tem muito a ver com a intencionalidade, porque não é toda a gente que mete. Por exemplo, lembro-me no Braga, no tempo do Domingos, com o Hugo Viana, ou até antes, com o Hugo Leal, que em qualquer momento em que eles tivessem a bola nos pés tinhas de tirar a profundidade, porque eles metiam a bola nas costas sem olhar para lá sequer. Mas isto tem muito a ver com o estudo que fazes do adversário e tens de ter consciência de quem são os jogadores do adversário com capacidade para fazê-lo. Isso é algo que se pode analisar e creio que fizemos esse trabalho em termos de equipa técnica e com os jogadores. Quando falhámos, falhámos redondamente. De facto, falhámos no jogo contra o FC Porto. E agora dizes-me assim: ah, mas os teus defesas deviam ter entendido que os gajos da frente não estavam a ser pressionantes o suficiente e deviam imediatamente ter retirado a profundidade. Ok, concordo. Se eles percebem isso, baixem. Agora, também sabes, porque também és treinadora, que muitas vezes a capacidade deles de perceberem isso logo na altura não é a melhor. Isso é um grau fantástico de inteligência de leitura do jogo do jogador e quiçá do treinador, porque se calhar também falhei, devia ter dito para eles baixarem logo, mas também não é assim tão fácil naquele momento, num estádio em que não te ouvem e num contexto de emocionalidade muito grande. Acho que, acima de tudo, o que é fundamental é fazermos estas análises na globalidade, porque acho que na globalidade a equipa foi muito competente a gerir esses momentos. Tive centrais de grande capacidade de controlo da profundidade, até muitas vezes a irem buscar jogadores à profundidade, com movimentos aos corredores, que também é um princípio que quero que aconteça, em termos de prevenção da possibilidade de sair cruzamento, com o encaixe de médios no espaço central. Acima de tudo, foi uma equipa muito corajosa e acho que chego ao fim com uma consciência clara de que as vezes em que fomos penalizados foram muito menos do que aquelas em que efetivamente conseguimos tirar vantagem nesse tipo de arrojo de posicionamento, porque permitiu-nos estar sempre curtos, sempre juntos. Agora, há equipas que são talhadas para explorar esses espaços. Jogar com o Aves, por exemplo, é sempre um risco, quando eles têm jogadores com aquela velocidade, mas em três jogos com o Aves sofremos golos num e curiosamente nem foi num lances desses - podia ter sido, mas nem foi. O que quer dizer que quando se faz uma análise global, que eu também a faço, sobre aquilo que quero para o meu jogar, para aquilo que quero para o futuro, fizemos bem. Isto é como no xadrez, um minuto de distração e comem-te o rei. Com equipas com o FC Porto é claro que isso acontece.

Depois desse jogo analisaste e corrigiste?
Claro que sim. Depois do jogo de Guimarães, por exemplo, mostrámos e voltamos a perceber o que se passa nas nossas saídas e o que nos tinha provocado instabilidade, e depois do FC Porto falámos muito da necessidade de sermos firmes à frente. E depois, por exemplo, com o Sporting, já não tivemos esses problemas.

A questão de ir jogar com três centrais a Alvalade foi uma estratégia ofensiva ou defensiva?
As pessoas sempre que veem uma equipa com três centrais pensam que é porque o outro joga com dois pontas de lança. A intencionalidade de jogar com três defesas centrais naquele momento teve muito mais a ver com a capacidade de jogar do que propriamente com a capacidade de defender. Ou seja, eu sabia que o Sporting ia fazer uma pressão muito forte e queria ter soluções de largura fáceis para poder efetivamente sair da primeira pressão do Sporting para fora, porque o Sporting é uma equipa muito competente por dentro, com jogadores muito pressionantes que eu sabia que nos iam saltar de frente. Ao ter largura e profundidade, sabia que ia ter mais soluções. E funcionou, atenção. O que não funcionou a seguir foi que eu para fazer isso tive de tirar um homem de dentro, ou seja, passei a jogar só com dois médios dentro. E, lá está, os jogadores que estavam por fora, o Diego e o João, depois não tiveram capacidade de ligar à frente, faltou-nos aquele último momento, faltou-nos alguma capacidade de deslocamento.

Qual foi o jogo que te deu mais gozo preparar, com o adversário mais complicado?
Olha, os três jogos que jogámos com o Braga. É curioso, porque vem entroncar numa crítica que surgiu amiúde durante o ano, dizendo que nós éramos sempre iguais, que o Rio Ave jogava sempre da mesma maneira. Do ponto de vista estético, quiçá, mas sob o ponto de vista das dinâmicas e do plano de jogo, não. Nos três jogos com o Braga nós jogámos sempre de forma diferente e o último deu-me um gozo terrível de preparar. Porquê? Primeiro, foi preparado em dois dias. Nós jogámos com o Paços, fechámos o 5º lugar, eu dou dois dias de folga e nesse segundo dia tínhamos a gala do clube e aquilo acabou às 3h da manhã, por isso eu comuniquei aos jogadores que tinham mais um dia de folga. E depois pôs-se aqui um desafio ao treinador: como pôr novamente a equipa em estado de prontidão, porque era um jogo importante para o Braga e para nós, porque uma coisa é ficar em 5º lugar e outra coisa é bater um recorde de pontos. Ficar em 5º deixou-nos na história por igualdade de um resultado desportivo que o clube já tinha feito, mas fazer 51 pontos dava-nos oportunidade não só de bater o recorde de número de vitórias em casa mas também de bater o recorde do número de pontos. Isto é importante para o treinador e para os jogadores porque isto é legado. Tivemos de preparar o jogo contra um Braga que vinha de um ciclo brutal, com muitas vitórias e com um empate com o Boavista no jogo anterior. No terceiro dia de folga nós tínhamos um jantar de aniversário e eu comuniquei ao presidente que só aceitava que os jogadores fossem se às 22h30 saíssem, estivessem jantados ou não. Eles quase não acabaram de jantar e tiveram de sair. Foi o primeiro momento em que eles perceberam: "Espera lá que isto ainda não acabou". No dia seguinte chego ao treino e converso com eles no balneário, para lhes dizer: "Ó gente, temos dois dias, é o Braga... Vocês querem ficar para a história? Vamos dar mais brilho a algo que já é tão bonito? Então é assim: vamos preparar este jogo de forma diferente. Há um processo claro de construção do Braga, em que a dinâmica ofensiva passa muito pelo jogo nos corredores, é uma equipa que não tem um jogo interior tão forte, com todo o respeito. Nós por dentro somos fortes e vamos condicionar a possbilidade deles construírem por fora, vamos obrigá-los a vir para dentro. Vamos estar curtos, vamos estar subidos, vamos estar altamente pressionantes, não vamos deixá-los jogar e vamos obrigá-los a jogar para dentro". Já o tínhamos treinado uma ou outra vez, embora nunca o tivéssemos levado à prática num jogo.

Pressionaram de forma diferente do habitual.
Aquilo que fizemos foi orientar a pressão dos nossos alas no sentido de trazê-los para dentro. O Braga construía a três, portanto o Guedes orientava para o Raúl ou para o Goiano e depois os nossos alas, ou o Diego ou o João, faziam movimentos circulares, de fora para dentro, para não deixar ligar ou ao Esgaio ou ao Jefferson, e obrigá-los a trazer para dentro, onde nós tínhamos Geraldes, Tarantini, Pelé muito subidos e pressionantes. Provocámos um mini caos na equipa do Braga, claramente, com muitas perdas de bola, com muita instabilidade, com a equipa a cair depois num esticar de jogo longo que nós controlámos com muita facilidade, porque estávamos preparados para isso. Fomos altamente competentes. Aos 15 minutos, há um jogador que vem ao banco e diz assim, a expressão foi esta: "Mister, mister, esta merda está a funcionar! Eles estão todos confusos". [risos] Eh pá, isso é brutal. Até porque nós ouvíamos as indicações, que eram "liga fora, liga fora", mas eles não conseguiam porque as ligações estavam, por regularidade, fechadas. Foi um gozo brutal porque foi um desafio que nos permitiu testar uma coisa que já tínhamos treinado e porque conseguiu focar os jogadores, que só treinaram dois dias mas com grande rigor relativamente a isto e num contexto emocional muito positivo, porque a equipa já estava liberta de pressão e aceitou o desafio. Fizemos um jogo brutal, muito bem conseguido. Ganhar naquele momento a uma equipa que estava a discutir o 3º lugar foi espantoso. Deu-nos o direito a pertencer, até um dia destes, à história do clube.

Mas foste dando mais importância a esse lado estratégico ao longo da época ou já davas antes?
Não é verdade que não desse antes. Uma coisa é alterar o sistema, outra coisa é alterar pequenas questões. Nós pressionamos sempre alto os adversários, é nosso princípio não querer que os adversários joguem, mas, por exemplo, na saída curta dos adversários, estrategicamente, a uns e outros, pressionávamos de forma distinta: a uns pressionávamos o guarda-redes, a outros não, a outros deixávamos entrar dentro, etc. Agora, questões de grande profundidade do nosso ser, isso não alteramos. Mas estrategicamente fomos mudando algumas coisas. Em Braga, por exemplo, jogámos sem ponta de lança. Acabámos por perder, mas foi dos jogos mais bonitos que fizemos. Sem o Geraldes e sem o Tarantini, inclusivamente, com uma estratégia ajustada ao momento, porque não os pusemos por opção, tal como o Guedes, que estava tocado, porque depois íamos ter jogo da Taça. Também é fundamental percebermos quando precisamos de estratégia para ganhar e quando aquilo que somos é suficiente. Ganhámos com regularidade, em casa ganhámos muito, fora só ganhámos quatro vezes, mas quando se faz a pontuação que se faz, penso que chegamos ao fim a pensar que compensou seguir o caminho que seguimos. A questão é que as pessoas estão habituadas a ver as equipas de menor dimensão teórica a ajustar-se àquilo que os outros são. E não tem de ser assim. Muitos dos comentadores que eu ouvia a dizer isso depois ao fim de semana veem jogos da Liga inglesa e dizem que os jogos são espectaculares. Quer dizer, isto é um contrasenso brutal, as pessoas não analisam as coisas na plenitude. A quem apenas tem um martelo como ferramenta todos os problemas parecem pregos, não é? Acho que ninguém se preocupou efetivamente em perceber o que era o jogo do Rio Ave e associou-o apenas ao querer sair curto. Mas qual é o jogo posicional do Rio Ave que permite que a equipa tenha posse de bola? Nós instalámos jogo contra grandes adversários. Para os treinadores das grandes equipas- o Sérgio, o Rui e o Jorge - referirem isso... Disseram que éramos das melhores equipas em Portugal em ataque posicional e assumiram que jogar contra nós era difícil. Acho é que as pessoas não passaram tempo suficiente a analisar os jogos do Rio Ave e se calhar perderam coisas interessantes.

Os comentadores percebem pouco de futebol?
Acho que há os dois lados. Há um conjunto de comentadores que procuram olhar para o jogo por aquilo que ele é efetivamente, vendo o jogo do treinador, mas a maior parte deles não provém do treino, porque se calhar escapa-lhes sempre algo. Depois há um conjunto de pessoas que se preocupam com tudo menos com o jogo em si, mas com esses efetivamente não perco tempo. Aliás, perco muito pouco tempo com jornais e televisão. Acho que na minha casa em Vila do Conde raras vezes me sentei no sofá a ver televisão, porque efetivamente não valorizo muito essa crítica. Gosto muito da crítica e faço-a muito, não só autocrítica, mas também dentro da minha equipa técnica e de uma ou duas pessoas a quem dou muito crédito.

Durante a época tiveste algum adepto a dizer-te: "Eh pá, chutem mas é a bola para a frente"?
[risos] Naturalmente tenho consciência de que não foi fácil convencer os adeptos relativamente a algumas coisas que fazíamos, mas é curioso porque os adeptos habituaram-se a ver a equipa é ganhar, especialmente em casa. Portanto eles têm muito pouco do que falar. Espero que no futuro o Rio Ave consiga ganhar tantas vezes em casa para que eles continuem a sorrir e possam ter oportunidade de dizer para chutarem a bola para a frente [risos], pode ser que ela entre na baliza como entrou ao longo desta época. Acho é que, acima de tudo, houve um conjunto de pessoas que se divertiu muito a ver o Rio Ave a jogar, porque efetivamente o Rio Ave procurou jogar futebol, num caminho que escolheu. Há outros caminhos que também me dão gozo ver.

De quem?
Deu-me um gozo brutal ver o Shakhtar, o City, o Nápoles, algumas equipas alemãs... E eu até admiro outros 'jogares'. Por exemplo, o jogar do FC Porto este ano é avassalador em muitos momentos. O Benfica tem um momento muito interessante durante a época... Há outras coisas que são feitas por outras pessoas que também gosto de ver. E depois há outras coisas das quais já não gosto tanto, que até ganham. Não gosto mas admiro, que é uma coisa diferente. Mas não quero para mim. Acima de tudo gosto de ver equipas que se nota que têm uma ideia, um modelo, que são fiéis a alguma coisa. Porque isso é o primeiro caminho para se ganhar. É muito difícil ganhar a equipas que têm um propósito coletivo muito forte.

Como é o teu planeamento semanal?
É assim, quando preparo uma semana, preparo-a tendo em consideração três aspetos. Primeiro, a adaptação da equipa ao modelo, ou seja, como é que está a tua equipa em termos de performance relativamente à tua ideia do modelo; segundo, como é que foi a performance da tua equipa no jogo anterior, ou seja, em função do que analisaste no jogo anterior, o que precisas de treinar, e isso naturalmente tem a ver com a relação com o modelo e aquilo que foi visível de menos bom e que tu entendes que é preciso novamente aferir; e também, claramente, o lado estratégico, ou seja, da parte da análise do próximo adversário, aquilo que entendes que é preciso preparar para o jogo. Esse tipo de conteúdos são questões, são apontamentos, são princípios e esses eu faço logo o mais rapidamente possível, faço logo uma seriação dos mesmos. Isto porquê: porque independentemente das dinâmicas dos dias da semana, eu posso trabalhar os mesmos princípios, não necessariamente todos no mesmo dia, adaptando, naturalmente, aquilo que são as dimensões dos exercícios, adaptando os campos, as regras, os jogadores... Primeiro pego nos objetivos, naquilo que quero treinar, e depois disso ajusto a cada dia, à medida em que vou treinando, em função da dinâmica que quero para aquele dia da semana. A minha semana é, quiçá, comum a muitos treinadores. Eu gosto sempre de fazer treino após o jogo e cheguei a fazer várias vezes treino imediatamente após o jogo, no mesmo dia, principalmente em ciclos mais curtos, em que obviamente o objetivo é essencialmente estimular e impactar os jogadores que não jogaram tanto, no sentido de terem um impacto de jogo pelo menos similar aos outros jogadores, até porque depois quando estás em ciclos curtos não tens hipótese de treinar com volume e com elevada intensidade nos dias seguintes, porque estás novamente muito perto do próximo jogo. E normalmente treinamos no dia seguinte ao jogo e só depois damos folga. Obviamente o objetivo é trabalhar processos de recuperação e controlar os impactos do jogo nos jogadores e poder até promover tratamentos no dia de pseudo folga, digamos assim. Depois do dia de descanso, faço quatro dias: três aquisitivos e um de warm up, digamos assim, antes do jogo. Naturalmente que são dias com impactos diferenciados, com o treino de tudo aquilo que defini anteriormente.

Planeias todos os dias?
Faço um planeamento diário, não faço um planeamento de unidades de treino 'à la longue', faço no dia a dia. Gosto de planear depois de analisar a unidade de treino anterior, aferindo novamente sobre os objetivos iniciais, vendo o que é que já foi adquirido e aquilo que ainda permanece como importante para treinar. Para mim, essa dimensão só é conseguida cabalmente quando o planeamento é feito diariamente, depois de ser feita a reunião de análise do treino. Voltando atrás, relativamente ao treino de recuperação: pode ter carácter distinto. Não faço muitas vezes com caráter tático. Quando há tempo para treinar durante a semana, foco a recuperação no físico e fisiológico daquilo que foi o impacto do jogo, assim como no aspeto mental, não submetendo o jogador a estímulos táticos, utilizando outro tipo de estratégias. Depois nos outros três dias seguintes é que as coisas já são distintas: manipulo as dimensões dos exercícios no sentido de perceber que a distância temporal do jogo anterior e do jogo seguinte são claramente as dimensões que condicionam aquilo que podes fazer a cada dia da semana. Dessa forma, manipulo duração dos exercícios, manipulo número de repetições, manipulo duração das pausas, manipulo os espaços no sentido de ter uma dominante de maior volume de trabalho, quiçá, excêntrico, por exemplo, com determinado tipo de ações que vão acontecer por consequência daquilo que é tático. Deixo o último dia da semana para fazer um briefing sobre tudo e gosto de trabalhar duas vezes por semana os lances tático-estratégicos, algo que pode acontecer em diferentes dias, não tem padrão, é um bocado feeling, resultante também da construção das unidades de treino. Há depois todo um outro conjunto de coisas que são feitas com regularidade, sejam os trabalhos de força, sejam os trabalhos que têm a ver com prevenção de lesões, sejam os trabalhos de melhoria individual. Depois também há algum trabalho que é feito em função da necessidade de impacto e estimulação de exercício de alta intensidade, que fazemos praticamente todos os dias, porque há targets que não são propósito mas são consequência e que nós avaliamos e depois no final da unidade de treino fazemos acrescentos de trabalho. Acima de tudo, é fundamental perceber que tudo é construído com base naqueles objetivos iniciais: o que é que nós precisamos de trabalhar, quanto tempo temos para trabalhá-lo e como é que vamos trabalhá-lo, a cada dia. Há uma avaliação permanente do que vamos fazendo para aferir novamente a realidade do dia seguinte. Relativamente à análise do jogo, é feita por mim, porque vejo os meus jogos com pormenor, naturalmente, e muitas vezes corto momentos e outras vezes dou sugestões aos meus adjuntos.

Crês que consegues implementar as tuas ideias em qualquer lugar?
Acho que todas as ideias são um ponto de partida para a construção de algo. O jogo é uma construção. O trabalho do treinador é criar uma zona de construção. O treino é essa zona e há muitas coisas que eu discuto com os jogadores, para saber como é que eles se sentem mais confortáveis. A partir do momento em que o conforto, dentro de uma base, está criado, então podemos seguir caminho. Isto tem a ver com coisas grandes e pequenas, por exemplo, o posicionamento nas bolas paradas. É extremamente importante que os jogadores estejam confortáveis. São eles que jogam. O treinador é o catalisador, é quem traz as propostas e tem de seduzi-los.

Por absurdo, vamos assumir que tinhas um central que só batia na frente, não se adaptava a mais nada.
O meu primeiro esforço seria tentar arranjar outro, trocá-lo [risos]. Um treinador que admiro bastante é o Quique Sétien, pela forma de estar no jogo e pelas ideias que tem, e ele dizia a propósito dos seus centrais que durante muitos anos muita gente fez a mesma coisa. Mas quando estamos a falar de Rio Ave para cima já não há 'pezudos', já estamos a falar de jogadores com algum nível. Naturalmente que o Nélson Monte é diferente do Marcelo e o Marcelo é diferente do Marcão, mas todos eles e até o Silvério - que, infelizmente, foi o único jogador que não tive oportunidade de pôr a jogar -, todos eles conseguiram fazer coisas bonitas.

Falou-se particularmente do Francisco Geraldes durante a época. O que lhe falta para dar o salto?
Falta que alguém tome essa decisão.

Só?
Só. O Geraldes tem um conjunto de atributos que lhe podem permitir, num espaço curto/médio, afirmar-se ao mais alto nível. Naquilo que são as suas capacidades atléticas, condicionais, não tenho dúvidas nenhumas, porque, ao contrário do que possa parecer, porque dizem que ele é franzino, ele é um jogador muito forte, muito resistente, é um jogador que repete ações de alta intensidade com frequência e recupera bem entre elas. Acho que ele teve um ano muito importante, porque foi o ano em que percebeu claramente que a individualidade aparece exaltada quando está ao serviço do coletivo e o coletivo permite que isso aconteça. Quando ele assumir isto seja em que contexto for, ele tem condições táticas e técnicas acima da média para poder jogar num nível claramente acima daquilo que é o nível do Rio Ave. O caminho que o Geraldes fez foi o caminho que todos fizeram no Rio Ave: foi perceber que a ideia era positiva e que os favorecia. O Francisco, como o Rúben, como o Novais, como o Marcelo, como outros, o Pelé, o Tarantini, o Yuri, o Guedes, que aos 30 anos consegue uma proposta para melhorar a sua vida na Arábia... Isto é fantástico, é uma alegria brutal para um treinador ver um retorno tão grande naqueles que amou.

Por falar em Guedes, foi fácil resolve aquela situação em que ele decide marcar um penálti, contra as tuas indicações, falha e depois é substituído?
Essa situação é o exemplo mais claro do que é a identidade de uma equipa. Se nós entendermos que eu, enquanto líder, nunca posso sacrificar a intenção de um grupo pela intenção de um indíviduo, então percebe-se claramente aquilo que tive de fazer naquele momento. Nós tínhamos um propósito coletivo muito forte e naquele momento isso foi sacrificado pela intenção de um indíviduo. O indivíduo pode pedir ajuda ao grupo para cumprir um propósito individual, mas não foi o caso. Ou seja, era perfeitamente aceitável se o Guedes tivesse discutido com o grupo e nós tivéssemos concordado. Podia acontecer, embora ele fosse o oitavo da lista dos marcadores de penáltis. O grupo percebeu a atitude do treinador porque tem muito claras as regras de gestão da dinâmica do grupo. Agora, da mesma maneira que digo que não somos o que nos acontece mas somos aquilo que fazemos com o que nos acontece, o Guedes fez o caminho natural de uma pessoa que tem consciência plena deste facto. "Ele não me vai matar porque eu errei. Eu tenho é de assumir que errei e dizer ao treinador o que quero fazer a partir daqui". Naturalmente isso foi alvo de conversa e acerto dentro do clube e até para fora, porque houve uma ofensa pública que teve de ser de alguma forma retratada da parte dele, porque em termos de liderança isso também é fundamental, um treinador não pode ser maltratado em público e depois receber desculpas privadas. Foram feitas as desculpas e o Guedes reintegrou os trabalhos e curiosamente faz um final de campeonato espectacular. Ele e os outros todos estão de parabéns por esse caminho que trilharam.

E tu agora vais à procura do quê? E onde?
Neste momento sou treinador do Rio Ave...

Mas...
E. E, como os meus jogadores, sou uma pessoa ambiciosa, até porque a ambição tem a ver com desafios, tem a ver com crescer, tem a ver com ir à procura da possibilidade de ser melhor, tem a ver com o querer experimentar coisas. É normal que se me aparecer um contexto que me permita isso e ao mesmo tempo permita à minha família melhorar tudo aquilo que é a sua vida e ao mesmo tempo ressarcir o meu clube daquilo que é o meu contrato, é normal que possa eventualmente querer sair. Agora, isso é algo que é tratado diretamente com o meu presidente, porque foi sempre assim que ele me pediu, e o mesmo caráter que tive ao longo da época na relação será sempre o mesmo caráter que vai nortear a minha conduta. Em todos os clubes pelos quais passei deixei um legado, uma imagem que ficou de um profissional e de um homem e, aconteça o que acontecer agora no Rio Ave, a minha passagem vai ficar marcada por traços fortes, de uma pessoa que sabe o que quer, que marca o seu caminho, que é exigente. Se mais não acontecer, então é porque não foi possível, ou porque não era o momento ou porque as pessoas não quiseram, em termos de aproveitar aquilo que é o treinador e o conhecimento do treinador. Fizemos muitas coisas boas esta época e fica pelo menos uma marca desportiva de uma primeira época importante. Tenho a certeza que fica marcada por um estilo muito particular que até me deixa alguma curiosidade relativamente àquilo que podem ser as tendências de jogo em Portugal.

Nota: Versão alargada da entrevista originalmente publicada na edição de 9 de junho de 2018 do Expresso