Perfil

O futebol, alérgico à mudança, podia experimentá-la como o ténis

Partilhar

Hansi Flick, selecionador da Alemanha que calhou com Inglaterra e Itália no mesmo grupo da prova que veio acabar com os amigáveis enfadonhos entre seleções

Hansi Flick, selecionador da Alemanha que calhou com Inglaterra e Itália no mesmo grupo da prova que veio acabar com os amigáveis enfadonhos entre seleções

picture alliance

Os espelhos são um reflexo fiel do que os enfrentar, os metais polidos viram obedientes e a fidelidade à luz que lhes bate é inegável, prima pela verdade. Diferentes são os olhos que recebem o que eles devolvem, nós vemos o que queremos ver e Todd Boehly, antes de sair de casa, pode aperaltar-se como lhe der na real gana, cobrir-se das vestes mais baratas, que está condenado a ser visto com um cifrão a pairar-lhe sobre a cabeça pela maioria das pessoas que ficaram a conhecê-lo via futebol, há meses, quando deu a cara pelo consórcio de investidores que comprou o Chelsea por 4,5 mil milhões de libras.

É grandíssima a percentagem de pessoas na Terra para quem é impercetível ter noção eficaz da quantidade de dinheiro que esse número representa. Todd Boehly é americano, já tinha outras raízes da sua fortuna postas nos Los Angeles Dodgers, do beisebol, portanto ele é do país que chama soccer ao futebol porque lá inventaram uma modalidade que batizarem com o mesmo nome e isso, para os europeus, causa comichão, urticária quase. E quando o empresário sugeriu, há semanas, que a Premier League tivesse um jogo de exibição anual entre uma equipa feita de jogadores de clubes do norte e outra composta por futebolistas do sul, muita gente se apressou a criticá-lo.

A proposta tem um fundo endinheirado, claro. Um milionário que entre no futebol, terra fértil de clubes endividados, fá-lo em busca de retorno, de zeros postos à direita de números. Boehly não escondeu que o tal jogo All-Star seria para isso, “toda a gente gostaria que houvesse mais receita”, mas não há motivos para a ideia, em si mesma (antes de se falar na logística, calendarização e desequilíbrios que tal encontro traria), ser afastada antes do tiro de partida da discussão. O futebol também é lugar que respira aversão à novidade, sempre com uma reação alérgica pronta a disparar a qualquer intenção de mudar o que já se provou que não melhorará só pela insistência em manter as coisas como estão, a bem de uma devoção à tradição.

Gary Neville, o mediático antigo internacional inglês do Manchester United, urgiu talvez exageradamente ao aperto da “regulação” do “investimento americano” que “vai arruinar o futebol inglês”. Há uns anos, quando a UEFA pôs no forno as mudanças que resultariam na Liga das Nações de complicado entendimento ao início, choveram as críticas contra a suposta invenção da entidade para baralhar o que era pacífico, estável e a roçar a irrelevância. O problema estava aí: a mudança voltou a dar as cartas do futebol europeu de seleções, agrupou os países com níveis semelhantes e hoje as paragens para equipas nacionais se defrontaram têm um troféu e objetivos de promoção aos quais almejar. Pelo caminho, reduziu-se o número daqueles amigáveis entediantes e desnivelados - Portugal jogará com a Espanha na terça-feira, hoje é a Inglaterra com a Alemanha, que há meses também enfrentou a Itália.

A mudança, se feita para melhorar algo já criticável há muito, não tem de ser encarada com desdém automático. Se o parco tempo de jogo é uma praga em Portugal, mas problema não incomum à generalidade dos campeonatos, por que não parar o relógio quando a bola não está a rolar, como no futsal? Se o estigma preguiçoso e a desvantajada pressa em tomar o todo de um resultado de jogo pela parte de um erro do árbitro, talvez ajudasse fazer como no râguebi, em que um microfone está com a pessoa do apito para toda a gente escutar o que conversa, explica e justifica aos atletas?

Mas não, o futebol, recostado na imensa popularidade que granjeia ao ser a modalidade mais adorada neste mundo, é das práticas desportivas mais resistentes à mudança, com as cúpulas mais inertes a agir perante o que veem no reflexo. Este fim de semana, em Londres, o bem menos popular ténis mostrou como se pode dar uma chance a tentar algo novo, com um torneio vindo da cabeça de uma dos seus extraterrestres por ter tido a ideia de aproximar gerações de jogadores distintas, honrar as lendas da modalidade e experimentar outro formato de competição. E a Laver Cup, diz-vos este que por lá teve a sorte de andar, parece ser um sucesso à espera de rebentar no que à ação em campo diz respeito.

Tenistas a ‘treinarem’ outros que joguem na mesma equipa, dando dicas e conselhos a cada intervalo entre pontos; habituais adversários, com rivalidades históricas, a tentarem ganhar juntos; jogos mais curtos e com mais tie breaks, a versão do ténis para separar o trigo do joio quando há igualdades; e atletas, por norma, solitários em court porque o ténis faz de quem o joga uma ilha, a serem mais equipa. O facto de ser algo tão individual, com cargas intangíveis de pressão e expetativa a recaírem tão à cabeça, o ténis não existe atrelado à paixão grupal do futebol, ao sentimento partilhado de pertença a uma equipa. Mas, por isso mesmo, tem muito menos do que roça a irracionalidade e caí nesse caldeirão à mínima coisa que vá contra a parcialidade do adepto, que vira um mero ‘adepto’ se sucumbir à violência, intolerância ou insulto fácil.

Seja em que costela desportiva for, um jogo é apenas um jogo e, quando acaba, a vida segue. “Ao final do dia, é só desporto. Não nos deixemos levar pelo exagero. Sim, deve ser renhido e duro, mas sempre justo. De alguma forma, nós somos entretenimento e acho que sempre conseguimos ter isso em mente”, resumiu Roger Federer o que não deveria ser assim tão difícil de compreender, quando lhe perguntaram o que os fãs, adeptos ou simpatizantes poderiam retirar de o ver na cavaqueira bem-disposta com Rafael Nadal e Novak Djokovic, co-lendas estratosféricas com quem soma 63 torneios do Grand Slam conquistados. O sérvio, mesmo confessando-se à rasca para acrescentar à sapiência do suíço a quem dissemos até já, deu outro sumário para o que a rendição a tentar mudar o habitual na modalidade mostrou: “Co-existir neste ambiente com respeito e admiração mútuos é algo que sinto que todos podemos fazer, e somos, de certa forma, responsáveis por fazê-lo”.

O que se passou

Leia também

O annus horribilis de Cristiano Ronaldo

O 4-0 à Chéquia foi um excelente resultado tendo em conta que nestes jogos, como indica Bruno Vieira Amaral, o que está em causa não é tanto a conquista da Liga das Nações, troféu que já reluz na vitrina da Federação, mas o PRR de Fernando Santos: o Plano de Recuperação de Ronaldo. Todos sabemos que a suplência de Cristiano na seleção, independentemente das condições físicas do jogador, é uma impossibilidade ontológica

Leia também

Até já Roger, ultrapassaremos isto de alguma forma

Federer nunca quis um conto de fadas e não o teve no último jogo da carreira, na Laver Cup, factualmente falando. Perdeu, esvaindo-se em lágrimas no final enquanto Rafael Nadal, o maior rival tornado amigo, com quem jogou em pares na despedida, chorava como um bebé. Aos 41 anos, um dos maiores tenistas da história, provavelmente o mais elegante a alguma vez pisar um <i>court</i>, despediu-se em apoteose: “Estou feliz, não estou triste. Foi uma noite fantástica”. <i>Crónica e reportagem em Londres</i>

Leia também

Entrevista a Ivan Ljubicic, o treinador de Federer, após a despedida: “Acho que ele não terá um trabalho. Sobretudo, vai desfrutar da vida”

Só tem mais dois anos de vida do que Roger Federer, mas retirou-se há uma década dos <i>courts</i> com 13 derrotas em 16 jogos contra quem viria a ser seu pupilo. Em entrevista à <strong>Tribuna Expresso,</strong> em Londres, o último treinador do suíço e confesso fã de xadrez comparou-o a Mikhail Tal, desfez-se em elogios ao agora ex-tenista e garante que, apesar de fazer tudo parecer fácil, “ele não fazia as coisas casualmente”

Leia também

A chorarem e de mãos dadas, “qualquer noite” que Nadal e Federer passem juntos “nunca parece ser tempo suficiente”

A confissão veio do suíço, algo taciturno e solene na última vez que falou perante jornalistas após uma partida onde “ajudou muito não estar sozinho" no <i>court</i>. O espanhol revelaria que viajou de propósito só para jogar com Roger, admitindo que “uma parte” da sua vida “também vai embora” com a despedida de Federer. As lágrimas, assim como a história feita no ténis, foram de ambos

Leia também

“Sofri um acidente na Turquia. Saí do carro meio estonteado, deitei-me no chão. O Sural foi projetado e perdeu a vida. Eu não fiquei ferido”

Djalma Campos, de 35 anos, jogou seis anos na Turquia em quatro clubes diferentes. Um dos piores momentos foi quando era um dos passageiros de uma carrinha que se despistou, provocando a morte a um colega. Foi na Grécia que conseguiu conquistar uma Taça, ao serviço do PAOK. Pai de três rapazes, confessa que Jorge Costa foi o pior treinador que teve e que após pendurar as botas quer continuar ligado ao futebol, mas não como técnico. Detentor de uma marca de roupa própria, avisa que está no Trofense também para ajudar a enquadrar os mais novos.

Leia também

Kipchoge volta a bater o recorde do mundo da maratona em Berlim

O atleta queniano completou os 42,2 quilómetros em 2:01:08, cortando praticamente meio segundo ao que o próprio fizera há quatro anos, também em Berlim. Esta é a 17.ª vitória em 19 maratonas para Eliud Kipchoge, um bicampeão olímpico de 37 anos

Leia também

Os “super-heróis” com 66 Grand Slams perderam com os “maus da fita” que nunca ganharam algum. E o ténis viu por onde talvez possa crescer

A Laver Cup conseguiu ensanduichar-se no congestionado calendário anual do ténis, ser reconhecida pela ATP e atrair jogadores afamados, que a disputam muito a sério. O contexto da quinta edição (a despedida de Roger Federer que juntou velhos rivais) ajudou, mas já tinha pistas para o que a modalidade pode aproveitar: a sensação de proximidade para quem assiste é uma delas. O argentino Diego Schwartzman, um dos vencedores do torneio, resumiu à <strong>Tribuna Expresso</strong> algumas dessas valias

Leia também

O certeiro Dalot e o bom vento que veio de Espanha

Portugal bateu a República Checa, em Praga, por 4-0, na penúltima jornada do Grupo 2 da Liga das Nações. A Espanha perdeu com a Suíça, em casa, e deixou escapar assim o primeiro lugar para os portugueses. Diogo Dalot, que nunca tinha marcado pela seleção, fez dois golos

Leia também

“Jogo com o Barcelona no Mónaco. Aí é que percebi em que patamar tinha entrado: estou no FC Porto, a jogar ao lado do Messi, Xavi e Iniesta”

Djalma Campos sonhou ser arquiteto, mas a vida e o jeito para o futebol trocaram-lhe as voltas e acabou por seguir as pisadas do pai, que jogou no Benfica. O avançado angolano que cresceu em Sto. António dos Cavaleiros diz que quando chegou ao FC Porto percebeu que a excelência torna-se um hábito. Foi campeão pelos dragões, mas não chegou para convencer e acabou por emigrar, primeiro para a Turquia e depois a Grécia, períodos sobre os quais falamos na segunda parte deste Casa às Costas

Leia também

Jogadoras espanholas respondem à federação e às acusações de chantagem e capricho: “Chegar onde estamos agora custou anos de esforço”

O futebol feminino espanhol não atravessa um período fácil. Depois da Liga F, chegou a vez das jogadoras baterem de frente com a federação. Pelo futuro do futebol espanhol, e não por capricho como foram acusadas, as futebolistas apresentam-se unidas e prontas para lutar por melhorias, depois de 15 delas tomarem a posição de força de não voltar à seleção se o técnico Jorge Vilda não for afastado

Zona mista

O ténis traduz a tua personalidade e caráter, o que vês no campo é quem o Roger é (...) ele sempre quis evoluir o seu ténis e a sua vida, quis ser maior não em termos de feitos, mas de conhecer mais pessoas, saber mais coisas, tentar algo novo no court. O Roger inventava coisas malucas.

Ivan Ljubicic, treinador de Roger Federer, em entrevista à Tribuna Expresso feita em Londres, depois de não dormir grande coisa na véspera em que houve um pranto geral na despedida do suíço, que jogou a derradeira partida da carreira na Laver Cup, aos 41 anos.

O que vem aí

Segunda-feira, 26

⚽ A Liga das Nações volta a proporcionar um jogaço: Inglaterra e Alemanha defrontam-se (19h45, Sport TV1) em Wembley, com os da casa já despromovidos para a divisão B. À mesma hora, a Hungria recebe a Itália em Budapeste (Sport TV2).

Terça-feira, 27

⚽ Portugal recebe a Espanha, em Braga, na decisão de quem seguirá para a fase final da Liga das Nações (19h45, RTP1). Um pouco antes, o Brasil joga perante a Tunísia (19h30, Sport TV6).

Quarta-feira, 28

⚽👩 Feita a vitória por 2-3 na primeira mão, a equipa feminina do Benfica recebe o Glasgow Rangers na 2.ª mão do play-off de acesso à Liga dos Campeões (19h30, BTV).

Quinta-feira, 29

Sexta-feira, 30

⚽ Regressa a I Liga e logo com um Sporting-Gil Vicente (19h, Sport TV2). À noite, o FC Porto recebe o SC Braga (21h15, Sport TV1).

Sábado, 1

🌊 Arranca o EDP Vissla Pro Ericeira, etapa do Challenger Series, principal circuito de qualificação para o mundial de surf (Spor TV). O período de espera do evento vai até 9 de outubro e, entre os principais portugueses em prova, estarão Frederico Morais, Teresa Bonvalot (se recuperar de lesão) e Yolanda Hopkins.
⚽ Jogo apetecível na Premier League, para forrar o estômago à hora de almoço: Arsenal-Tottenham (12h30, Eleven Sports 1). Porque, logo a seguir, mais uma partida atrativa no dérbi de Manchester, entre o City e o United (15h, Eleven Sports 1). Na Série A, a Roma de José Mourinho e Rui Patrício vai a Milão visitar o Inter (17h, Sport TV1). E também há I Liga: Vizela-Portimonense (15h30, Sport TV2), Desp. Chaves-Estoril Praia (18h, Sport TV2) e V. Guimarães-Benfica (20h30, Sport TV1).

Domingo, 2

🏍️ Em MotoGP, dia para o Grande Prémio da Tailândia, com Miguel Oliveira ao barulho (11h, Sport TV).
🏎️ Grande Prémio da Singapura, em Fórmula 1 (13h, Sport TV).
⚽ Prossegue a I Liga: Rio Ave-Santa Clara (15h30, Sport TV1), Paços de Ferreira-Arouca (18h, Sport TV1) e Famalicão-Boavista (20h30, Sport TV1).

Hoje deu-nos para isto

Thomas Eisenhuth/Getty

Hasta el empate, siempre” foi uma das piadas ecoadas, repetidas e sedutoras de gargalhadas fáceis há seis anos porque, factualmente, facílimo era que toda a graçola virasse um comediante de sucesso, afinal a seleção nacional conquistara o Campeonato da Europa de futebol e a vitória tende a mascarar seja o que for, a fazer esquecer ou chutar para mais tarde qualquer preocupação. Em França e em 2016, ganhar somente um jogo em 90 minutos foi poesia à moda portuguesa.

Não que a competição seja a mesma, nem de relevância igual, a Liga das Nações proporciona outra caça a um troféu que Portugal até foi o primeiro país a conquistar, em 2019. A fortuna dos resultados do grupo no qual está metido na atual fornada da prova fez com que, na terça-feira, baste um empate à seleção para se qualificar rumo à fase final da competição. O jogo será contra a vizinha Espanha, em Braga, onde o selecionador Fernando Santos já avisou que “não vamos pensar nos empates e nessas coisas”. Que o dito seja feito, porque o que em tempos resultou nunca é garante de continuar a dar frutos.

A Tribuna Expresso continua à distância de um clique, onde poderá acompanhar a atualidade desportiva e as nossas entrevistas, perfis e análises. Siga-nos também no Facebook, Instagram e no Twitter. Obrigada por nos ler e tenha uma boa semana, quer ela seja de trabalho, férias ou de regresso às aulas.

E já agora, se ainda não escutou, o podcast chamado A Culpa é do Árbitro, com Duarte Gomes, terá como habitualmente um novo episódio à terça-feira, onde as regras e as leis do jogo são protagonistas, com o tom pedagógico que tantas vezes falta ao nosso mundo da bola.