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Liga dos Campeões

Neymar: até quando você vai levando porrada, porrada?

Pela terceira vez em quatro anos, uma lesão vai impedir Neymar de jogar os oitavos-de-final da Liga dos Campeões com o Paris Saint-Germain. A última foi provocada por uma entrada dura contra o brasileiro, que já sofreu 945 faltas desde 2013, ano em que chegou ao Barcelona e passou a haver um padrão: em oito épocas, ninguém sofreu mais faltas nas provas da UEFA do que Neymar

Diogo Pombo

Anthony Dibon/Getty

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Há milhentas urgências de pensamento na cabeça de um jogador quando um adversário tem a bola e o encara de frente, vai para cima e provoca um confronto: em que zona do campo se está e a que distância da baliza e da grande área; o espaço que há em redor e para onde deve tentar guiá-lo; se tem coberturas perto dadas por companheiros, ou se tem outros adversários próximos; como deve orientar o corpo e os pés. E algures nesta ordem pensa-se em quem é o tipo que está a desafiá-lo.

Pode ocorrer a desfortuna de ser Neymar.

Em segundos, qualquer pirâmide de prioridades fica baralhada. O dono da bola é Neymar e o brasileiro é quase um paradoxo indomável, toda a gente sabe o que ele é capaz de inventar com ela, mas, no cerne, nem ele, nem ninguém saberá bem que coisas lhe podem sair dos pés neste momento, em que a tarefa é lidar com o provável jogador com a maior variedade de fintas possíveis dentro de um drible e um ambidestrismo que tanto lhe faz para que lado do adversário vai sair com a bola.

Há dias, vendo Neymar a receber um passe de costas ainda longe da baliza, Steeve Yagon, defesa do Caen, terá pensado em encostar logo o corpo para nem deixá-lo virar na receção. A dureza derrubou o brasileiro. Ficou caído no relvado e encolhido em si mesmo, a dor a desconfigurar a cara de quem acabava de sofrer a 945.ª falta desde que chegou à Europa, em 2013, segundo a GoalPoint.

A média dá 3,26 faltas por jogo, entre 289 que Neymar tem repartidos entre o Barcelona, antigo clube com o qual se enamorou, desamorou e depois teve saudades e que não vai poder reencontrar em campo com o Paris Saint-Germain, a atual equipa, porque ficou lesionado nos meandros do adutor da coxa esquerda devido à entrada de Yagon. Esse músculo tem a sua contagem particular: vai em sete lesões nas últimas oito épocas.

Esta foi causada diretamente por uma falta, uma das 4,5 que, em média, Neymar tem sofrido por jogo, em 2020/21. Na hierarquia do site WhoScored, o brasileiro é o terceiro jogador mais vezes parado em falta na Europa, esta temporada. Desde 2013, quando chegou ao Barcelona, esta é a 25.ª mazela contraída pelo brasileiro.

De todas não se pode concluir que a causa foi a entrada dura de um adversário. Há lesões que saem da toca sem ajudas externas. Tão pouco sabemos que tipo de treino Neymar fará para prevenção de lesão, ou que cuidado tem (alimentação, sono, trabalho físico, etc.) para fortalecer o corpo.

O factual é que, esta época, é o jogador que mais dribles faz, em média, por jogo (5,2) e o terceiro com mais faltas sofridas entre as principais ligas europeias sofre. Em outubro, o CIES (Observatório do Futebol) revelava que o brasileiro era quem mais faltas sofria nesses campeonatos. Neymar e falta são rima desemparelhada, o brasileiro é muitas vezes parado assim e a última obrigou-o, de novo, a parar.

Esta paragem deverá durar quatro semanas e condena-o, pela terceira de quatro temporadas, a falhar os oitavos-de-final da competição que é a cenoura à frente dos olhos do PSG, assim que os milhões cataris tomaram conta do clube parisiense. O ano em que Neymar estava lá para as curvas, em 2020, coincidiu com o único em que a equipa ultrapassou essa fase da prova - e chegou à final, perdendo-a em Lisboa para o Bayern de Munique.

O brasileiro esteve on, ajudou a equipa a quase tocar no troféu, agora estará off e por isso desabafou, escreveu no Instagram que “a tristeza é grande, a dor é imensa e o choro constante” e admitiu que “às vezes” sente-se “incomodado” pelo próprio estilo de jogo. Por “driblar e acabar apanhando constantemente”, não sabe onde está o problema: “se sou eu ou o que faço em campo”.

"A tristeza é grande, a dor é imensa e o choro é constante. Mais uma vez pararei por um tempo de fazer o que eu mais amo na vida que é jogar futebol. Às vezes eu me sinto incomodado pelo meu estilo de jogo, por eu driblar e acabar apanhando constantemente, não sei se o problema sou eu ou que faço em campo... isso realmente me entristece. Me deixa triste demais ter escutar de jogador, treinador, comentarista ou o car*** a 4: 'ele tem que apanhar mesmo', 'cai-cai', 'chorão', 'moleque', 'mimado'... Sinceramente, isso me entristece e não sei até quando aguentarei, eu só quero ser feliz jogando futebol. Nada mais"

Mesmo nunca sabendo o que ele irá desencantar com a bola, de Neymar podemos esperar um louvável descaramento, o tipo de ousadia a rebentar de técnica por todos os lados quando tem o jogo nos pés, dá soltura ao talento guardado no corpo e fá-lo da forma como sempre o escolheu utilizar para jogar futebol.

Não é sempre, mas é usual ver Neymar a ter a bola durante muito tempo, dando-lhe muitos toques. E razão tem quando falou do seu modo de jogar: ele recebe-a e vai para cima de adversários com um estilo de driblar que não assenta só numa coisa, seja a velocidade ou uma finta específica.

O brasileiro tem mil e um truques, que junta à apetência em retardar cada drible até à última, com o adversário já colado a ele, definindo as fintas com apetrechos a que é costume colar a etiqueta dos brinca-na-areia, mas Neymar é Neymar por lhes dar uma eficácia prática de cimento. Nele, o espalhafato e o malabarismo são práticos porque hoje resultam em algo proveitoso para a equipa.

Baptiste Fernandez/Getty

O brasileiro simula, passa uma e outra perna por cima da bola, acelera e desacelera com ela, por vezes faz das pernas colher para a levantar por cima de adversários, outras vezes veste-as a cueca que é a mais indesejada no futebol, há até vezes em que ultrapassa um jogador e pára, à espera dele para o voltar a fintar.

Neymar faz coisas bonitas de ver, que entretêm, insurgem-se contra o pavor do risco e são um berro-maior contra a robotização do ‘primeiro vamos anular as fortalezas dos outros e depois logo pensamos nas nossas’. O estilo que tem ao fazê-las é o de, por natureza, atrair os adversários até os ter onde quer, bem perto, demasiado perto para o irem buscar mais longe depois de o brasileiro os enganar à queima-roupa.

Só que este modo de ter e fazer dribles, fintas e truques tem um efeito nos outros.

Pode irritá-los, frustrá-los ou desesperá-los em campo, tamanho é o desnível quando o jogo está nos momentos em que o talento faz Neymar ser superior a quem lhe aparecer no caminho. Sem meios para o frenar, ou pelo menos condicionar, muitos farão falta, que pode vir de um lugar propositado, mas também da vontade em tentar limitar o brasileiro de forma agressiva, que vive sempre na corda bamba entre o aceitável e o demasiado.

Neymar pode ser excecional, mas não é exceção para uma das verdades quase universais do futebol - quanto mais tempo se estiver com a bola, maior é a probabilidade de algum adversário chegar perto, haver contacto físico e acontecer uma falta. Da mesma forma que Jack Grealish, na Premier League, Andrea Belotti, na Serie A, ou Nabil Fekir, na La Liga, são quem mais faltas sofre devido ao relacionamento sério que têm com a bola, o estilo do brasileiro prende-lhe um alvo no corpo na Ligue 1.

“É o seu estilo, o Neymar é um grande jogador, mas se quer jogar assim, não pode protestar se sofrer alguns toques. Não estamos aqui para o fazer ficar bem na fotografia. Se o Neymar quer divertir-se, estamos aqui para responder com as armas que temos”, disse, há dois anos, Anthony Gonçalves, então jogador do Estrasburgo.

Dave Winter/Getty

Depois, sobre Neymar é comum ouvir-se que ele provoca adversários, lhes falta ao respeito com tanta finta, simula dores que não sente e se atira para o chão. Coisas próprias do estilo do brasileiro, que como tudo podem cair no goto, ou não, de quem vê pela televisão ou o defronta em campo.

Outras poderão ser em auto-defesa, como o pai do jogador um dia tentou explicar - “é uma tática que usa desde a formação, se vir que vai receber pancada, salta” - e até Jürgen Klopp reconheceu - “é completamente normal essa reação, ele tem de se proteger, porque os jogadores realmente fazem a falta”.

Mesmo quando a teoria sugere que os adversários são melhores, portanto, que a oposição para o condicionar é outra, o número de faltas não esmorece: Neymar sofreu 246 faltas nos 66 jogos que tem nas provas da UEFA, que no seu caso foram todos na Liga dos Campeões (dados da GoalPoint).

O segundo na lista durante este período (2013-2021), com menos 100 faltas sofridas, é Lionel Messi e de novo a explicação estilística importa, pois na faca em manteiga de verão que é o argentino a ultrapassar adversários vemo-lo a ter menos gestos por finta, no corpo, do que o brasileiro.

Messi evade corpos, encostos e pernas alheias com decisões relâmpago, muitas vezes nem hipótese dá a que o alcancem. Neymar atrai todos esses obstáculos para o seu metro quadrado, faz os outros caírem no engodo para os fintar.

Buda Mendes/Getty

Os oitavos-de-final desta Liga dos Campeões marcariam o reencontro entre ambos (esta terça-feira há Barcelona-PSG, às 20h, na Eleven Sports). O brasileiro lesionou-se, uma lesão é sempre uma malapata que se prega, maleita que nunca se merece sejam quais forem as opiniões que se tenha sobre o estilo de jogo, a vivência além relvado do jogador ou as festas a que alegadamente quer ir.

Sobre a vida que uma pessoa escolhe viver, seja Neymar ou qualquer outro futebolista que vive muito da finta, de ter a bola e de prolongar a vida dela nos seus pés.

Mas Neymar vai lendo que “'tem que apanhar mesmo', 'cai-cai', 'chorão', 'moleque', 'mimado'”. Lê e ouve devaneios de sofá ou dos seus pares, sem saber “até quando” os vai aguentar. E o pensamento do brasileiro será siamês ao que vai na cabeça de todos os que jogam driblando, dos loucos que arriscam sozinhos: “Só quero ser feliz jogando futebol”.