Quando se queima o pão para toda a obra
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22.08.2022

O sensato, ponderado e carismático treinador do Sporting que é a cara e a voz do clube para tanta coisa, foi apanhado na curva da saída de Matheus Nunes
FILIPE AMORIM/Getty
Culpado me considero por o ter lá em casa a decorar uma estante e ser um amparador de pó. Há livros em que pegamos e manuseamos, nos quais fitamos o lombo ensanduichado entre outros exemplares, que vêm atrelados a nós em mudanças de poiso e só depois lhes deitamos a vista com olhos de ler, às vezes anos depois de serem nossa posse. O bom das palavras escritas a tinta em página branca é serem imunes a validade, nos livros não há prazos por mais que carcomidas pelo tempo fiquem as páginas e chegará o dia para a autobiografia de Alex Ferguson ser devorada.
A memória de um livro que aguarda pelo seu dia não serve para comparar o lendário treinador escocês, contador de 27 épocas no Manchester United, colecionador de Ligas dos Campeões, títulos ingleses e de dezenas de jogadores forjados para um nível sublime, com um hoje seu par, que nem sequer era futebolista sénior quando Ferguson, rendido à fortuna, viu a sua equipa virar uma final europeia nos descontos (1999). Salvas as descomunais distinções, o paralelismo deve-se às raízes que assumiram nos respetivos clubes por serem como são.
É uma não notícia lembrar que Rúben Amorim é um carismático orador. Cedo se constatou o dom do treinador para falar perante câmaras, microfones e ouvidos sedentos de adeptos e não só, a faladura que desbobina semanalmente no país onde o futebol tem direito a megafones mostra-o, há mais de três anos. Tem uma aptidão de desembrulhar qualquer resposta que lhe peçam com ponderação, sensatez e abertura que, além de raras, são anormais constatar em simultâneo e de ocorrência tão constante.
E ele largou as chuteiras para calçar os sapatos de um paradoxo andante: é dono destes dotes, mas desdenha entrevistas e concedeu somente duas no Sporting, a uma televisão e após conquistar um troféu.
O Sporting ter sido campeão nacional com Rúben Amorim, matando um jejum com idade adulta, não é solitária justificação para a preponderância que o treinador tem no clube, de dentro para fora - nem isso é uma patologia do Sporting. Em clubes que mordiscam títulos e competem na Europa, as protocolares obrigações de conferências de imprensa e flash interviews colocam os técnicos na linha de tiro das perguntas que, hoje, já não constam apenas em jornais e televisões, cuja maioria do tráfego vem de telemóveis espertos repousados em palmas das mãos. Dependendo da personalidade do sujeito, por cada intervenção há excertos esquartejados para entrarem em redes sociais e soundbites destacados para serem partilhados massivamente.
Rúben Amorim debita muitos e um dos traços que o diferencia é o recheio das suas palavras, o conteúdo que o afasta da superficialidade, o mostrar que matuta sobre os temas em vez de os evadir com uma frase pré-fabricada. Mais do que ser um treinador que, dentro do Sporting, quer e gosta de participar em todas as peças da engrenagem, acompanha o trabalho de outros escalões e técnicos e faz por ser figura presente em decisões para lá das que concernem o trabalho de campo, virou, desde cedo, a voz do clube para quase tudo. Por ele ser como é e porque o Sporting não é imune às tendências do futebol.
Como a enorme maioria, os leões formaram um casulo que não é de agora. Com canais de televisão ou YouTube, sites próprios, redes sociais com milhões de seguidores, os clubes foram-se fechando com os anos na fome de controlar as mensagens e os treinadores, com o tempo, ficando como o porta-voz não oficial da equipa e da instituição. Perante pedidos de entrevista ou esclarecimento negados, quem se forma para trabalhar equipas e futebolistas teve de aprimorar o poder de oratória para lidar com a falta de alternativa dos jornalistas - cada vez mais, os treinadores são os únicos funcionários de um clube disponíveis para falar, responder ou opinar sobre o que for. E quando todas as outras vozes (presidentes e dirigentes) não se ouvem, restam as deles.
Descomplexado como é, dono de tamanho à-vontade, Rúben Amorim é um exemplo da fortuna que um clube de futebol pode granjear. Ter no treinador uma figura que lide tão bem com as costelas mediáticas da bola protege quem deveria responder por temas sobre os quais ele fala, dando guarida a quem é o real responsável por questões em que o técnico não é o último a decidir. E dando o flanco, como aconteceu: um dia, estava a congratular Matheus Nunes pela recusa em ir para a Premier League e a ilustrá-lo como um dos jovens que, por estes dias, já preferem ficar no Sporting; seis sóis vividos, o médio que tantos problemas resolvia no campo era comprado pelo Wolves e Rúben disse estar “insatisfeito”, colocando a “incoerência” noutra morada e constatando que “a direção fez as suas escolhas”.
Ainda reforçou que não lhe compete vender os jogadores, descrevendo-se como mero “empregado” do clube onde, porém, tem de ser ele a falar sobre decisões que ultrapassam as competências escritas no seu contrato. Por mais pó angariado ou leituras feitas, essa papelada não define a sua palavra como a derradeira a ser dada nestes afazeres. Do presidente Frederico Varandas, do diretor-desportivo Hugo Viana ou da instituição, via comunicado, nada se ouviu e, previsivelmente, pelo menos um dos dirigentes terá dado o aval à saída que o treinador acreditava não acontecer e até sugeriu que não sucederia, publicamente. Melhor do que ninguém, Rúben Amorim compreenderá que se pôs a jeito porque é assim que o futebol hoje existe: com o treinador a preencher a voz pública do clube, que se refugia na sua presença mediática para o bem e para o mal.
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Zona mista
“O ser humano não vive a ar e água e o pão também já está caro, por isso é preciso reconhecimento financeiro (...) Que os portugueses nos continuem a apoiar, mesmo quando somos segundos ou terceiros.”
Palavras de Fernando Pimenta, o matulão que é todo um sinónimo de dedicar o combustível da sua existência para ser melhor do que os outros e ganhar com uma pagaia nas mãos, mais uma vez a apelar a que Portugal seja um país que olhe mais para quem dá a vida por outras modalidades que não o futebol.
O que vem aí
Segunda-feira, 22
⚽ A 3.ª jornada da I Liga fecha-se com Gil Vicente-Famalicão (20h15, Sport TV1) e, pouco antes, arranca na Premier League um jogo dos grandes: o Manchester United-Liverpool (20h, Eleven Sports1).
Terça-feira, 23
⚽ O Benfica tem a segunda mão do play-off da Liga dos Campeões frente ao Dínamo de Kiev (20h, Eleven Sports1) depois da vitória por 0-2 no primeiro jogo. À mesma, também Plzen-Qarabag e o Estrela Vermelha-Maccabi Haifa (no mesmo canal).
Quarta-feira, 24
⚽ Mais decisões sobre quem vai entrar na Champions: realizam-se o PSV-Glasgow Rangers, o Dínamo Zagreb-Bodo/Glimt e o Trabzonspor-Copenhaga (20h, Eleven Sports).
Quinta-feira, 25
⚽ Após a derrota por 4-0 nos Países Baixos, o Gil Vicente recebe o AZ Alkmaar na segunda mão do play-off de acesso à Liga Conferência (20h, Sport TV1).
Sexta-feira, 26
🏐 Começam os Mundiais de voleibol com jogos espalhados entre três cidades (Katowice e Gliwice na Polónia e Ljubliana, na Eslovénia). O torneio dura até 11 de setembro (Sport TV).
⚽ Arranca a 4.ª jornada da I Liga com o Paços de Ferreira-Estoril Praia (20h15, Sport TV1).
⚽👩 Joga-se a final da Supertaça de Portugal de futebol feminino entre o Sporting e o Benfica (20h30), em Leiria.
Sábado, 27
⚽ Mais jogos no campeonato nacional: o Marítimo-Portimonense (15h30, Sport TV1), o Boavista-Benfica (18h, Sport TV1) e o Sporting-Chaves (20h30, Sport TV1). Na Série A, a Roma de José Mourinho e Rui Patrício recebe a Juventus (17h30, Sport TV3).
Domingo, 28
🏎️ Feita a paragem de verão, a Fórmula 1 regressa com o Grande Prémio da Bérlgica (14h, Sport TV).
⚽ Mais I Liga: há o Famalicão-Santa Clara (15h30, Sport TV1), o Arouca-Braga (18h, Sport TV2) e o Rio Ave-FC Porto (20h30, Sport TV1).
Hoje deu-nos para isto
Fernando Pimenta no Centro de Alto Rendimento de canoagem em Montemor-o-Velho.
NUNO BOTELHO
Deu-nos para bater na tecla calejada pela insistência e, em si mesma, também paradoxal, tanto já se ouviu dizer da boca de tanta gente que Portugal é um país futebolcêntrico, por cá a crença de que a Terra gira em torno de uma bola é uma religião diária e não será só por milhões de pessoas terem as coordenadas dos seus gostos desportivos postas na modalidade que nem é uma fonte de simpatia para quem a pretende consumir - mas o preço dos bilhetes, os horários dos jogos, o canal fechado que os transmite ficarão para outras núpcias.
O problema é o interesse temperado com constância da maioria da população terminar no futebol e quem nos governa ir à boleia disso, adotando uma visão curta, interesseira e insuficiente no apoio a quem escolhe tentar ser o melhor noutras modalidades. Nesta semana que passou, houve medalhas ganhas por Portugal nos Europeus de natação e de canoagem prontamente congratuladas por líderes políticos de um executivo que nem se dá ao trabalho de ter um ministro para o Desporto porque, enfim, sei lá eu porquê.
Termos em Fernando Pimenta um multicampeão que já forrou uma divisão de casa com para lá de 120 medalhas a apelar, mais uma vez e na ressaca das suas vitórias, a que se invista nos atletas, se apoie quem abdica de viver privilégios que damos como garantidos e lhes dê condições para a bandeira do país aparecer em pódios das grandes competições deveria ser uma questão a ser resolvida em vez de ciclicamente repetida. Ele já é trintão e falará pelo bem de quem vem a seguir, para que esses não tenham de aproveitar o púlpito das vitórias para pedirem que não se lembrem deles só quando as luzes brilham.
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E já agora, aqui ficam os episódios do podcast "A Culpa é do Árbitro".