Saltaste tu, saltei eu e agora ficamos as duas com a medalha de ouro no salto com vara dos Mundiais de atletismo

Editor
Uma cena semelhante enterneceu corações há dois anos, em Tóquio, quando Gianmarco Tamberi, o excêntrico e extrovertido dominador do salto em altura entre homens, abraçou com comoção Mutaz Barshim, o catari que concordou em partilhar o maior privilégio do desporto com o italiano quando ambos, e mais ninguém, superaram os 2,37 metros, sem que nenhum lograsse acrescentar um centímetro à marca. Antes do desportivismo já havia amizade - Tamberi contaria que Barshin, anos antes, não arredou pé da sua porta de hotel quando o italiano não conseguiu um salto válido na segunda prova após uma grave lesão no pé - e ambos protagonizaram um momento icónico.
Nos Mundiais que têm a nata do atletismo planetário, neste momento, em Budapeste, foram duas mulheres a ‘deixar’ uma amizade influenciar a decisão de simbolicamente rachar um ouro ao meio.
A decisão do salto com vara armou-se em maratonista. Numa noite de quarta-feira quente e húmida na capital da Hungria, a final durava há quase duas horas e meia quando duas mulheres esbarraram nos 4,90 metros. Quando Nina Kennedy correu, cravou a vara no solo e torneou o corpo para lá da marca esbracejou efusivamente ao plantar os pés no chão, precipitando-se na celebração com algum motivo. Era a segunda vez na final que superara o seu recorde pessoal e australiano, por oito centímetros. A própria disse que “deu para ver pelo festejo” a sua confiança, achou que “estava ‘no papo’” e exultava: ‘Yeah, isto é meu, ela não vai fazer isto.’”
Mas fez, porque Katie Moon é a norte-americana detentora do título olímpico e mundial, a saltadora de excelência que respondeu chamando um figo aos 4,90 metros para afunilar a contenda a uma disputa a dois. A campeã de 32 anos e a esperançosa de 26 tiveram três tentativas nos 4,95 metros, ambas falharam, os seus voos sem sucesso a aproximarem a final de um desempate por morte súbita, que seria assim: tentariam, de novo, superar os 4,95 metros, caso o fizessem as duas a altura aumentaria, se falhassem ela desceria e, a partir daí, a primeira a ceder perderia.
Nina Kennedy olhou para a adversária de soslaio e saiu-lhe, de repente, um “hey girl, queres partilhar isto?” interrogador. “Não pensei que o quereria e achei que teríamos de continuar a saltar”, admitiria. Katie Moon muito menos. “Quando começou a final pensei que dividir uma medalha de ouro não resultaria para mim.” A tensão da proposta adensou o ar, as feições da campeã olímpica suavizaram-no. Feita a pergunta, a australiana contou que “dava para ver na cara” da cara da norte-americana “o alívio” e como o sentimento “era mútuo”. Não havendo uma só saltadora melhor do que as outras, o ouro ficaria com as duas mulheres que ninguém alcançou.
Nina Kennedy e Katie Moon sorriam genuinamente uma para a outra, abraçaram-se alegremente e beijaram-se na bochecha. A menos laureada desfez-se em lágrimas. “Ela é a GOAT [Greatest of All Time] da modalidade, é incrível partilhar a medalha com ela, somos amigas há tanto tempo”, confessou a australiana, radiante ao passear-se na pista do estádio embrulhada na bandeira do seu país. “Agora estou completamente satisfeita, foi uma grande batalha”, concluiu a norte-americana, feliz por não ser a única a levar dos Mundiais uma medalha de ouro no salto com vara feminino.
O desportivismo voltou a duplicar o mais raro e precioso dos metais no desporto - e ninguém morreu devido a isso. As saltadoras protagonizaram a primeira vez que tal sucedeu em Mundiais de atletismo e a sábia Katie Moon, uma de oito mulheres a já ter saltado para lá dos 5 metros, num seleto grupo liderado pela lenda Yelena Isinbayeva, justificou-o de forma sucinta: “Ambas competimos, fizemos basicamente o mesmo e, simplesmente, sentimos que era a coisa certa a fazer. Ganhámos as duas e foi a decisão certa.”
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