“Não tenho qualquer pergunta, quero apenas agradecer-vos”, disse um jornalista marroquino na conferência de imprensa após a vitória contra a Espanha. “Recuperaram a confiança de toda uma geração de marroquinos. Quarenta milhões de marroquinos estão hoje felizes. Vocês escreveram história por Marrocos. Falo com lágrimas nos olhos. Muito obrigado”.
A vitória de Marrocos foi a quarta vez neste Mundial que uma equipa árabe derrotou um adversário que carregava todo o favoritismo: primeiro foi a Arábia Saudita na fase de grupos, contra a Argentina; a vitória da Tunísia sobre a França; e a da própria seleção de Marrocos sobre a Bélgica. Mas só a seleção que eliminou a Espanha, uma das favoritas a vencer o Mundial, é a única presente nos quartos de final do torneio.
A reação do jornalista após a partida representa bem aquilo que está a acontecer no país. Talvez até o que vai na alma de qualquer marroquino. Às lágrimas de felicidade junta-se a euforia e, vitória após vitória, as ruas enchem-se de adeptos que festejam uma alegria no meio de um período pautado por tristezas.
A mesma praça em Rabat, capital de Marrocos, que se encheu de festejos na terça-feira, tinha enchido também poucos dias antes para o maior protesto realizado no país nos últimos tempos. Cerca de 3 mil manifestantes manifestaram-se contra o aumento dos preços como resultado da inflação. Segundo o “El País”, o protesto organizado pela Frente Social Marroquina serviu também para denunciar o mau estado dos serviços públicos e as detenções políticas que têm ocorrido.
“É espantoso ver todos os marroquinos felizes, para variar, especialmente depois de tantos anos a tentar chegar a esta fase”, disse Laila Berchane, uma empresária de Casablanca, ao “New York Times”, explicando como “especialmente num ano de incertezas económicas, conflitos globais e recuperação da crise pandémica”, a vitória conseguida perante do espanhóis “era tão necessária”. Houve marroquinos a festejar nas ruas de Espanha, França e até nos EUA, a iluminarem o edifício da Câmara Municipal de San Francisco, na Califórnia, com as cores da bandeira do país.
O futebol surge aqui como uma forma de, por instantes, fugir aos problemas. É o que escreve a analista financeira Fátima Uriaghli num artigo publicado no “La Quotidienne”.
“O futebol conseguiu fazer-nos esquecer as desilusões económicas. A qualificação da equipa nacional parece ser um parêntesis encantado neste contexto sombrio. A magia do futebol forjou uma comunhão, numa alegria indescritível, de milhões de marroquinos. Políticos e sociedade civil, trabalhadores e empresários, cidadãos, todos puseram de lado as suas diferenças e divergências”, lê-se.


O próximo adversário a apanhar a cruzar-se com a surpresa do Mundial é Portugal. No sábado, a seleção nacional joga contra 11 jogadores em campo, mas, a manter-se a tendência, terá também que lidar com as bancadas recheadas de adeptos que os querem ver perder.
Pelos vistos, serão cada vez mais. Esta sexta-feira instalou-se o caos em Marrocos depois de vários adeptos tentarem garantir um lugar nos sete voos adicionais que a companhia aérea Royal Air Maroc (RAM) anunciou para ajudar os adeptos do país a chegarem ao Catar para irem assistir à partida. Para o conseguirem teriam que apresentar um bilhete para a partida e o cartão Hayya, o visto de entrada temporário no Catar para quem vai durante o Mundial.
A enchente foi tal que, apesar de terem conseguido bilhete para o jogo, vários adeptos acabaram por não ter lugar nos voos - os sete aviões chegarão a Doha totalmente preenchidos.
Estes adeptos vão juntar-se a um grande grupo que tem acompanhado a seleção de Marrocos no Catar ao longo de todo o torneio. Após o jogo com a Espanha, a bandeira do país africano era a que mais se via em Souq Waqif, um mercado em Doha, onde os adeptos dançaram e festejaram durante várias horas.
“Sinto-me como se estivesse em Marrocos”, disse, ao “The Arab Weekly”, Ibrahim Boutahar, um adepto marroquino que vive em Doha e se juntou à multidão durante os festejos: “A vibração é marroquina, a música, os rituais”.
Laila Oulai é quem tem liderado o grupo de adeptos no local.
Antes mesmo de Marrocos conseguir um lugar nos ‘oitavos’, confessou ao site do Mundial estar crente que este apoio seja uma grande ajuda para a equipa. “Os nossos adeptos vão criar cenas espetaculares nas bancadas, serão o 12.º jogador. Estamos todos muito entusiasmados por apoiar a equipa no Catar, que é uma segunda casa para muitos de nós.”
Chega ao ponto de o Mundial controlar a vida dos adeptos em questões onde, à partida, o futebol teria muito pouco a dizer. “Espero que possamos inverter a nossa má forma no torneio. Merecemos ir muito mais além da fase de grupos e desejo boa sorte ao nosso novo treinador. Este Campeonato do Mundo é uma fonte de grande orgulho para todos os árabes. Na verdade, estendi a minha residência no Catar apenas para poder assistir. Os adeptos virão de todo o lado para apoiar os nossos amados Leões”, confessou Abderrahmane Moussaoui, residente no Catar há 20 anos.
Além de ter unido o seu povo e acalmado a insatisfação em relação aos problemas económicos, Marrocos, como o último país africano ainda em competição e a primeira nação árabe a chegar aos quartos de final, conseguiu algo talvez mais difícil: colocar territórios árabes do Médio Oriente e africanos a torcerem pelo mesmo.
Os líderes estão divididos e alguns deles indiferentes a causas que outros defendem, mas nesta altura é o que os une que fala mais alto: a língua em alguns casos, a religião na maioria dos casos, a história e até a vontade que, desta vez, sejam eles e não o Ocidente.