Perfil

Decretar o fim da chuva

Partilhar

Que levantem a mão os que sabem o que é correr para uma bola enquanto se organiza um funeral

Que levantem a mão os que sabem o que é correr para uma bola enquanto se organiza um funeral

Carlos Rodrigues

O defeito é meu, concedo. Não é razoável (nem meritório) sentir as dores dos avançados, mas trata-se de uma transferência sossegada e inevitável. É um mistério qualquer. Por ter sido 9 na infância e na juventude, suspeito que se trata de uma fidelização eterna aos homens que mantêm o ofício de pé, cheios de dignidades e decadências. Acordar-se e imaginar-se a ser o herói do dia não é brincadeira, é um sentimento lindo de morrer (nem de propósito, nos ouvidos toca agora “Todos os sonhos do mundo” de Toti Soler). Mas nesse processo solitário há também uma nostalgia e uma melancolia ruinosas. A angústia. O golo que era para ser e não foi. A dúvida, filha dos fantasmas que preferem não abandonar, espreita.

Quando Paulinho marcou ao Arsenal, já depois de ter resolvido em Portimão com uma colher, os que olham para os avançados assim esfregaram as mãos mentalmente, tal como Owen esfregou quando teve uma tarde gloriosa contra o Newcastle. E cantou-se para Paulinho e para a sua dentição, engoliu-se o nefasto burburinho que se ouve nos estádios e que desassossega o orgulho dos futebolistas. O pior veio a seguir. Não meteu o 3-1 e a felicidade anterior já pertencia ao rumor. A filha dos tais fantasmas sentou-se no ombro dele.

No domingo, no Sporting-Boavista, Paulinho saltou do banco e fez mais um golo. A assistência foi de Ricardo Esgaio, para quem o canhoto apontou pedindo amor e carinho e abraços cheios de perdão, como se ele não precisasse. Parece um bom tipo, a quem se calhar serviria bem uma dose extra de ego, e isso agrava ainda mais a questão da transferência de dores e o brotar da tenra empatia.

Bastaram nove dias na vida de Paulinho para entendermos mais uma vez os contornos daquela labuta tão específica, que para ele passa por ligar a equipa, tornar a bola ainda mais redonda e jogável, sem a obsessão pelo golo. Mas é este quem lhe rouba a paz. Afinal, não deixa de ser um avançado e os adeptos não permitem que ele esqueça esse facto. No passado não faltaram ocasiões em que o corpo deste futebolista parecia implorar que a bola não lhe caísse nos pés. Até o gesto da bota cantava derrota. Que levantem a mão os que sabem o que é correr para uma bola enquanto se organiza um funeral… E, para muitos, nunca se tratou de técnica. De segurança sim, de serenidade, para impedir a tremura no pé, o encolhimento da baliza ou a antecipação da tragédia.

Paulinho leva 14 golos e cinco assistências em 32 jogos esta época

Paulinho leva 14 golos e cinco assistências em 32 jogos esta época

Quality Sport Images

Em entrevista ao Pedro Barata, Fredy Montero desabafou sobre essas agruras. “É difícil quando os avançados são medidos pelos golos. Noutra posição podes ser avaliado por coisas como bolas roubadas ou passes bem dados, mas nós somos sempre julgados em função dos golos. É injusto quando não jogas com regularidade, mas, quando a tens, claro que é uma responsabilidade nossa”, admitiu. É, convenhamos, o preço a pagar por se querer ser o herói de mais um domingo santo, mas é também como jogar às cartas com o diabo. O 9 nas costas (ou a função de 9) funciona como um aviso de perigo para os outros (e só isso injeta moral), mas, dependendo da mente ou do momento de cada um, pode ser uma armadilha.

Fui ler sobre o que disseram monstros e homens normais do ofício sobre bloqueios mentais. Pep Guardiola revelou há dias o mecanismo de Erling Haaland. “Ele pode falhar uma oportunidade e não fica deprimido ou triste. E é positivo, ‘é a seguir’. Sabe que terá uma oportunidade e que estará lá. Isso é um atributo incrível como futebolista e atleta.” O avançado norueguês já conversara com Alan Shearer, para o “The Athletic”, sobre essa coisa de marcar golos. Falou-se numa “droga mágica”, numa viagem delirante em que se perde o controlo. O outro lado, o trágico para um 9, também foi mencionado: “Podia parecer controlado, mas ia para casa e não dormia”, admitiu o inglês.

Andy Cole, um avançado daquele especial Manchester United, também sofreu com o nó na cabeça. “Deixas de fazer as corridas porque deixas de acreditar em ti. Estive nessa posição, não queres mesmo a bola”, admitiu à “ESPN”, em 2019, quando Romelu Lukaku (lá está) não dava com a tecla. Alan Smith, um histórico do Arsenal, concordou: “Não estás certo do que é suposto fazeres e quase temes as oportunidades que chegam porque não estás confiante. Fugires dessas posições de golo é o pior que podes fazer”.

Já Alfonso Pérez, o craque de Betis, Real Madrid e Barcelona, foi mais uma vítima desse sentimento avassalador. “Vivi momentos em que não acreditava como tinha falhado uma ocasião de golo cantada”, reconheceu ao “El Confidencial”, em 2020. “Entra em ti uma angústia enorme porque sabes que a equipa precisa de ti, ainda que possas dar outras coisas. Gostava de dizer que ganhámos com um golo meu.” O tema era a seca de Borja Iglesias, um avançado a quem lembram sempre o preço que custou ao Betis, algo que acontece também com Paulinho. “É uma situação incómoda [para o Borja], mas tem golo e isso não se esquece, não se perde. A equipa tem de pensar mais nele e gerar mais opções de finalização”, sentenciou Alfonso, o senhor das botas brancas.

O ex-avançado do Benfica, Tote, também soprou o seu grão de areia para a mui dolorosa questão. “Quando não marcas, sentes que esqueceste como se faz. Se há muitas expectativas postas em ti, isso provoca ansiedade e quando vês que passam os jogos e não marcas aparece a dúvida. E a dúvida é muito lixada” Foi por isso que o treinador do Sporting, que sabiamente sempre falou no que o jogador dá à equipa, notou que o vento está mais a favor de Paulinho. “As voltas que a vida dá…”, desabafou quase como uma provocação Rúben Amorim, no domingo, depois do jogo. “Os adeptos não queriam o Paulinho, agora querem. O apoio faz dos jogadores muito melhores.”

O título desta newsletter foi resgatado da “Canção sem final” de A Garota Não, que ainda se espreguiça no pensamento depois daquele tão bonito encontro com Sérgio Godinho no Teatro Maria Matos, em Lisboa. Conta a canção que “decretar o fim da arte é como decretar o fim da chuva”, pois “há sempre alguém que sonha em qualquer parte e a nossa voz nunca será viúva”. Pois bem, no céu ou no inferno, Paulinho voltará sempre a ser o que quer ser num domingo qualquer, sem burburinho e oxalá sem memória, e deixará felizes os que só querem ver a felicidade dos avançados.

O que se passou

Leia também

A melhor defesa é a defesa

Nuno Santos, um calvo precoce que ninguém sabe se é extremo convertido em lateral ou lateral com tendências extremistas, e João Mário, que é quase tão estranho ver a lutar para ser melhor marcador do campeonato como seria assistir a Haaland de luvas calçadas a voar para defesas impossíveis, quase estragavam esta crónica de Bruno Vieira Amaral, que começa em golos marcados e acaba em golos evitados

Leia também

“Ninguém dava nada por nós. Perdemos no Restelo, o Conceição saiu do balneário e ficámos uma hora a falar. Deu-se um clique, fomos campeões”

Ricardo Pereira regressou à competição há um mês e fez o seu primeiro jogo esta época pelo Leicester City, após uma longa recuperação de uma rotura no tendão de Aquiles. O defesa direito, que foi campeão pelo FC Porto, em 2018, após duas épocas de empréstimo ao Nice, conta nesta segunda parte do Casa às Costas como as lesões o tornaram mais forte e até melhor pessoa. Fala do cancro da mãe, o pior período da sua vida, revela onde investe o seu dinheiro e como, desde há dois anos, tem ajudado pessoas carentes e animais abandonados

Leia também

Ministério Público arquiva caso de assédio sexual no Rio Ave. Sindicato já recebeu mais “cinco ou seis contactos”

Com o mediatismo do caso que envolve as jogadoras do Rio Ave e o treinador Miguel Afonso - e que foi agora, seis meses depois, arquivado pelo Ministério Público - aumentaram os pedidos de informação junto do Sindicato de Jogadores

Leia também

Santos e pecadores, eis a letra do triunfo do Sporting sobre o Boavista

Numa partida marcada por um grande golo de <i>rabona</i> de Nuno Santos, a equipa de Rúben Amorim bateu sem problemas (3-0) a de Petit. Depois do canhoto ter inaugurado o marcador de letra, Salvador Agra fez o 2-0 na própria baliza, com Paulinho a fechar as contas aos 93'

Leia também

Teresa Bonvalot: “Por ser tão perfecionista, acontecia-me muito nos heats ficar no mar à espera da onda perfeita e ela não vinha”

Tem 23 anos e já se fala dela há quase 10. Apesar de, por uma nesga, não se ter qualificado para o circuito mundial, Teresa Bonvalot está em Peniche para competir na terceira etapa seguida do Championship Tour, em substituição de uma lesionada. Confessamente reservada e tímida, conta, em entrevista à <strong>Tribuna Expresso,</strong> a tristeza que sentiu quando acabou empatada com a surfista que ficou com a última vaga de apuramento e como não gosta da inevitável fama que o surf lhe dá. Mas tenta usá-la para ser “uma luzinha” de esperança e mostrar às pessoas que um atleta “não é um extraterrestre” que “está sempre em altas”

Leia também

O futebol pensante de Grimaldo e Aursnes ligou-se com o veneno de Neres e puff!, fez-se nova exibição demolidora do Benfica

Os líderes da I Liga foram à Madeira vencer o Marítimo por 3-0, conseguindo o oitavo triunfo seguido no campeonato, sempre por mais do que um golo de diferença. David Neres, titular no lugar de Rafa, bisou, João Mário, que falhou um penálti, também marcou, mas o triunfo das águias começou na inteligência do futebol do lateral espanhol e do omnipresente norueguês

Leia também

Andebol: Portugal apura-se para o Euro 2024 com vitória frente à Macedónia do Norte

Em Matosinhos, um triunfo por 32-27 permitiu assegurar já a terceira presença seguida no torneio, que decorrerá na Alemanha

Leia também

Novo bate-boca entre Nélson Évora e Pichardo: “Não sou uma prostituta. Salto mais do que a tua melhor marca de leggings compridas e chapéu”

O campeão olímpico, mundial e europeu respondeu às palavras ditas por Nélson Évora numa entrevista ao “Observador”, que se referiu a Pichardo como um “atleta que foi comprado”. E o recordista nacional do triplo salto ripostou: “Nenhum de nós nasceu cá (…) pára de falar de mim que já pareces uma menina quando gosta de um rapaz (és bonito mas não sou gay). Sempre fiquei no meu cantinho, mas chega de humildade e ficar calado.”

Leia também

Sim, talvez, porventura, “vamos ver”. Terá sido esta a última vez de Kelly Slater em Portugal?

Apanhou 12 ondas, surfou em três <i>heats</i>, ganhou nenhum e foi o pior classificado em dois deles. Aos 51 anos, Kelly Slater foi eliminado ao segundo dia de prova no MEO Rip Curl Portugal Pro, saindo de Peniche com outro 17.º lugar esta época. O 11 vezes campeão do mundo está preocupado em não chegar a meio do ano entre os 24 surfistas que garantem a qualificação para o circuito mundial de 2024 e deixou no ar a dúvida: “Pode ter sido a minha última vez aqui, para ser honesto”

Zona mista

Por ser tão perfecionista, acontecia-me muito nos heats ficar no mar à espera da onda perfeita e ela não vinha

Teresa Bonvalot, de 23 anos, falou à Tribuna Expresso, num hotel em Peniche, sobre tristeza, orgulho e a fama desavinda que o surf lhe oferece. No fundo, quer que saibam que um atleta “não é um extraterrestre” que “está sempre em altas. A entrevista está aqui.

O que vem aí

Segunda-feira, 13

Liga: Famalicão-Casa Pia (20h15, Sport TV1)

La Liga: Girona-Atlético Madrid (20h00, Eleven Sports1)

🏀 NBA: Mavericks-Grizzlies (23h30, Sport TV3), Rockets-Celtics (01h10, Sport TV6)

Carioca: Flamengo-Vasco (2a/3a, 00h10, Sport TV1)

Terça-feira, 14

Liga dos Campeões: FC Porto-Inter (20h00, Eleven Sports1), Manchester City-Leipzig (20h00, Eleven Sports2)

Youth League: Sporting-Liverpool (13h00, Eleven Sports1), Inter-FC Porto (17h00, Eleven Sports1)

Liga Saudita: Al Nassr-Abha (14h30, Sport TV1)

Quarta-feira, 15

Liga dos Campeões: Real Madrid-Liverpool (20h00, Eleven Sports1), Nápoles-Eintracht (20h00, Eleven Sports2)

Liga dos Campeões de basquetebol: AEK-Galatasaray (17h30, Sport TV3)

🏀 NBA: Heat-Grizzlies (23h30, Sport TV2)

Quinta-feira, 16

Liga Europa: Arsenal-Sporting (20h00, Sport TV1 e SIC)

Liga Europa II: Fenerbahçe-Sevilha (17h45, Sport TV2), Betis-Manchester United (17h45, Sport TV1), Real Sociedad-Roma (20h00, Sport TV2)

🏀 NBA: Pistons-Nuggets (23h00, Sport TV3)

🚙 WRC: Rali México, super especial 1 (5a/6a, 02h00, sport TV4)

Sexta-feira, 17

Liga: Santa Clara-Rio Ave (20h15, Sport TV1)

Premier League: Nottingham Forest-Newcastle (20h00, Eleven Sports1)

🏀 Euroliga: Barcelona-Estrela Vermelha (19h30, Sport TV3)

Sábado, 18

Liga: Benfica-Vitória (18h00, BTV), Portimonense-Vizela (15h30, Sport TV1), Arouca-Paços Ferreira (18h00, Sport TV1), Estoril-Chaves (20h30, Sport TV1)

Premier League: Wolves-Leeds (15h00, Eleven Sports1), Southampton-Tottenham (15h00, Eleven Sports2), Chelsea-Everton (17h30, Eleven Sports1)

La Liga: Espanyol-Celta (17h30, Eleven Sports3), Atlético Madrid-Valência (20h00, Eleven Sports1)

🏉 Torneio das 6 Nações: Escócia-Itália (12h30, Sport TV3), França-Gales (14h45, Sport TV3)

🏎️ F1: qualificação GP Arábia Saudita (17h00, Sport TV4)

Domingo, 19

Liga: Sp. Braga-FC Porto (18h00, Sport TV1), Casa Pia-Marítimo (15h30, Sport TV3), Boavista-Famalicão (20h30, Sport TV2),

Serie A: Inter-Juventus (19h45, Sport TV5)

Eredivise: Ajax-Feyenoord (13h30, Sport TV3)

🏃🏻 Maratona: Roma (07h00, Sport TV2)

Hoje deu-nos para isto

Eurasia Sport Images

Fernando Diniz beijou a primeira medalha como treinador e sorriu como um menino. O Fluminense conquistou há dias a Taça Guanabara, que premeia o mais regular do Carioca (que agora se decide nas meias-finais e final), contra o poderoso Flamengo. Diniz também sabe o que é viver no abismo, ora dizem que é pé frio e um romântico que vende delírios, ora derretem ao ver as suas equipas jogar e decretam que é material de seleção brasileira. Afinal, há que devolver às botas dos craques o jogo malandro que cheira a infância ou a 1982, suspiram umas quantas felizes testemunhas.

“O futebol tem um jeito e um gosto para mim”, disse a certa altura na entrevista à Tribuna Expresso, em setembro. “Eu não teria prazer nenhum em treinar uma equipa de futebol simplesmente para vencer jogando de uma maneira embrutecida, sem valorizar o jogo, sem valorizar a bola e principalmente sem valorizar os jogadores e as pessoas que assistem. Aí é que está o meu grande amor e respeito pelo futebol, são os jogadores e o público que assiste”. O afecto com que se refere aos futebolistas é admirável. Não é alguém alheado, reflete sobre os problemas da sociedade e alerta sempre para o sistema que mastiga e cospe os jovens que não conseguem logo ser maradonas.

Diniz é especial e sente-se insultado quando o colam a essa coisa do “futebol moderno”, quando felizmente vai completamente contra essa torrente que obedece a posições e espaços tapados por jaulas. “No futebol, que acaba por ser um reflexo da minha vida, eu tento reproduzir as coisas que marcaram a minha infância”, explicou. “Tento colocar em prática o que me marcou quando era criança. Na minha conceção de viver a vida, eu prefiro que a vida seja mais arte do que ciência, aquilo que é artístico marca para sempre, emociona as pessoas.”

Já depois de interrompida a gloriosa e tão bela ação do gravador, a videochamada e a conversa continuaram. O treinador perguntou sobre Vítor Frade e Júlio Garganta. E voltámos ao futebol e à vida. O sorriso de homem normal regressou. “Os românticos fazem bem ao mundo… e ganham também.”

Tenha uma boa semana, aprecie o desporto e obrigado por nos acompanhar aí desse lado, lendo-nos no site da Tribuna Expresso, onde poderá seguir a atualidade desportiva e as nossas entrevistas, perfis e análises. Siga-nos também no Facebook, Instagram e no Twitter.