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Mundial 2022

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Jackson Irvine, o jogador e ativista com Lou Reed tatuado no corpo, Kendrick Lamar nos ouvidos e os direitos humanos como bandeira

É diferente do jogador “comum”. Jackson Irvine não só não foge dos temas que marcam a sociedade ou a política, como os enfrenta naquela que pode ser uma das maiores plataformas para chegar às pessoas: o futebol. Foi a recusar a separação entre desporto e tudo o resto que o médio australiano chegou e vai sair do Catar, onde espera que a diferença também aconteça

Rita Meireles

Ryan Pierse - FIFA

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"Ele tinha uma arrogância nele, de uma maneira boa. Ele acreditava na sua capacidade, algo que todos os bons jogadores deveriam fazer".

Foi assim que, em entrevista ao jornal escocês “The Press and Journal”, Jim McIntyre, que levou o australiano Jackson Irvine para o Ross County, descreveu o jogador. É muito provável que tenha sido exatamente isso que levou a sua carreira a acontecer da maneira que tem acontecido: ao seu ritmo, nos seus próprios termos.

Tinha 15 anos quando garantiu que assim seria.

Em 2008, o seu lugar era no banco do Richmond Soccer Club, um clube de Melbourne. A equipa era de sub-21, mas Irvine era um dos mais novos e por isso tinha outros nomes na sua frente para a titularidade. Em algumas partidas nem no banco tinha lugar e era obrigado a ficar na bancada. Convencido de que precisava de mais do que aquilo que estava a receber, pegou no telefone e ligou ao treinador.

“Eu quero jogar”, disse-lhe. Quando ouviu que ainda não estava na altura, que ainda lhe faltava algo, Irvine respondeu: “Preciso de ir para outro sítio”. E desligou.

“Olho para trás agora e fico tipo: 'Que sacana atrevido'. Um miúdo de 15 anos a ligar a um treinador e perguntar porque é que não joga? Ele deve ter desligado o telefone e pensado: 'Mas que raio? Quem é que este miúdo pensa que é?'", disse o australiano ao canal estatal australiano ABC News.

Este telefonema, e a decisão de deixar o Richmond, não só o levaria, mais tarde, à Escócia, onde assinaria pelo Celtic, como também pode ter sido o momento em que teve a certeza que não poderia silenciar a sua própria voz. Que hoje em dia se ouve nos quatro cantos do mundo através do futebol.

Richard Sellers

Jackson Irvine é provavelmente o jogador da seleção australiana, e deste Mundial, que mais fala sobre as questões sociais e políticas que os futebolistas muitas vezes optam por evitar. Aliás, foi quem mais incentivou os colegas a gravar um vídeo, antes mesmo de chegarem ao Catar, onde os jogadores incentivam o governo do país do Médio Oriente a fazer mudanças na área dos direitos humanos.

"A minha mãe sempre foi muito consciente de tudo o que se passa no mundo e sempre me encorajou a ser curioso e a ter uma compreensão do que se passa fora da minha própria bolha", disse ao ABC. "A inclusão tem sido sempre uma grande, grande parte de tudo. Os membros da minha família fazem parte da comunidade LGBTQIA+, pelo que tudo relacionado com diversidade e igualdade sempre foi uma grande parte da conversa. A consciência ambiental também tem estado sempre na primeira linha na forma como vivemos as nossas vidas”.

Basta entrar nas redes sociais do jogador para se perceber a forma como pensa e vive a vida. Vai desde a t-shirt com a mensagem “Black Lives Matter”, ao cartaz onde se lê “a água é um direito humano”, ou até às fotografias onde surge com a braçadeira com as cores do arco-íris no seu atual clube, onde é um dos capitães: o FC St. Pauli.

Cathrin Mueller

Ironia ou destino, a verdade é que Irvine conseguiu chegar àquele que será o único clube no mundo que, mais do que futebol, é sobre tudo aquilo que o jogador defende. Depois de assinar pelo Celtic, esteve ainda emprestado ao Kilmarnock e Ross County. Ao longo destes anos teve a oportunidade de conhecer melhor a Escócia e o lado da família do pai, apesar de sempre se ter sentido australiano. Seguiu-se o Burton Albion e o Hull City, em Inglaterra, o Hibernian, da capital escocesa, e depois chegou ao St. Pauli, na Alemanha.

O clube tem fãs em todo o mundo e não é pelo brilhante futebol que joga em campo. É muito pelo facto de não ter qualquer tipo de preconceito e defender acerrimamente aqueles que tantas vezes são discriminados. O clube é contra o racismo e homofobia, como se pode perceber pelas mensagens gravadas nas paredes do seu estádio. Estão presentes de uma forma ativa na política, considerando-se um clube antifascista, e evitam qualquer patrocinador que não esteja alinhado com a sua mentalidade. No fundo, transcendem o futebol e recusam a ideia de divisão.

“A maioria das pessoas sabe o que este clube significa e do que se trata. Faz-nos perceber que é possível, que o futebol pode ser assim. St. Pauli é explícito em todas as frentes, do anti-racismo à anti-homofobia, passando pelo apoio aos refugiados. Escrevemos numa das nossas bancadas: ‘Nenhuma pessoa é ilegal’. Isto faz parte da composição do clube. Não digo que todos precisam de ser como somos, mas é possível não nos esquivarmos às grandes questões, e vivê-las, respirá-las e incorporá-las em tudo. Quando se trata de braçadeiras de arco-íris, não se trata apenas de um gesto: usamos todas as semanas há anos”, explicou o médio de 29 anos.

Na cabeça do jogador, estes gestos são realmente importantes uma vez que é essa a imagem que fica na memória de quem vê, mas é necessário que seja algo constante e não apenas momentâneo. Foi por isso que a seleção australiana optou por deixar clara sua posição antes mesmo de chegar ao Catar e é por isso que pretendem continuar a aprender e melhorar, como fizeram ao longo dos últimos meses.

"Fundamentalmente, somos todos amantes de futebol, e o Mundial é o maior palco de todos. É onde cresceste a querer jogar. Mas há um dilema ético. Quanto mais e mais aprendi sobre estas questões, mais claro se tornou que iria ficar destroçado por lá estar. Eu quero participar. Eu não quero boicotar. Mas então é: o que posso fazer? O que há mais para fazer? Que outro papel podemos desempenhar?”, disse.

Contra a corrente

Faz pouco sentido colocar a palavra “estereótipos” perto do nome Jackson Irvine, mas se existe um jogador de futebol modelo, o australiano não será como ele. Seja nas áreas da música, moda ou estética, a sua inspiração é o passado. Do bigode saído de um filme dos anos 70 até às tatuagens que transportam para a música de outros tempos.

"Ele era um original total", continuou McIntyre. "Tinha um sentido de moda maluco, mas não ligava ao que os outros diziam. Ele estava muito confortável no seu próprio estilo, o que é para ser admirado. Não é o que se chamaria um futebolista típico e fê-lo à sua própria maneira”.

A música, uma das suas grandes paixões, pode aliás ser motivo para que tenha crescido a pensar como pensa. Na banda sonora da sua vida estão músicos que foram também ativistas, como Nick Cave, Bob Dylan e David Bowie. Regressando ao presente, essa tendência continua, com o rap de Kendrick Lamar e Childish Gambino.

Irvine é um dos poucos jogadores que está no Catar consciente de que a sua missão é muito maior do que ganhar jogos ou erguer uma taça. Que o tópico lançado pela competição em torno dos direitos humanos vai continuar presente no seu discurso é tão certo quanto a sua paixão por Lou Reed ou MF Doom, que tem tatuados no corpo.