É possível que David Stern tenha tido muita sorte naquele timing. A 1 de fevereiro de 1984, o filho de um dono de uma mercearia de Manhattan tornou-se comissário da NBA e, meses depois, Larry Bird e Magic Johnson reeditavam pela primeira vez numas finais da liga o duelo que havia começado ainda no basquetebol universitário. Foi a primeira de três finais entre Boston Celtics e Los Angeles Lakers com os dois rivais como protagonistas. Mas não acabou por aí: semanas depois dos Celtics levantarem o caneco, o draft de 1984 abriria as portas da NBA a Hakeem Olajuwon, Michael Jordan e Charles Barkley.
É uma sorte chegar ao cargo máximo da maior liga de basquetebol do mundo quando tudo isto está a acontecer. Mas já antes a NBA tinha tido atletas de exceção, jogadores de qualidade sobrenatural.
A diferença é que ninguém os via.
É esse o grande legado de David Stern, comissário da NBA até 2014, que morreu no primeiro dia de 2020, na sequência de uma hemorragia cerebral sofrida há três semanas. Tinha 77 anos. Onde outros viam uma liga de segunda categoria, em que nem as finais tinham honra de transmissão televisiva em direto, Stern viu a Disney. A frase é do obituário do site “The Ringer” e serve que nem uma luva na figura do nova-iorquino, que tornou a NBA num espectáculo planetário, na mais global das ligas norte-americanas, numa máquina de fazer dinheiro.
Foram trinta anos de decisões fundamentais para que a NBA seja a liga que hoje conhecemos, num papel que começou mesmo antes de Stern ser oficialmente um empregado da NBA. Ainda nos anos 70, enquanto jovem advogado, Stern foi decisivo, por exemplo, na fusão da NBA com a ABA, papel que lhe valeu um convite para se tornar conselheiro da liga e pouco tempo depois vice-presidente com responsabilidades no marketing, televisão e relações públicas.
Em 1983, ainda como vice-presidente de uma liga com inúmeras equipas em dificuldades económicas, Stern ajudou a criar o primeiro limite salarial da história do desporto norte-americano e que seria seguido pela NFL e NHL anos depois. Um acordo que impediu o aumento do fosso entre as equipas mais ricas e aquelas com menos poder financeiro, ajudando de forma indelével à competitividade da liga.

Com Magic Johnson e Larry Bird em 2012
Steven Freeman/Getty
Um ano depois, chegava à liderança de uma liga que vivia com entusiasmo a rivalidade entre Celtics e Lakers mas tinha dificuldade em vender a sua imagem. Stern percebeu desde logo que a NBA só se tornaria um monstro se se tornasse um desporto apelativo para a televisão e se soubesse potenciar as suas grandes estrelas, Larry Bird e Magic Johnson, que rapidamente se tornaram caras habituais em spots publicitários.
Mas David Stern não era só um executivo com olho para a imagem. Havia algo de premonição e de antecipação de problemas: tudo o que colocasse em causa o espectáculo e a competitividade era para abater. Por essa altura, o número 1 do draft ia para uma das duas piores equipas da temporada anterior: os últimos classificados das Conferências Este e Oeste decidiam com moeda ao ar quem seria o primeiro a escolher. Com as equipas avisadas que o draft de 1984 estava cheio de talento, muitas optaram por perder de forma propositada, para ficarem com o pior registo da respetiva conferência e terem assim mais hipóteses de agarrarem o número 1 do draft.
Para tentar pelo menos mitigar estas manobras, em 1985 Stern instituiu a lotaria, que dava a todas as equipas que não tinham chegado aos playoffs as mesmas hipóteses de agarrarem a 1.ª escolha do draft. O sistema sofreu algumas alterações até aos dias de hoje, em que se baseia num sistema de probabilidades, mas a base foi criada por David Stern.
É também por sua influência que a liga intensifica o combate às drogas, então mais ou menos omnipresentes nos balneários da NBA. Em agosto de 1980, um estudo publicado pelo "LA Times" sugeria que entre 45 e 70% dos jogadores da liga consumiam cocaína. É já sob tutela de Stern que entram em vigor duras suspensões para quem testasse positivo a drogas, sem olhar a nomes. Em 1986, Micheal Ray Richardson, quatro vezes All-Star, foi banido da liga após um terceiro teste positivo a cocaína. Stern admitiria mais tarde que a decisão de expulsar um jogador da NBA lhe tinha deixado sentimentos horríveis, mas Richardson, que foi obrigado a se mudar para a Europa para continuar a carreira, diz acreditar que essa decisão foi essencial para o arrancar das drogas.
O Dream Team e as portas abertas para o mundo
Até 1992, os jogadores da NBA estavam impedidos de participar nos Jogos Olímpicos. Com a mudanças das regras da FIBA (a federação internacional de basquetebol), e depois de iniciais objeções, David Stern viu nos Jogos de Barcelona uma oportunidade de ouro de mostrar a liga ao mundo e foi uma das forças mobilizadoras da formação do Dream Team.
A NBA quebrava assim barreiras geográficas: Michael Jordan, Magic Johnson, Larry Bird, Karl Malone e Scottie Pippen mostraram o espectáculo do basquetebol norte-americano perante uma audiência global e a partir daí nada foi como dantes. Embora antes dele muitos outros jogadores europeus tenham cruzado o charco, a chegada do alemão Dirk Nowitzki à NBA em 1998 marca verdadeiramente o início da era global da liga. Em 2002, Yao Ming tornou-se no primeiro jogador sem qualquer experiência de basquetebol nos Estados Unidos a ser escolhido na 1.ª ronda do draft.

A introdução da lotaria do draft foi uma das novidades implementadas por David Stern, ainda nos anos 80
George Tiedemann/Getty
Hoje em dia, a NBA tem mais de uma dezena de filiais espalhadas pelo globo, faz vários jogos da temporada regular fora dos Estados Unidos e Canadá e, longe dos tempos em que os jogos eram transmitido em diferido em horários tardios, agora há mais de 215 territórios no planeta com acesso à NBA. Em direto.
A propósito: em 2019, o campeão foi uma equipa do Canadá (Toronto Raptors, que o próprio Stern ajudou a chegar à NBA), o jogador mais valioso da liga foi um grego (Giannis Antetokounmpo) e o rookie do ano foi um esloveno (Luka Doncic). Esta temporada há 108 jogadores nascidos fora dos Estados Unidos a jogar na NBA, vindos de 38 países diferentes.
As falhas
As reações em catadupa de jogadores, ex-jogadores e outros atores da NBA são um barómetro fiável da importância que David Stern teve para a modalidade. Ainda assim, mesmo os homens mais fundamentais têm as suas falhas e Stern teve os seus momentos polémicos.
Em 2005, e na tentativa de dar uma imagem ainda mais profissional à liga, implementou um dress code para todos os jogadores. Numa liga em que a maioria dos jogadores são afro-americanos, a decisão foi vista, na altura, como racista. Quinze anos depois, há quem aponte a curiosa medida como o primeiro passo para que muitos jogadores se tivessem entretanto tornado autênticos ícones da moda.
Em 2011 terá tomado aquela que será, por ventura, a sua decisão mais ambígua e divisória. Numa altura em que a NBA geria de forma interina equipa dos New Orleans Hornets, enquanto não surgia novo comprador para a franquia, David Stern vetou a troca de Chris Paul dos Hornets para os Lakers, onde faria parelha com Kobe Bryant. Os motivos para o veto não ajudaram: “basketball reasons”, justificou então Stern.
Desde aí, os Lakers nunca mais chegaram às finais da NBA e, até deixar o cargo de comissário, em 2014, David Stern passou a ser alvo das maiores vaias e assobiadelas a cada draft. “Temos de explicar à nossa audiência internacional que, nos Estados Unidos, a vaia é um sinal de respeito”, disse, com fair-play, durante o seu último draft, em 2013.
O legado
No entanto, não há insulto ou vaia que varra os números. E os números dizem-nos que, por exemplo, no início dos anos 80, 16 das então 23 equipas da NBA perdiam dinheiro e que as arenas conseguiam, em média, encher pouco mais do que metade da sua capacidade. Dizem também que meses antes de ceder o seu lugar de comissário a Adam Silver, a NBA, que nos anos 80 mal se conseguia vender dentro de portas, assinou um contrato de cedência de direitos televisivos de 24 mil milhões de dólares em 9 anos. E que o valor médio de uma equipa da NBA em 2014, quando Stern se retirou, era de 634 milhões de dólares (aproximadamente 560 milhões de euros), quase 32 vezes mais do que no início dos anos 80, quando o valor estava na casa dos 20 milhões de dólares (perto de 18 milhões de euros).
Mas há mais que números. Para lá da liga globalizada, sem a influência de Stern junto das diferentes franquias da NBA não tinha existido apoio para a criação da WNBA ou da D-League, uma espécie de 2.ª divisão da NBA que abre as portas do basquetebol profissional a centenas de jogadores sem lugar na liga. Sem o seu apoio, talvez Jason Collins não se tivesse tornado no primeiro jogador no ativo numa das principais ligas norte-americanas a assumir a sua homossexualidade. E isso talvez valha mais do que milhões de dólares.