O primeiro toque ainda vê a baliza a uns 80 metros, lá bem longe, seguramente não lhe passa pela cabeça um golo, não tão cedo. Fossem Oliver e Benji os comparsas da trama e o campo já não seria plano, mas curvar-se-ia perante ele, o Tsubasa, galgador de todos esses intermináveis metros do relvado em passada larga enquanto a se contava a estória do episódio. É essa narrativa que a jogada em causa aparenta: frente ao Nápoles, ludibriou um jogador antes da linha do meio-campo, feito o engano acelerou e foi, e correu, e sprintou e livrou-se de dois adversários com a bola obediente apesar da rapidez, chegando à área como se nem uma gota de esforço tivesse despendido.
Quando surgiu o momento da derradeira decisão da jogada, nas beiças da baliza, Rafael Leão parou no tempo. Tinha a bola à mercê do pé esquerdo, o guarda-redes desamparado à frente, era a chita que não caçou a presa mas que fugiu a todos os predadores na pradaria, se calhar o seu apelido guarda o felídeo inapropriado - os leões caçam em grupo, potentes e pela força bruta. Não se repetem, nem executam uma variação da mesma caçada, como se viu na jogada em causa que nem é a que acabou em golo, esta terça-feira, mas uma que deu em remate de mira torta contra o Nápoles, em San Siro.
Pareceram a mesma caçada. No estádio Diego Armando Maradona, convenientemente (sortudos os napolitanos por batizarem um recinto com o nome de quem em tempos viram a magicar artimanhas para fugir a pernas alheias), Rafael Leão reviu a baliza a 80 metros ou mais, deu corda às chuteiras, acelerou e travou e voltou a arrancar a cada jogador que o encarou. Era uma malandra mão estendida para dançar, traiçoeira com um convite que entortou quem o tinha de aceitar. O português ultrapassou três adversários à vez a uma velocidade só dele, nunca lhe passando pela cabeça o que, garantiu, ponderou apenas quando já estava na área, à beira da tal última decisão.
A incredulidade que afeta pessoas comuns, até futebolistas que lhes são contemporâneos, vem muitas vezes do prosaico encolher de ombros dos jogadores que doam jogadas para a história. “Quando ultrapassei o último defesa, olhei para o guarda-redes e vi que não conseguia marcar dali, olhei para a área, vi o ‘Oli’ e simplesmente passei”, descreveu o português, após o encontro, pintando um retrato que sugere um fácil aborrecimento se apenas lido e ouvido. À distância e sentado num estúdio de televisão, Thierry Henry perguntara-lhe pelo momento exato em que Rafael Leão decidiu que iria para a baliza. E ele, com os ombros descaídos e descontração na cara, a fazer um resumo simplório da jogada a um tipo que no seu tempo se fartou de ultrapassar gente com a técnica da velocidade, ou a velocidade na técnica.
Ter sido o francês a colocar-se a questão foi uma coincidência feliz. Primeiro, pela morfologia e genética, ambos têm 1,88m e corpos feitos, no auge, para a explosão no pára-arranca ou a velocidade de ponta com a bola controlada nos pés. Depois pela estética, porque, embora as carreiras (ainda) não se equiparem em feitos e conquistas, Rafael é um eco de Thierry - tem a postura relaxada, como se nada fosse, ao enfrentar um adversário, a mesma passada larga, a confiança emanada em cada bola que toca para a frente e persegue sem grandes artifícios de fintas. São capazes de muitas, nenhum precisa de tantas. “Encontramo-nos na área”, parece o português dizer, em campo, a quem joga com ele quando parte em mais uma corrida, sugeriu Henry, rindo-se ao sugerir a piada.
Rafael riu-se. E aí divergem.



Hoje muito se enaltece que ele joga a sorrir - no Mundial, auge dos holofotes, debateu-se mais a sua expressão facial do que do golo que marcou ao Gana -, mas os dentes que tem e terá à mostra se estiver com a bola são falados pela relevância do que Leão joga, e como joga, não o contrário.
É-lhe inato, sai por natureza. Rebobinar qualquer biblioteca de fotografias prova que já o fazia na formação do Sporting e, em tempos, o próprio treinador do AC Milan confessou preocupar-se com isso. “Mais tarde, percebi que era algo que aparece quando joga, e é bonito seres tu próprio. Divertir é fundamental, é o que procuramos”, descreveu Stefano Pioli, obreiro do AC Milan que está nas meias-finais da Liga dos Campeões, contados 16 anos desde a última vez. O futebol “é paixão, entusiasmo” e a diversão “é fundamental”, disse o treinador ao “The Guardian” a reboque do português, cuja superioridade também se denota no estado que Rafael Leão alcançou, aos 23 anos.
É, de momento, um dos jogadores mais desequilibradores com bola a partir de uma ala que se podem ver na Europa onde pulsa o coração do futebol e calhou que partilhasse eliminatória da Champions com um dos outros, Khvicha Kvaratskhelia. Mesmo que não irrelevante, a influência do georgiano manteve-se marginal nas duas partidas face ao que ao peso das expetativas, culpa da desinspiração do próprio e da estratégia do AC Milan, que reservou coberturas defensivas para o que se visse em situações constantes de um-contra-dois. Para lá das diferenças de estilo - o homem do Nápoles tem um drible mais de engano, de atrair adversários a si -, Rafael Leão, foi imparável e incontrolável. Injogável (unplayable), se traduzido do jargão futebolístico inglês.
Ter fotocopiado arrancadas com a bola contra o Nápoles é um apontamento. Rafael Leão reencena correrias semelhantes faz tempo e vai cavalgando nas condições raras que a mistura de genética e talento lhe deram. A alimentar o jogador há um rapaz que pertence a uma agremiação musical, produz música em casa, nutre um gosto por moda e provoca a inclusão da expressão “na descontra” em títulos de entrevista, ele é todo um corpo artístico em movimento e no futebol explana-o a parar e a arranca, ou a acelerar até mais não.
Rafael Leão ri-se, certamente, porque se diverte. E talvez por saber, sem o dizer, que bem podem tentar frená-lo.