O balão maquiavélico que cresce nas entranhas dos futebolistas argentinos sempre que jogam uma competição destas já havia esvaziado. O golo de Lionel Messi permitiu que uma nação inteira recuperasse a respiração normal. Pablo Aimar, adjunto de Scaloni, deixou escapar algumas lágrimas que não saíam do sítio, estava sufocado em agonia. O derradeiro alívio chegaria perto dos 90’.
Canto para a Argentina. Rodrigo de Paul caminhou como se não tivesse memória, depois de mais um jogo infeliz, embora bastante melhor a partir do 1-0. O jogador do Atlético de Madrid tocou para Leo Messi. O homem que transporta a pesadíssima camiseta 10, um tecido mais vulnerável à mística gravidade, recebeu com o pé direito e passou para dentro, com a canhota. Era para Enzo Fernández. O jovem, que vai encantando no Benfica e que agora parece ter cravado uma bandeira com o seu rosto no Catar, acionou o radar e confirmou que ninguém lhe roubava a carteira pelo lado cego.
Com um toque, assinou o livro de intenções. Com outro, acelerou a ferramenta que enamora tantos. Érick Gutiérrez colocou-se entre ele e a baliza. Enzo passou então uma perna por cima da bola, fingiu que saía para a esquerda, mas afinal seguiu pela direita. É o jogo do engano, como dizem os argentinos. Sem conhecer rumores da hesitação, bateu subitamente com uma fineza que realmente é escrava da beleza. Guillermo Ochoa, uma das grandes figuras do Campeonato do Mundo, abriu o corpo, esticou o braço, mas não chegou.
Da tribuna de imprensa, num enfiamento abençoado, a bola deslizou pelo ar quase em slow motion. Depois, o grito coletivo da besta num vulcão. Desta fez a festa foi festa, não era alívio ou esvaziamento de tensões bárbaras. Foi a celebração de um golo bonito, esquece-se o tradicional sofrimento argentino.

Simon Stacpoole/Offside
“Foi um dos melhores golos da minha vida. Estou muito feliz", diria pouco depois aos jornalistas portugueses. O ambiente estava finalmente mais leve. A passagem dos jogadores na zona mista, após a derrota com a Arábia Saudita, era angustiante, quase alastrava aos que estavam por ali a tentar obter alguma resposta. Os perfumes até desfilavam com outra leveza.
O menino de San Martín não quis conversas sobre rumores e sobre como este golo, um golazo, pode mudar a sua vida. “Desde miúdo que sonho jogar com esta camisola e hoje cumpri também o sonho de fazer um golo num Mundial.” O sorriso era deslumbrante. “Estou a desfrutar do momento com os meus companheiros”.
Depois do remate que virou o Lusail Stadium do avesso, onde havia argentinos com as mãos na cabeça desde os 10’ e que provocou mais lágrimas, desta vez em Scaloni, Enzo recebeu um abraço especial. Leo Messi abraçou-o com uma alegria honesta antes de serem engolidos pelos colegas. Com este golo, Fernández (21 anos e 313 dias) tornou-se no jogador mais jovem daquele país a marcar num Mundial depois de Messi em 2006, contra a Sérvia. O mago tinha 18 anos e 357 dias, conta a Opta.

Maja Hitij - FIFA
“Não me surpreende o que o Enzo fez”, disse Leo, na conferência de imprensa. “Conheço-o e vejo-o a treinar todos os dias. Merece-o, porque é um jogador espetacular e importantíssimo para nós. Estou muito feliz por ele.”
Lá fora, aos microfones da “ESPN Argentina”, os pais de Enzo Fernández estavam muitíssimo comedidos e felizes. Depois de algumas palavras, a emissão voltou para o estúdio, algo montado ali no meio do nada em altura, nas imediações do estádio. Hernán Crespo, treinador do Al-Duhail do Catar, não conseguiu responder. Estava emocionado. É por ser a família?, perguntaram-lhe. Dizia sim com a cabeça, com um esgar que pertencia ao que é bonito e sensível.
“E porque conheço o Enzo”, continuou o histórico número 9 que foi treinador de Enzo no Defensa y Justicia. “São coisas que te marcam e justificam o trabalho que faço hoje, dar o 0,1% do que está a acontecer. Emociona-me o pai, emociona-me o Enzo. Sei do trabalho de muitos deles e, bom, este é o sonho de muitos, fazer parte do Mundial, o que significa vestir a camisola da Argentina, e vê-lo nascer futebolisticamente. Isso é lindo, vês a humildade, o trabalho e a seriedade. Teve de dar uma volta grande, não é fácil sair da formação do River e ir para o Defensa.”

JUAN IGNACIO RONCORONI
Também Nicolás Otamendi estava orgulhoso do colega de clube. “Eu partilho o dia a dia com o Enzo, sei como trabalha, sei da humildade que tem. Marcou um golaço num Mundial e estou muito contente por ele.” A seguir, um jornalista português, entre risos, comenta que com um golo destes não vai partilhar muitos mais momentos com ele em Lisboa. Otamendi, uma das melhores exibições da prestação cinzenta da equipa, quase gargalhou.
Na próxima quarta-feira, a Argentina (3 pontos) disputa contra a Polónia (4) a liderança do grupo… ou a continuidade no torneio, pois Arábia Saudita (3) e México (1) continuam à espreita. Pelas conversas com argentinos e também pelas crónicas que vão pintando os jornais desportivos, dificilmente Enzo não terá mais protagonismo no derradeiro jogo da fase de grupos.