É curioso como a voz de alguém, a cadência do verbo que se escapa, nos pode transportar para outros tempos. Paulo Bento fala como quem lamenta. Era assim no Sporting. Foi assim na seleção portuguesa. Ouve as perguntas em coreano inclinando-se ligeiramente para a frente e virando subtilmente uma das orelhas para o interlocutor, como se pudesse compreender melhor a questão. O jogo que vem aí, contra o Uruguai, deixa o selecionador da Coreia do Sul com as preocupações habituais que atormentam qualquer treinador. O português até já esteve num Mundial, em 2014, por Portugal, mas agora terá pela frente as pessoas que falam o seu idioma.
“Imune [a isso] não estarei de certeza. Sou português desde que nasci e serei português até morrer”, começou por dizer sobre o duelo que só vai acontecer na terceira jornada da fase de grupos, quem sabe com os fados já cantados. “Durante o jogo serei português, tentando defender da melhor maneira possível a seleção da Coreia. Ainda falta algum tempo para falarmos sobre esse jogo, creio que é algo que acontece neste tipo de competições”, diz, recordando Fernando Santos na Grécia e Carlos Queiroz no Irão.
“Se gostaria de o ter evitado? Sim, mas não se pode ter tudo. Por isso, vamos preparar o jogo de forma séria, profissional e honesta”, acrescentou, com as suas pausas e reflexões habituais.
A sala, a número 1 do centro de média, é um auditório enorme. E frio, como quase todos os espaços fechados, sobretudo autocarros e até nos estádios, devido a uma climatização pouco sensata a céu aberto nos tempos que correm. É necessário mesmo vestir uma camisola quando lá fora está um calor importante. Há jornalistas de todos os países, muito mais interessados em ouvir o técnico – o assessor sul-coreano chegou a pedir mais questões para Jung Woo-young, que está no seu segundo Mundial e que joga no Al-Sadd desde 2018.

Shaun Botterill - FIFA
Um inglês pergunta a Paulo Bento sobre Son Heung-min e sua máscara, que tal o conforto? Um uruguaio questionou o que pensava o português sobre a transição que colocou um ponto final no mandato prolongado do histórico Óscar Tabárez. “Nunca seria fácil uma transição depois de 15 anos com o mesmo treinador, de quem guardo muito boas recordações, porque foi meu treinador durante uma temporada”, lembrou aquela época no Oviedo, lado a lado com Abel Xavier e Dely Valdés, em 1997/98.
O trabalho de Diego Alonso, o novo selecionador, merece-lhe rasgados elogios, notando ainda a experiência do grupo. Falou numa equipa que sofre poucos golos e que é muito forte coletiva e individualmente. Aquela gente que estava no auditório percebia tudo graças ao QR Code que está colado nas costas das cadeiras, transportando o jornalista para o falatório de um interprete da sua nacionalidade ou idioma.
A questão sobre Federico Valverde, do Real Madrid, parece ter soltado o antigo médio defensivo. Tirou-lhe o chapéu com palavras. Meteu-o ao nível de Kevin de Bruyne para elogiar a grandeza de ambos. Tem tudo, desabafou.
E Cristiano Ronaldo? “Muito sinceramente, preocupa-me defrontar [Luis] Suárez, Darwin [Núñez], Valverde, [Rodrigo] Bentancur, Godín, [Sebastián] Coates, [Ronaldo] Araújo, [Lucas] Torreira, [Matías] Vecino, todos esses… [Giorgian] de Arrascaeta, com quem tive o prazer de trabalhar, [José] Giménez”, ia enumerando, lembrando assim a missão difícil que os sul-coreanos têm pela frente. Afinal, é uma seleção que não passa assim com tanto costume para os oitavos de final. Ou seja, os seus jogadores não devem sentir essa pressão de superar a fase de grupos. A ideia passa por “jogar e competir tão bem quanto possível”, referira antes.
E continuou: “Depois, decididamente, [preocupam-me mais] os jogadores do Gana e, depois, provavelmente, os jogadores portugueses. Aí poderemos falar sobre ele”. Ele era Cristiano Ronaldo, afogado naquele mar de talento uruguaio.