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Mundial 2022

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John Herdman, o realizador de sonhos. Deles e delas

A seleção masculina do Canadá esperou 36 anos para voltar a disputar um Campeonato do Mundo de futebol. O prolongado jejum, que termina às 19h portuguesas, com o primeiro jogo frente à Bélgica, foi quebrado pela mão de um inglês, John Herdman, que é também o primeiro treinador a levar tanto uma seleção de homens como de mulheres a Mundiais

Alexandra Simões de Abreu

Vaughn Ridley

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Quando em 2018 a FIFA anunciou que a candidatura tripla do Canadá, EUA e México havia sido a escolhida para receber o Mundial masculino de 2026, os canadianos vibraram com uma certeza: não teriam de esperar outros 32 anos para saber se estariam presentes na mais importante competição masculina de futebol de seleções.

Desde 1986 que nunca mais tinham conseguido apurar-se para um Mundial masculino, ao ponto dos seus amantes de futebol começaram a ganhar o hábito de torcer por outros países a cada quatro anos.

Se a boa notícia desse dia foi reconfortante, não se compara com o sentimento de orgulho vivido a 27 de março deste ano, quando a vitória por 4-0 imposta à Jamaica fez do Canadá a primeira seleção da CONCACAF a carimbar o passaporte para o Mundial do Catar.

Finalmente, a seleção masculina podia deixar de corar de vergonha cada vez que era comparada com os resultados da sua congénere feminina, cujo palmarés inclui, entre outros títulos, uma medalha de ouro e duas de bronze em Jogos Olímpicos e os quartos-de-final no Mundial de 2015.

O momento histórico que o país vive no futebol deve-se certamente a inúmeros fatores, algum investimento, mas há um elemento comum, a ambos os géneros, que parece ser a chave-mestra deste sucesso: John Herdman.

Uma infância dura na terra de Mr. Bean

Quem é o inglês de sorriso fácil e contagiante, que revolucionou o futebol feminino canadiano e parece estar a fazer o mesmo com os homens?

John nasceu há 47 anos em Consett, a terra natal de Mr. Bean, ou melhor, o ator Rowan Atkinson, uma pequena cidade no noroeste do condado de Durham, perto de Newcastle, Inglaterra, que durante muitos anos teve como principal empregador a indústria siderúrgica.

Quando a fábrica onde o seu pai trabalhava fechou em 1980, as dificuldades aumentaram, as ruas encheram-se de protestos contra Margaret Thatcher e os problemas de alcoolismo, depressão e criminalidade alastraram. O pai de John chegou a ser internado por um breve período devido a problemas de esquizofrenia, enquanto a mãe lutou com problemas de alcoolismo. O sonho de um dia deixar para trás a pequena e pobre Consett, cresceu na cabeça de John, como da maioria dos amigos com quem jogava à bola na rua, a uma velocidade bem superior ao que o corpo esticava com o passar dos anos.

Em várias entrevistas, o treinador confessou que o mítico golo do génio argentino Diego Maradona, nos quartos de final do Mundial de 1986, a que assistiu ao lado do pai, em frente à televisão, foi o momento em que se apaixonou definitivamente pelo futebol. No meio das lágrimas de tristeza pelo afastamento da Inglaterra, não conseguiu deixar de sentir: “Uau, é isto que quero fazer. Quero jogar por Inglaterra”, assumiu.

Mas John foi apenas um jogador de meio-campo mediano que cedo percebeu que o seu futuro não estava dentro das quatro linhas, mas à beira delas, como treinador. Após concluir o secundário, foi para a Northumbria University, em Leeds, estudar Desporto, onde conheceu Simon Clifford, que levou para Inglaterra o estilo do futebol brasileiro.

Começou a ensinar futebol na Brazilian Soccer School, em Consett, para onde jogadores do Sunderland começaram a enviar os seus filhos. Depressa surgiu o convite para o jovem treinador mudar-se para a academia de Sunderland, onde passou três anos até decidir partir com a mulher à aventura para a Nova Zelândia. Em 2003 tornou-se Diretor de Educação de Treinadores e pouco depois Diretor de Desenvolvimento do Futebol. Um ano mais tarde criou o programa chamado Whole of Football, um sistema de ensino e construção do jogo desde a infância até à elite. O programa tornou-se um modelo para todo o futebol neozelandês e já foi adotado pela Austrália.

Um sedutor da mente e do coração

Chamado a liderar a equipa nacional feminina de futebol da Nova Zelândia, não virou a cara ao desafio e ocupou o cargo que de 2006 a 2011, tendo levado as equipas de sub-20 ao Campeonato do Mundo, em 2006 e 2010; e a equipa sénior aos Mundiais femininos, em 2007 e 2011, assim como aos Jogos Olímpicos de 2008, em Pequim. Na Nova Zelândia, aprendeu com o râguebi a utilizar a tecnologia para desenvolver a mente e interessou-se pela cultura maiori, adaptando alguns dos seus ensinamentos ao futebol.

Em 2015, John revelou mesmo ao “The Guardian” e ao “The Times” que aprendeu muito sobre liderança com Kristy Hill, a defesa neozelandesa que lhe ensinou um inspirador ditado maori: "É preciso tocar o coração de alguém antes de se poder agarrá-lo pela mão". Sempre de olhos, ouvidos e coração bem abertos, John incentivou Kristy a trazer, pela primeira vez, elementos da cultura maori para o seio da seleção.

Após o bom trabalho e sucesso alcançado na Nova Zelândia, o convite da federação do Canadá já não foi uma surpresa.

Herdman herdou uma seleção feminina estilhaçada após terminar em último no Campeonato do Mundo de 2011 e, com a mesma visão e espírito empreendedor, levou-a à conquista das duas primeiras medalhas olímpicas da história da seleção - bronze em Londres 2012 e no Rio de Janeiro 2016 -, consolidando um trabalho que deu ouro em Tóquio 2020, já sob o comando de Bev Priestman.

Christine Sinclair, a mítica capitã da seleção do Canadá não tem dúvidas: “John Herdman foi o melhor treinador que tive na carreira”. Garante que dentro de qualquer equipa “ele cria uma cultura de unidade, onde os egos são deixados à porta”.

John Herdman começou a somar títulos enquanto selecionador da Nova Zelândia

John Herdman começou a somar títulos enquanto selecionador da Nova Zelândia

TEH ENG KOON

No entanto, quando em 2018 o homem que passou 13 anos a liderar mulheres foi escolhido pela federação de futebol canadiana para assumir a seleção masculina, houve quem torcesse o nariz. Afinal, John Herdman nunca tinha treinado uma equipa masculina profissional. O facto é que o técnico inglês pegou num Canadá na 94.ª posição do ranking da FIFA e colocou-o quatro anos depois, no 33º lugar.

O exemplo do futebol feminino foi implementado no masculino, provando ser possível introduzir a cultura e a mentalidade competitiva que levou ao sucesso das mulheres nos Jogos Olímpicos.

O primeiro e talvez principal trabalho de John foi levar toda a estrutura, jogadores incluídos, a acreditar que o crescimento do futebol canadiano pode ser potencializado pela miscigenação e troca cultural devido à forte influência da imigração no país. Vejamos. A estrela da seleção, Alphonso Davies, jogador do Bayern de Munique, é filho de liberianos que fugiram da guerra civil do seu país para um campo de refugiados no Gana, onde Davies nasceu, antes dos pais conseguirem entrar no Canadá; Jonathan David nasceu nos EUA e tem origem haitiana; Stephen Eustáquio e Steven Vitória têm origem portuguesa, enquanto Milan Borjan nasceu na antiga Jugoslávia. Estes são apenas alguns exemplos.

"É um génio absoluto quando se trata de treinar e de gerir homens e inspirar pessoas", disse o antigo guarda-redes canadiano Craig Forrest sobre John.

O luso-canadiano Stephen Eustáquio também admitiu que o selecionador teve um peso importante para subir mais no terreno. “Acho que é apenas a confiança que o treinador me deu”, acentuou.

Melissa Tancredi, ex-jogadora canadiana que jogou sob o comando de Herdman no Campeonato do Mundo de 2015, disse ao “The Guardian” sobre o técnico inglês que "tem algo que a maioria dos gestores não tem e que é a sua capacidade de se ligar realmente aos jogadores e obter o melhor deles”, referindo-se ao selecionador como um motivador nato.

Trabalhador incansável e algo obcecado - admitiu já que chega a trabalhar 80 horas por semana -, o segredo de John Herdman está sobretudo na veracidade e capacidade de ligar-se aos jogadores, entrar na mente deles e fazê-los acreditar que podem fazer parte da história do futebol do seu país.

O hóquei no gelo é o desporto nacional do Canadá, mas Herdman disse à BBC Sport que a equipa de futebol masculino é "um gigante adormecido". Quem sabe o Canadá não começa já esta quarta-feira a virar nova página.