O futebol, alérgico à mudança, podia experimentá-la como o ténis
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26.09.2022

Hansi Flick, selecionador da Alemanha que calhou com Inglaterra e Itália no mesmo grupo da prova que veio acabar com os amigáveis enfadonhos entre seleções
picture alliance
Os espelhos são um reflexo fiel do que os enfrentar, os metais polidos viram obedientes e a fidelidade à luz que lhes bate é inegável, prima pela verdade. Diferentes são os olhos que recebem o que eles devolvem, nós vemos o que queremos ver e Todd Boehly, antes de sair de casa, pode aperaltar-se como lhe der na real gana, cobrir-se das vestes mais baratas, que está condenado a ser visto com um cifrão a pairar-lhe sobre a cabeça pela maioria das pessoas que ficaram a conhecê-lo via futebol, há meses, quando deu a cara pelo consórcio de investidores que comprou o Chelsea por 4,5 mil milhões de libras.
É grandíssima a percentagem de pessoas na Terra para quem é impercetível ter noção eficaz da quantidade de dinheiro que esse número representa. Todd Boehly é americano, já tinha outras raízes da sua fortuna postas nos Los Angeles Dodgers, do beisebol, portanto ele é do país que chama soccer ao futebol porque lá inventaram uma modalidade que batizarem com o mesmo nome e isso, para os europeus, causa comichão, urticária quase. E quando o empresário sugeriu, há semanas, que a Premier League tivesse um jogo de exibição anual entre uma equipa feita de jogadores de clubes do norte e outra composta por futebolistas do sul, muita gente se apressou a criticá-lo.
A proposta tem um fundo endinheirado, claro. Um milionário que entre no futebol, terra fértil de clubes endividados, fá-lo em busca de retorno, de zeros postos à direita de números. Boehly não escondeu que o tal jogo All-Star seria para isso, “toda a gente gostaria que houvesse mais receita”, mas não há motivos para a ideia, em si mesma (antes de se falar na logística, calendarização e desequilíbrios que tal encontro traria), ser afastada antes do tiro de partida da discussão. O futebol também é lugar que respira aversão à novidade, sempre com uma reação alérgica pronta a disparar a qualquer intenção de mudar o que já se provou que não melhorará só pela insistência em manter as coisas como estão, a bem de uma devoção à tradição.
Gary Neville, o mediático antigo internacional inglês do Manchester United, urgiu talvez exageradamente ao aperto da “regulação” do “investimento americano” que “vai arruinar o futebol inglês”. Há uns anos, quando a UEFA pôs no forno as mudanças que resultariam na Liga das Nações de complicado entendimento ao início, choveram as críticas contra a suposta invenção da entidade para baralhar o que era pacífico, estável e a roçar a irrelevância. O problema estava aí: a mudança voltou a dar as cartas do futebol europeu de seleções, agrupou os países com níveis semelhantes e hoje as paragens para equipas nacionais se defrontaram têm um troféu e objetivos de promoção aos quais almejar. Pelo caminho, reduziu-se o número daqueles amigáveis entediantes e desnivelados - Portugal jogará com a Espanha na terça-feira, hoje é a Inglaterra com a Alemanha, que há meses também enfrentou a Itália.
A mudança, se feita para melhorar algo já criticável há muito, não tem de ser encarada com desdém automático. Se o parco tempo de jogo é uma praga em Portugal, mas problema não incomum à generalidade dos campeonatos, por que não parar o relógio quando a bola não está a rolar, como no futsal? Se o estigma preguiçoso e a desvantajada pressa em tomar o todo de um resultado de jogo pela parte de um erro do árbitro, talvez ajudasse fazer como no râguebi, em que um microfone está com a pessoa do apito para toda a gente escutar o que conversa, explica e justifica aos atletas?
Mas não, o futebol, recostado na imensa popularidade que granjeia ao ser a modalidade mais adorada neste mundo, é das práticas desportivas mais resistentes à mudança, com as cúpulas mais inertes a agir perante o que veem no reflexo. Este fim de semana, em Londres, o bem menos popular ténis mostrou como se pode dar uma chance a tentar algo novo, com um torneio vindo da cabeça de uma dos seus extraterrestres por ter tido a ideia de aproximar gerações de jogadores distintas, honrar as lendas da modalidade e experimentar outro formato de competição. E a Laver Cup, diz-vos este que por lá teve a sorte de andar, parece ser um sucesso à espera de rebentar no que à ação em campo diz respeito.
Tenistas a ‘treinarem’ outros que joguem na mesma equipa, dando dicas e conselhos a cada intervalo entre pontos; habituais adversários, com rivalidades históricas, a tentarem ganhar juntos; jogos mais curtos e com mais tie breaks, a versão do ténis para separar o trigo do joio quando há igualdades; e atletas, por norma, solitários em court porque o ténis faz de quem o joga uma ilha, a serem mais equipa. O facto de ser algo tão individual, com cargas intangíveis de pressão e expetativa a recaírem tão à cabeça, o ténis não existe atrelado à paixão grupal do futebol, ao sentimento partilhado de pertença a uma equipa. Mas, por isso mesmo, tem muito menos do que roça a irracionalidade e caí nesse caldeirão à mínima coisa que vá contra a parcialidade do adepto, que vira um mero ‘adepto’ se sucumbir à violência, intolerância ou insulto fácil.
Seja em que costela desportiva for, um jogo é apenas um jogo e, quando acaba, a vida segue. “Ao final do dia, é só desporto. Não nos deixemos levar pelo exagero. Sim, deve ser renhido e duro, mas sempre justo. De alguma forma, nós somos entretenimento e acho que sempre conseguimos ter isso em mente”, resumiu Roger Federer o que não deveria ser assim tão difícil de compreender, quando lhe perguntaram o que os fãs, adeptos ou simpatizantes poderiam retirar de o ver na cavaqueira bem-disposta com Rafael Nadal e Novak Djokovic, co-lendas estratosféricas com quem soma 63 torneios do Grand Slam conquistados. O sérvio, mesmo confessando-se à rasca para acrescentar à sapiência do suíço a quem dissemos até já, deu outro sumário para o que a rendição a tentar mudar o habitual na modalidade mostrou: “Co-existir neste ambiente com respeito e admiração mútuos é algo que sinto que todos podemos fazer, e somos, de certa forma, responsáveis por fazê-lo”.
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Zona mista
O ténis traduz a tua personalidade e caráter, o que vês no campo é quem o Roger é (...) ele sempre quis evoluir o seu ténis e a sua vida, quis ser maior não em termos de feitos, mas de conhecer mais pessoas, saber mais coisas, tentar algo novo no court. O Roger inventava coisas malucas.
Ivan Ljubicic, treinador de Roger Federer, em entrevista à Tribuna Expresso feita em Londres, depois de não dormir grande coisa na véspera em que houve um pranto geral na despedida do suíço, que jogou a derradeira partida da carreira na Laver Cup, aos 41 anos.
O que vem aí
Segunda-feira, 26
⚽ A Liga das Nações volta a proporcionar um jogaço: Inglaterra e Alemanha defrontam-se (19h45, Sport TV1) em Wembley, com os da casa já despromovidos para a divisão B. À mesma hora, a Hungria recebe a Itália em Budapeste (Sport TV2).
Terça-feira, 27
⚽ Portugal recebe a Espanha, em Braga, na decisão de quem seguirá para a fase final da Liga das Nações (19h45, RTP1). Um pouco antes, o Brasil joga perante a Tunísia (19h30, Sport TV6).
Quarta-feira, 28
⚽👩 Feita a vitória por 2-3 na primeira mão, a equipa feminina do Benfica recebe o Glasgow Rangers na 2.ª mão do play-off de acesso à Liga dos Campeões (19h30, BTV).
Quinta-feira, 29
Sexta-feira, 30
⚽ Regressa a I Liga e logo com um Sporting-Gil Vicente (19h, Sport TV2). À noite, o FC Porto recebe o SC Braga (21h15, Sport TV1).
Sábado, 1
🌊 Arranca o EDP Vissla Pro Ericeira, etapa do Challenger Series, principal circuito de qualificação para o mundial de surf (Spor TV). O período de espera do evento vai até 9 de outubro e, entre os principais portugueses em prova, estarão Frederico Morais, Teresa Bonvalot (se recuperar de lesão) e Yolanda Hopkins.
⚽ Jogo apetecível na Premier League, para forrar o estômago à hora de almoço: Arsenal-Tottenham (12h30, Eleven Sports 1). Porque, logo a seguir, mais uma partida atrativa no dérbi de Manchester, entre o City e o United (15h, Eleven Sports 1). Na Série A, a Roma de José Mourinho e Rui Patrício vai a Milão visitar o Inter (17h, Sport TV1). E também há I Liga: Vizela-Portimonense (15h30, Sport TV2), Desp. Chaves-Estoril Praia (18h, Sport TV2) e V. Guimarães-Benfica (20h30, Sport TV1).
Domingo, 2
🏍️ Em MotoGP, dia para o Grande Prémio da Tailândia, com Miguel Oliveira ao barulho (11h, Sport TV).
🏎️ Grande Prémio da Singapura, em Fórmula 1 (13h, Sport TV).
⚽ Prossegue a I Liga: Rio Ave-Santa Clara (15h30, Sport TV1), Paços de Ferreira-Arouca (18h, Sport TV1) e Famalicão-Boavista (20h30, Sport TV1).
Hoje deu-nos para isto

Thomas Eisenhuth/Getty
“Hasta el empate, siempre” foi uma das piadas ecoadas, repetidas e sedutoras de gargalhadas fáceis há seis anos porque, factualmente, facílimo era que toda a graçola virasse um comediante de sucesso, afinal a seleção nacional conquistara o Campeonato da Europa de futebol e a vitória tende a mascarar seja o que for, a fazer esquecer ou chutar para mais tarde qualquer preocupação. Em França e em 2016, ganhar somente um jogo em 90 minutos foi poesia à moda portuguesa.
Não que a competição seja a mesma, nem de relevância igual, a Liga das Nações proporciona outra caça a um troféu que Portugal até foi o primeiro país a conquistar, em 2019. A fortuna dos resultados do grupo no qual está metido na atual fornada da prova fez com que, na terça-feira, baste um empate à seleção para se qualificar rumo à fase final da competição. O jogo será contra a vizinha Espanha, em Braga, onde o selecionador Fernando Santos já avisou que “não vamos pensar nos empates e nessas coisas”. Que o dito seja feito, porque o que em tempos resultou nunca é garante de continuar a dar frutos.
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E já agora, se ainda não escutou, o podcast chamado A Culpa é do Árbitro, com Duarte Gomes, terá como habitualmente um novo episódio à terça-feira, onde as regras e as leis do jogo são protagonistas, com o tom pedagógico que tantas vezes falta ao nosso mundo da bola.