Cancelemos 2020
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23.03.2020

Wembley, onde deveria acontecer a final do Euro'2020, em julho. Com as bancadas vazias, como estarão em julho
Mike Egerton - PA Images
Os dias de reclusão dão-nos algum tempo para pensar e durante este fim de semana cheguei à conclusão que deveríamos todos exigir desde já o cancelamento de 2020.
Passemos já para 2021, 2020 não trouxe nada de bom. 2020 começou por tirar-nos Paulo Gonçalves lá na Arábia Saudita. O nosso peito apertou um bocadinho. O Paulo, além de tudo o que conseguia tirar de uma moto, era um bom homem, simpático, um companheiro para os colegas, um daqueles que não deixava ninguém para trás naquelas dunas.
Depois roubou-nos Kobe Bryant. Kobe, que nós achávamos invencível, imortal, intocável. E a filha, Gianna, com apenas 13 anos, futura melhor jogadora de basquetebol do Mundo - Vanessa, a sua mãe, disse que sim e eu acredito, porque não haveria de acreditar?
Agora, chegou este vírus, invisível, que ataca à traição, ao mínimo descuido, que se aproveita das nossas fragilidades, que nos fechou em casa, que não nos deixa abraçar os nossos pais ou dançar com os nossos amigos. Pelo caminho - e eu sei que neste momento isso é o menos importante, mas não deixa de doer - roubou-nos o Europeu, o Europeu pan-europeu, ironias das ironias. Então não é que no ano em que íamos ter um Europeu jogado em todo o continente vem um vírus que não nos deixa sequer ir a Badajoz?
Roubou-nos a emoção do final de época que se aproximava, roubou muito provavelmente a festa que pintaria de vermelho a cidade Liverpool. Trinta anos à espera de festejar um campeonato e vai mesmo calhar quando nos deparamos com um dos maiores desafios das nossas vidas, quando nos proíbem os abraços e os beijos e as cervejas trocadas quando se celebra a alegria imensa que é ver a nossa equipa ganhar.
A época terminará, está claro. Só não sabemos quando e em que condições e com quem a assistir.
E vai, inevitavelmente, roubar-nos os Jogos Olímpicos. Não porque não possamos ter esperança que em julho esteja tudo já mais controlado e haja uma qualquer normalidade que nos permitirá, sei lá, beber um copo numa esplanada com outras pessoas sem que tenhamos de nos cumprimentar com o cotovelo. Mas porque a preparação dos atletas está parada ou ferida de morte. Como poderá um nadador treinar sem piscina? Como pode um judoca preparar-se sozinho em casa? Como vai um jogador de voleibol aprender aquela jogada sem os seus companheiros ao lado?
E a nós, vai saber-nos ao mesmo um Europeu e uns Jogos Olímpicos disputados num ano ímpar?
Não sei a resposta para muitas destas perguntas. Só sei que, por mim, cancelava-se já 2020.
O que se passou
Por estes dias muito pouco, a não ser cancelamentos de tudo e mais alguma coisa e notícias de atletas ou ex-atletas doentes.
Fora da orbita covid-19, e para quem segue o futebol americano, Tom Brady deixou meio mundo de boca aberta ao anunciar a saída dos New England Patriots, após 20 anos de glória. Vai jogar agora nos Tampa Bay Buccaneers.
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Zona Mista
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O que aí vem
Segunda-feira, 23
Em podendo, fique por casa
Terça-feira, 24
Se tiver mesmo de sair, mantenha sempre a distância social. Dois metros é razoável
Quarta-feira, 25
Não leve as 50 latas de atum que estão no supermercado. Há outras pessoas que adoram atum
Quinta-feira, 26
Caso o seu emprego permita, fique em casa. E lave as mãos amiúde, 20 segundos chegam
Sexta-feira, 27
Fique em casa, se puder
Sábado, 28
Não, ir correr para a marginal ao sol não é boa ideia
Domingo, 29
Caso lhe seja possível, fique em casa
Hoje deu-nos para isto
Permitam-me um apontamento pessoal: odeio paternalismos e, apesar de tudo o que foi escrito nesta newsletter, muito menos tenho pretensões de dizer às pessoas o que devem ou não fazer. Mas também tenho muitos familiares e amigos que trabalham na área da saúde. Alguns deles, já estão no caos. Outros preparam-se para nele entrar. Alguns convivem todos os dias com pessoas que poderão ou não estar doentes. Outros deles tiveram ainda de optar por se separar da família, por deixar de estar com os filhos porque, estando na linha da frente, mais cedo ou mais tarde o vírus poderá tomar conta deles.
Por isso, e apesar de tentar sempre colocar-me no lugar dos outros, gostava de dizer-vos que não tenho lá muito carinho pela vossa "necessidade" de ir "arejar" à beira-mar ou nas marginais. Todos teremos as nossas dores, os nossos problemas, todos vamos sofrer com isto, seja na saúde ou na carteira. Mas os verdadeiros heróis não somos nós, a quem simplesmente nos pedem para ficar em casa.
Que esta primeira página do diário espanhol "Marca" nos recorde disso.