Isto ainda é anormal ou já é o novo normal?
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20.04.2020

Novak Djokovic em êxtase ou algures lá perto, ao ganhar em Wimbledon quando, mais uma vez, tudo estava contra ele
Clive Brunskill/Getty
Stan está refastelado, dá ares de ser no sofá, talvez seja na cama, tem a cabeça apoiada, os olhos semicerrados e quer saber qual foi a vez em que o falador de boné posto, pala para a frente, ficou mais chateado por perder. De inocente a pergunta pouco tem (isso seria consumado pouco depois), mas de normal terá ainda menos se nos agarrarmos à noção comum de normalidade que havia ali até ao início de março, quando um bicho que não vemos virou do avesso um pouco de tudo o que há na forma como vivemos e provocou, indiretamente, que um dos maiores ganhadores na história do ténis seja questionado pela derrotas que o enfureceram e a resposta implique, diretamente, quem lhe perguntou.
No meio dos 1.098 jogos de ténis que já fez, Novak Djokovic só perdeu 187 e admite que os dois que lhe tocaram no nervo foram contra Wawrinka, ali a conversar com ele no ócio caseiro e a insistir nos porquês, até o sérvio lhe explicar que, ao arrebatar o primeiro set a jogar bem e ao continuar a fazê-lo, não foi capaz de acompanhar quando o suíço ligou o modo super-guerreiro, subiu o nível de jogo e o derrotou nas finais de Roland Garros (2015) e do US Open (2016). Vemos um dos maiores tenistas que já houve, com os 17 canecos de Grand Slams arrumados algures lá na casa de onde fala, a ser cândido e eloquente enquanto confessa a fúria que sentiu ao ser superado em ténis jogado por quem já perdeu 301 jogos em 824.
O suíço é um belo de um tenista, portador de uma esquerda titânica, senhor dos seus três majors, mas azarento como 99% dos seus homólogos por coincidir no tempo com este sérvio, um espanhol e outro suíço que todos sabemos quem é, e a quem Djokovic se refere como GOAT, acrónimo para Greatest Of All Time, ou 🐏, se preferirem, já que estes parecem ser novos tempos para comunicarmos e este é o ponto ao qual pretendia chegar - porque se está a normalizar vermos os desportistas que admiramos enquanto comuns mortais e sobre quem escrevemos, nós jornalistas, a combinarem conversas descontraídas entre eles nas redes sociais, deixando cair todas as barreiras da constrição em direto, perante quem quiser assistir.
Outro dia, era Bruno Fernandes a confidenciar histórias-mil sobre a carreira à amiga e cantora Carolina Deslandes. Na mesma noite, que não me falhe a memória, Francesco Totti ligou a Christian Vieri e eis dois grandes jogadores a rirem com as recordações de futebol que arrancavam um ao outro. Antes, foi Sérgio Conceição a atender a chamada de Fabio Cannavaro da China. Kelly Slater tem feito várias tertúlias virtuais com amigos e conhecidos. Já vi o fenomenal Ronaldo a pôr a conversa em dia com Roberto Carlos e David Beckham. Há pilotos da Fórmula 1 a transmitirem corridas virtuais e o respetivo bate-papo que soltam com as guardas em baixo.
Todos descontraíram as defesas, falaram abertamente e desvendaram coisas que não trazem mal ao mundo por se saberem, mas, como qualquer pessoa, se contam mais facilmente estando um amigo do outro lado a ouvir. O que não é a mesma coisa de ter um jornalista a perguntar, que sempre terá outra visão das coisas - exterior, não enviesada e imparcial - e outras perguntas a fazer, sobretudo as que não quererão ser recebidas e, mais vezes do que menos, têm que ser feitas.
Mas, estando o mundo sem desporto palpável há quase um mês, desportistas um pouco por todo o lado têm mostrado que a normalidade de saber coisas deles através de quem pesquisa, pergunta e escreve sobre eles, já não será assim tão normal quanto isso. Com redes sociais na palma das mãos, eles têm normalizado o anormal e, talvez, quanto mais durarem estes tempos anormais, mais normal será vê-los a dizerem e contarem coisas sem intermediários pelo meio e nós a termos que nos adaptar a isso.
De que outra forma ouviríamos o lendário Novak Djokovic, que corre por fora de Nadal e Federer por ter sido a última das lendas a surgir, a admitir que o suíço "é sem dúvida o GOAT" por ser "um tipo adorado em todo o mundo", que "não espera que o público esteja do lado" dele e que "está ok com isso", já que durante muitos anos não esteve e se revoltava contra isso. "Tem mais a ver com a grandeza deles enquanto pessoas do que eu fazer alguma coisa de errado", confidenciou a Wawrinka e aos milhares que estivessem a ouvir. Creio que não ouviríamos tal coisa de outra forma.
E tenho a certeza que muito menos escutaríamos o sérvio a perguntar ao suíço qual o segredo da sua aparente juventude aos 35 anos, ele duvidar que a resposta lhe agrade por "não ser vegan", chegarem à conclusão que é o vinho italiano e uma gargalhada fechar o assunto.
O que se passou
A normalidade destes tempos anormais é mais um fim de semana ter passado, no fundo, com nada a acontecer. É devido ao anormal normalizado que, na Tribuna Expresso, continuámos a apalpar jogos acontecidos eram as coisas normais, a recordar coisas extraordinárias que romperam com o normal e a conversar com quem se destacou.
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Zona mista
Não sou um goleador natural. Nunca fui um Gary Lineker ou um Ruud Van Nistelrooy. Como é que bati recordes se não sou um goleador nato? Tempo.
O honesto Wayne Rooney teclou na sua coluna semanal do "Sunday Times" para falar dos 253 golos que deixou no Manchester United e os 53 que fez na seleção inglesa, marcas que o têm como o melhor marcador na história de ambas as equipas. Palpitam-lhe as dúvidas quanto à longevidade do recorde com a Inglaterra, não sobre o quão grisalho poderá ficar a marca no United - "simplesmente, porque os jogadores não permanecem nos clubes tanto tempo como dantes".
O que aí vem
Nada de novo na frente de assentar toda a bacia no sofá, manusear o comando da televisão ou o rato de um computador portátil no colo, olhar para o ecrã e o único troco para o salivar por desporto é tirar o pó à memória. Com tudo quanto é modalidades ainda ligado a sistemas de suporte à sua sobrevivência, aqui vão algumas sugestões do que federações e entidades vão tornando possível recordar.
Segunda-feira, 20
🏀 "The Last Dance" - outra tão banal e entediante espreguiçadela dos dias úteis terá uma valente dose de relevância, porque a Netflix decidiu antecipar a série que reconstrói a última época dos míticos Chicago Bulls com o mito Michael Jordan.
Terça-feira, 21
⚽ Argentina-Alemanha, 1986 - FIFA chegou-se à frente com a sua dose de solidariedade de conteúdos e, no YouTube, tem publicado as versões integrais de vários jogos icónicos dos Mundiais de futebol masculino e feminino. É sempre uma excelente desculpa para vermos Diego Maradona no seu estado máximo de existência, na final do Mundial que ganhou, em 1986.
Quarta-feira, 22
🏎️ GP do Mónaco, 1996 - carradas de chuva a cair no mais popular circuito citadino, condições para puxar o melhor que há nos pilotos e não tanto nos carros e a vitória para um francês que nem antes, ou depois, ganhou outra corrida.
Quinta-feira, 23
⚽ Portugal-Holanda, 2004 - e quando Maniche foi pedir a bola curta num canto e pumba, chutou-a logo dali, em arco, para o país que nunca ganhara ir à final do Europeu caseiro que ainda não seria a vez para ganhar? A Sport TV1 recorda essa meia-final, às 14h30.
Sexta-feira, 24
🏄🏻 Pipeline Masters, 2019 - não foi o primeiro, tão pouco o segundo brasileiro a ser campeão num mundo onde deslizavam americanos ou australianos à frente de quem fosse, mas Ítalo Ferreira foi o último a consegui-lo, na última etapa, no último heat do ano. A World Surf League mostra-nos agora os bastidores do que aconteceu no Havai para o título mundial de surf ir para Ítalo e não Gabriel Medina.
Sábado, 25
🎾 Open da Austrália, 2005 - ter 24 anos e chegar às meias-finais sem ceder um set, ganhando a André Agassi pelo meio, a caminho da plenitude física, deveria ter sido apenas uma burocracia para Roger Federer chegar a outra final na carreira, só que não. Neste ano, apanhou Marat Safin, quando o russo ainda era um daqueles tenistas que coabitavam com os extraterrestres no mesmo bairro, e perdeu, mesmo tendo match points lá pelo meio dos cinco sets.
Domingo,26
🏉 África do Sul-Austrália, 1995 - foi o Mundial em que Nelson Mandela vislumbrou uma oportunidade para remendar, nem que fosse um pouco, o país estilhaçado por décadas de ódio, racismo e segregação imposta por brancos contra negros. Fê-lo sendo um negro a apoiar o desporto dos brancos que todos os negros odiavam, pelo que simbolizava. E este foi dos melhores jogos que os springboks fariam até ao título.
Hoje deu-nos para isto

JEFF HAYNES
Se quiseres retirar o melhor do Michael, diz-lhe que ele não consegue fazer alguma coisa, então alguém lhe terá dito a 5.2 segundos do fim, como há horas disse por escrito e entre aspas a conta dos Chicago Bulls, que ele, o insaciável melhor entre os melhores, era incapaz de resgatar o sexto anel na última jogada que sua equipa tinha na final da NBA.
O resulto está no épico desmantelar de joelhos que provocou em Russel, dos Utah Jazz, e no lançamento que se seguiu para se escutar aquele majestoso som de uma bola a ser filtrada nas redes. Não vos peço perdão por isto não se tratar de spoilar, porque é retórico saber que clímax da "Last Dance" acabará por ir dar a este momento.
A esse e a outros também acabaremos por chegar, na Tribuna Expresso, onde esperamos que nos leia e acompanhe se estiver para aí virado, durante mais uma semana de confinamento social a que estes tempos nos obrigam.