A época 1999/00 começara mal em Newcastle upon Tyne, a cidade com mais gente do nordeste inglês, 300.000 almas que vibram somente com um clube, longe da dualidade de Birmingham, Sheffield, Liverpool ou Manchester. Nas cinco primeiras jornadas da temporada, orientado por Ruud Gullit, o Newcastle só somou um ponto. Uma derrota, em casa, contra o Sunderland, grande rival regional, levou à saída do neerlandês.
Os magpies eram penúltimos da tabela. Para reverter a situação, chegou a St. James' Park um senador de 66 anos, ex-selecionador inglês e técnico de Sporting, FC Porto ou Barcelona. Bobby Robson assinou pelo Newcastle e teve uma dolorosa receção em Old Trafford: 5-1 contra o Manchester United que vinha do treble com Sir Alex Ferguson. Seis rondas de Premier League, um ponto.
Pouco a pouco, Robson foi melhorando a equipa, confiando nos golos de Alan Shearer, na polivalência de Gary Speed, no requinte de Norberto Solano, na juventude de Kieron Dyer. Aquela temporada foi concluída no 11.º lugar, tal como a seguinte.
Em 2001/02 veio o grande salto de qualidade, com a 4.ª posição final. Essa classificação permitiu a entrada na pré-eliminatória da Liga dos Campeões, competição onde o Newcastle só estivera uma vez, em 1997/98, com os entertainers feitos da magia de Asprilla ou dos últimos momentos da carreira de John Barnes.
Assim, em agosto de 2002, o adversário na luta pela fase de grupos foi o Zeljeznicar, da Bósnia. Fora, um triunfo por 1-0, com um golo de Dier e um tal de Hugo Viana a titular, abriu as portas dos milhões. Em casa, Shearer, LuaLua e Dier marcaram, tal como o jovem português, canhoto requintado de 19 anos recém-sagrado campeão nacional no Sporting.
Aquela campanha duraria até março de 2003, chegando à segunda fase de grupos, então antecâmara dos quartos de final. Passados 20 anos, o clube foi revolucionado pelo dinheiro da Arábia Saudita, o qual se aliou a uma equipa bem construída para devolver os mapies a perto do topo da Premier League. A uma jornada do final do campeonato, a equipa de Howe já garantiu o regresso à fase de grupos da Liga dos Campeões, duas décadas depois das aventuras lideradas por Bobby Robson.
Em 2002, Newcastle engalanou-se para receber equipas do outro lado do Canal da Mancha. O sorteio ditou que os adversários seriam o Feyenoord, que vencera a passada edição da Taça UEFA, a Juventus, que chegaria à final daquela Liga dos Campeões, e o Dínamo Kiev.
Na sua autobiografia, Bobby Robson dá uma espécie de receita para preparar uma equipa que pretende olhar nos olhos de colossos: “Um treinador, quando orienta os seus homens para defrontar a Juventus, o Barcelona ou o Bayern Munique, não pode gastar muito tempo a procurar fragilidades no adversário, porque pode bem andar a perseguir fantasmas. O caminho para o êxito no nível mais elevado é construir uma equipa ao ponto em que ganharás seis ou sete duelos de cada 10, o que é a base de um encontro de futebol.”
John Walton - EMPICS/Getty
Mas o fascínio da liga das estrelas começou por ser pesadelo: três derrotas nos três primeiros jogos, cinco golos sofridos e zero marcados. Primeiro foi um 2-0 em Kiev, depois uma derrota, por 1-0, em casa contra o Feyenoord de Pierre van Hooijdonk e orientado por Bert van Marwijk, finalista vencido do Mundial 2010 com os Países Baixos; e outro desaire, por 2-0, contra a Juventus, com um bis de Del Piero a dar os três pontos aos homens de Marcello Lippi, que em 2006 daria a glória mundial aos italianos.
Logo na estreia, em Kiev, o galês Craig Bellamy, muleta fundamental para os golos de Shearer, foi expulso por cabecear Tiberio Ghioane, apanhando três jogos de suspensão. Uma demonstração do caráter pouco controlável de Bellamy, mas não a única da caminhada. Na segunda fase de grupos, contra o Inter, Materazzi provocou o galês, talvez num ensaio para que o sucederia em Berlim com Zidane, três anos depois. Bellamy caiu na armadilha e reagiu. Vermelho e mais três jogos de suspensão.
Bobson conta, na sua autobiografia, que avisara Bellamy para os perigos daquelas picardias em contexto europeu, mas foi tudo “conversa gasta”, confessou o técnico. Anos depois, no inverno de 2007, o galês protagonizaria um episódio peculiar em Vale do Lobo: o Liverpool de Rafa Benítez estava em Portugal a preparar uma eliminatória contra o Barcelona. Durante um jantar de equipa, sem a presença da equipa técnica, Bellamy ficou bastante bêbado e, segundo John Arne Riise, começou a ordenar ao norueguês que fosse cantar no karaoke.
O norueguês não gostou e disse ao companheiro para se calar. Pouco depois, Riise foi para o quarto do hotel, acordando, horas depois, com Bellamy aos pés da cama, armado com um taco de golfe, pronto para o atingir. O incidente viraria piada, com Bellamy a marcar em Camp Nou e festejar fazendo um swing imaginário.
De volta a 2002/03, Alan Shearer recordou, ao “The Athletic”, o que pensou depois das três primeiras jornadas: “Tenho a camisola do Del Piero, mas isso é tudo o que levamos desta Liga dos Campeões”.
Troca de camisolas entre monstros: Shearer e Del Piero
Owen Humphreys - PA Images
Depois do trauma dos primeiros encontros, a Juventus visitou o St. James' Park. Buffon, Thuram, Davids, Nedved, Del Piero. Com 0-0 no marcador, um erro num passe curto do guardião Harper quase deu o golo ao craque checo. Bobby Robson, de inconfundível sobretudo, barafustava, sugerindo que o homem das luvas mandasse um chutão na frente.
No entanto, com o decorrer do duelo, o Newcastle melhorou. Era a primeira demonstração do que estaria para vir, das noites mágicas no nordeste à boleia de um futebol agressivo e de ataque. Buffon defendia um remate atrás de outro mas, no segundo tempo, um erro do italiano levou ao golo de um herói improvável, o lateral Andy Griffin.
No festejo do 1-0 que seria final, Griffin celebrou virado para a bancada este. Mesmo à frente do herói, estava Dan Burn, jovem adepto do Newcastle que, 20 anos depois, joga no clube dos seus amores, levando 43 partidas nesta temporada. “Estava com o meu pai. A bola foi para o Griffin, ele marcou e todos festejámos. O tipo estava à nossa frente, celebrando, completamente louco”, conta Burn ao “The Athletic”, quase num elo de ligação entre aquele Newcastle e o de agora.
A recuperação estava em marcha. Em Kiev, o Dínamo foi derrotado por 2-1, golos de Speed e o primeiro de Alan Shearer na competição.
O inglês das bolas esmagadas contra a baliza é uma das maiores lendas dos golos do football - 400 festejos na carreira, 260 deles na Premier League, recorde da competição. Em 2002/03 fez 25 golos, superando as duas dezenas em 10 vezes na carreira. Na aventura europeia com Robson, marcou seis vezes.
“Eu sabia que, se cruzasse bem a bola, ele marcaria”, contou Laurent Robert, que teve uma passagem fugaz pelo Benfica — mas suficiente para dar um triunfo num clássico frente ao FC Porto —, ao “The Athletic”.
O último encontro da fase de grupos foi em Roterdão, contra o Feyenoord, e era preciso ganhar. Para o duelo decisivo, Bobby Robson apostou em Hugo Viana de início.
O então adolescente não teve vida fácil no nordeste. Vindo com o rótulo de grande promessa, fez 61 jogos em duas temporadas, 28 deles a titular. Naquela noite no De Kuip, teve o seu grande momento nos magpies.
Depois de Bellamy fazer o 1-0, Viana aumentou a vantagem num remate cruzado, fazendo uso da técnica de disparo que sempre foi marca registada. No festejo, tirou a camisola, sinal claro da importância do momento. Marcaria mais duas vezes pelos ingleses, ambas de livre direto.
Alan Shearer marca ao Dinamo Kiev e faz o festejo habitual
ODD ANDERSEN/Getty
Até 2019, quando a Atalanta o fez, mais nenhuma equipa superou o feito do Newcastle, entrando na fase de grupos com três derrotas e seguindo em frente. Na segunda fase de grupos, anterior aos quartos de final, seguia-se mais oposição de elite: Inter, Barcelona e Bayer Leverkusen, vindo de perder a final da edição anterior, derrotado pela obra de arte de Zidane em Glasgow.
O arranque voltou a ser de pesadelo. Na primeira jornada, o Inter foi ao St. James' Park, orientado por Héctor Cúper e com Toldo, Zanetti, Cannavaro, Materazzi, Crespo ou Vieri.
Aos 2', Morfeo deu vantagem no marcador aos italianos. Aos 5', Bellamy juntou-lhe vantagem numérica, sendo expulso. O resultado final seria uma dura derrota por 4-1. A juntar a esse desaire, a visita a Camp Nou, no regresso de Robson ao clube que treinara em 1996/97, não foi melhor. Uma tempestade obrigou a adiar o jogo 24 horas, mas o Barça venceu por 3-1.
Tal como na fase anterior, os ingleses voltaram a ameaçar uma reviravolta. Bateram o Leverkusen por 3-1, em duas ocasiões, a segunda, em casa, com um hat-trick de Shearer, um avançado que parecia furar as redes a cada remate.
Na derradeira jornada, era preciso bater o Barcelona. No entanto, com Van Gaal no banco, os catalães, venceram por 2-0. Era 19 de março de 2003 e foi a última grande noite do Newcaslte na Champions.
Duas décadas passadas, o futebol dos milhões e das estrelas volta ao nordeste. O dinheiro saudita ajudou à felicidade, consolidada por um recrutamento inteligente, sem contratar estrelas em fim de carreira, mas sim um misto de jovens promissores e gente experiente na Premier League. Depois de Robson, Shearer e do jovem Viana, é tempo para novos craques preencherem as noites do St. James' Park.