Mo Farah lembra-se de poucos pormenores da sua vida na Somália. Mas há uma coisa que ele sabe: ninguém lhe chamava Mo Farah. O nome que se tornou lendário, quase sinónimo de uma gazela em corpo de humano, não era o que Mo Farah tinha quando residia numa das partes mais pobre e instáveis de África.
O nome que os pais lhe deram quando veio ao mundo foi Hussein Abdi Kahin. A família vivia em Somaliland, no norte, zona que declarou independência da Somália em 1991 mas que nunca obteve reconhecimento internacional. Quando Hussein tinha quatro anos, o seu pai foi morto, vítima de um disparo entre a violência que transformava a realidade do quotidiano num pesadelo de olhos abertos.
Aos nove anos, Hussein foi para o Djibouti. Uma mulher disse-lhe que ele iria dali para a Europa, onde se encontraria com outros familiares. Hussein lembra-se de estar “entusiasmado”, particularmente porque iria viajar de avião pela primeira vez.
Só que, naquela viagem, Hussein deixou de ser Hussein. A mulher disse-lhe que o nome tinha de ficar para trás, mostrando-lhe falsos documentos da criança com outro nome: “Mohamed Farah”.
Com outra entidade, Hussein, agora Mohamed, foi levado para uma casa no oeste de Londres. Lá, a mulher pegou num papel que Hussein tinha com os detalhes de contacto da família, que continuava na Somália. Rasgou-o e deitou-o ao lixo.
Se Hussein quisesse comer, dizia-lhe a mulher, tinha de limpar e cuidar da casa. Exercer de criado, basicamente. “Se quiseres voltar a ver a tua família, não digas nada”, é a frase que ficou na memória daquela criança, que se fechava na casa de banho e chorava.
Com o passar dos anos, Mohamed encontrou na corrida um refúgio. A resistência das pernas abriu um novo universo de possibilidades para Mo. Passados 31 anos do dia em que chegou a Londres desprovido de nome e família, Mo é Sir Mo Farah, quatro vezes ouro olímpico e campeão mundial em seis ocasiões, 10 títulos de máxima importância que o tornam no mais laureado fundista masculino na pista.
Nas ruas da grande metrópole à qual chegou vítima do tráfico humano, Mo irá correr, neste 23 de abril, a última maratona da sua carreira. Em Londres, fará os 42.195 quilómetros pela derradeira vez como atleta profissional, em mais uma despedida num ano em que coloca um ponto final num caminho como desportista que se funde com uma biografia que poderia ser considerada pelos melhores guionistas como excessivamente fantasiada, produto da imaginação. Mas que é bem real.
Mo Farah a fazer o 'mobot', seu gesto icónico
Michael Steele
A história da chegada de Farah ao Reino Unido foi contada, em julho de 2022, pelo atleta num documentário da BBC. “A maior parte das pessoas conhece-me como Mo Farah, mas esse não é o meu nome ou essa não é a realidade. A história verdadeira é que eu nasci na Somaliland, no norte da Somália, como Husein Abdi Kahin. Apesar do que disse no passado, os meus pais nunca viveram no Reino Unido”, revela o atleta.
Desde que se tornara conhecido, Mo dissera sempre que fugira, enquanto refugiado, da Somália para o Reino Unido, acompanhado dos pais. No entanto, o pai morreu quando ele era criança e a mãe e os dois irmãos continuaram na quinta da família.
Perante a destruição vivida na Somália — “só ouvíamos boom, boom, boom, era morte por todo o lado”, lembra o irmão de Farah à BBC —, a mãe decidiu mandar o filho, aos oito anos, para o Djibouti, para viver com o tio, tentando ter alguma paz. Mas nunca entendeu como é que foi possível que Hussein acabasse na Europa.
Do tráfico ao “verdadeiro Mo”
Durante muito tempo, Mo Farah bloqueou a recordação de ter sido vítima de tráfico humano, de escravatura, das redes criminosas que se aproveitam da pobreza. Nos primeiros anos, as pessoas que levaram a criança para o Reino Unido não a deixaram ir à escola, mas aos 11 o menino foi para a Feltham Community College, onde os colegas e professores foram informados que ele era um refugiado vindo da Somália.
Sarah Rennie foi a primeira tutora do futuro campeão na escola. No citado documentário, recorda um jovem “neglicenciado”, que falava mal inglês e que parecia “emocional e culturalmente alienado”. As pessoas que diziam ser seus pais nunca foram a quaisquer reuniões.
Até que Alan Watkinson, professor de Educação Física de Farah, notou “uma transformação” que ocorria na criança quando esta pisava a pista de atletismo. O olhar mudava, a expressão era outra. “A única linguagem que ele parecia entender era o desporto”, disse Watkinson, que encorajou o aluno a juntar-se a um clube de atletismo, à BBC.
Sentindo a liberdade que sempre lhe fora negada, o espaço para sonhar e ter horizontes, Farah libertou-se. “A única coisa que me distraía da minha situação de vida era correr. O que realmente me salvou foi a corrida”, confessou já quando era um campeão.
O professor Watkinson tornou-se um confidente. Farah contou-lhe a sua história, incluindo que estava a ser forçado a trabalhar para uma família. O professor contactou os serviços sociais e o jovem foi entregue a uma família da Somália. “Continuei a ter saudades da minha família, mas a partir daquele momento, tudo melhorou. Foi como se muita coisa saísse dos meus ombros. Senti-me eu. Foi quando Mo saiu cá para fora. O verdadeiro Mo”.
Farah, com as duas medalhas de ouro que venceu nos Jogos do Rio
David Rogers
O adolescente Mo ganhou alguma fama como atleta e, aos 14 anos, foi escolhido para representar Inglaterra numa prova na Letónia. Só que havia um problema: não tinha quaisquer documentos para viajar.
O professor Watkinson, mais uma vez, teve um papel decisivo. Ajudou o seu aluno a candidatar-se à cidadania britânica, a qual foi concedida em julho de 2000.
Com as revelações feitas no documentário, ficou claro que, sob o ponto de vista técnico-jurídico, a nacionalidade foi obtida por Farah com base em erros e fraudes, começando pelo seu nome. Segundo a legislação britânica, essas circunstâncias podem determinar a perda da nacionalidade.
Depois da transmissão do documentário por parte da BBC, o governo britânico disse que não tomaria ações legais contra o campeão, já que se tratara de uma criança que não fora cúmplice com as fraudes cometidas.
A cassete com a voz que não foi esquecida
Mo Farah foi conquistando notoriedade. À boleia disso, certo dia, uma mulher aproximou-se dele, num restaurante londrino, com uma cassete, que continha uma gravação. O som reproduzido era de Aisha, a mãe de Mo. A mãe de Hussein.
Na cassete ouvia-se a mãe a dizer-lhe poemas ou cantar canções tradicionais. Mo diz tê-la ouvido “durante semanas”. Estava, também, um número de telefone, junto do qual havia uma nota: “Se isto te incomoda ou causa problemas, não me ligues. Não tens de me ligar”. Mas Mo ligou.
A mãe nunca pensou que voltaria a ouvir o filho. Sentiu-se “transportada” para ele ao escutá-lo, conta à BBC.
Mo Farah (na ponta esquerda da imagem), com a mulher, os filhos, o irmão e a mãe, em 2019
Michael Steele/Getty
Nos Europeus de Gotemburgo, na Suécia, em 2006, Farah ganhou a sua primeira grande medalha internacional, uma prata nos 5.000 metros. Mas a grande era de domínio surgiria entre 2011 e 2017.
Nesse espaço de seis anos, Mo esteve invencível em grandes finais mundiais durante 10 corridas seguidas. O fundo era dele.
Depois da primeira medalha em Mundiais ter sido conquistada em Daegu, nos 1.000 metros, em 2011, tudo o que veio a seguir foi uma coleção de presenças no lugar mais alto do pódio: ouro nos 5.000 metros nos Mundiais de 2011, 2013 (Moscovo) e 2015 (Pequim); ouro nos Mundiais de 10.000 metros em 2013, 2015 e 2017 (Londres); ouro nos 5.000 e nos 10.000 metros nos Jogos Olímpicos de 2012 (Londres) e 2016 (Rio).
Em 2012, os Jogos de Londres, a sua cidade, consagraram-no definitivamente como um dos grandes nomes do desporto mundial. Na primeira final que disputou, nos 10.000 metros, acelerou no começo da última volta, impondo uma passada que parecia vinda de um desenho-animado, com os calcanhares quase a tocarem na parte traseira dos calções. Atacando nas últimas dezenas de metros, deixou para trás Kenenisa Bekele, outra lenda.
Nos 5.000 metros em 2012, na volta final, com norte-americanos e etíopes tentando-o atacar, protagonizou um final espetacular, um sprint com a banda sonora do público londrino a rugir. Terminada a corrida, beijou a pista, o solo que lhe deu uma vida inesperada. Virou-se para o público e fez o seu icónico gesto de levar as mãos à cabeça, o mobot, dominando a cena.
No Rio, venceu a corrida dos 10.000 metros mesmo depois de ter caído. Levou o ouro graças a uma ultrapassagem nos metros finais, tal como fizeram no ano antes, nos 5.000 metros, nos Mundiais de Pequim.
Foi o segundo homem, depois de Lasse Viren, a ganhar, consecutivamente, os títulos dos 5.000 e dos 10.000 metros em dois Jogos Olímpicos consecutivos. Foi o único que revalidou ambos os títulos quer nos JO, quer nos Mundiais. “Ganhar torna-se um vício, queres sentir a sensação uma e outra vez depois de a provares”, disse ao “Guardian”.
Depois de anos de domínio absoluto sobre a concorrência, as últimas temporadas foram diferentes para Mo. Dedicou-se mais a maratonas — entre as principais, venceu a de Chicago em 2018 —, mas sofreu com lesões, deixou de ganhar, só participou em oito provas desde outubro de 2019.
“O meu corpo não me tem deixado treinar. Isso, para mim, é o mais duro. O meu corpo não me permite dar o meu melhor. Mas estou muito orgulhoso do que alcancei e quero tentar correr uma maratona uma última vez. Não tenho nada a provar”, disse Farah, de 40 anos, na conferência de imprensa antes da prova londrina, na qual apelou a que não houvesse protestos de nenhum tipo na competição, depois de ativistas terem interrompido a ação no Grand National, de hipismo, e nos Mundiais de snooker.
Londres será “especial” para o britânico, que admite que “poderá haver algumas lágrimas” depois de cortada a meta. Após a última maratona da carreira profissional, Farah fará “mais algumas provas” e terminará o seu percurso como atleta. Poderá, quem sabe, comer mais doces, ele que se define como um “guloso”, ou correr somente por prazer, já que fazê-lo “limpa a mente”, confessa.
Serão as última vezes que Mo Farah rapará a cabeça antes de ouvir o tiro de partida, um ritual que conserva porque o deixa “fresco”. Mais de três décadas passaram do dia em que uma criança teve de deixar a sua identidade para ser escravizada em Londres. A criança fez-se homem, o rapaz vítima de tráfico tornou-se herói e será aplaudido como um dos mais importantes atletas do seu tempo.