Branquinho, loirinho e redondinho: como Matthijs de Ligt cresceu até se tornar um dos melhores centrais do mundo
Matthijs de Ligt, capitão do Ajax
EPA
Matthijs de Ligt nasceu pesado, lento, grande, mas o tempo, a persistência e um talento escondido levaram-no ao lugar onde está agora, aos 19 anos: capitão do Ajax, equipa que defronta o Tottenham na terça-feira (20h, Eleven Sports) nas meias-finais da Liga dos Campeões
Os pais olham-no de cima a baixo e hum, desconfiam. O filho é branquinho, loirinho e redondinho, e este é o único diminutivo que não calha bem, porque faz as camisolas e os calções apertarem o corpo da criança. Ele tem jeito, mas também tem a gordura que condiz com o apetite, o que gera dúvidas e cria momentos em que a família desconhece o tipo de bola que acabará por preferir.
Dado o contexto, os pais estranharam.
Porque os De Ligt rimavam com courts e raquetes, mesmo que o pai também tenha jogado hóquei de campo, corcunda, costas arqueadas e mãos agarradas a um stick.
O filho Matthijs “já era o melhor do clube de ténis” com cinco anos, arisco por fugir com o rabo à seringa mais desejada quando, na Holanda, se é miúdo e toca para o recreio na escola: “A professora da primária dizia-me que todos os miúdos iam jogar futebol no pátio e ele não participava”.
Matthijs não queria saber. “Era especial”, disse depois o pai, que terá estranhado outra vez, hum, quando o filho do bom talento para o ténis foi ver o treino de futebol de um amigo, por acaso – e regressou cativado pelo maravilhoso mundo novo.
Tinha seis anos e nunca se interessara em futebol. Até aquele dia.
Experimentou-o em Abcoude, vila a 10 quilómetros de Amesterdão, onde vivia. No início, não era o típico miúdo incrível que espanta os adultos com habilidade inata e faz toda a gente babar com o que pode estar para vir. Matthijs de Ligt não era o matulão com pernas de jogador de râguebi, anormalmente veloz e ágil para tanto tamanho - tal como é agora, defesa central abastado, que desarma, interceta, anula e corta ataques adversários, levando o Ajax até às meias-finais da Liga dos Campeões.
Tem 19 anos. Apenas, 19.
ALBERTO LINGRIA
O gordinho
Não, quando começou no Abcoude FC, o holandês “não te fazia pensar imediatamente” que era “um super talento”. Era, sim, um jogador esperto e de “técnica limpa”, que captava atenções por ser “um verdadeiro defesa”, resumiu Dave van Nielen, o seu primeiro treinador, ao “Ajax Showtime”.
Matthijs contou três anos no pequeno clube até ser descoberto pelo gigante da Holanda, famoso pelos ideais positivos, formador de jogadores técnicos, atrevidos e esfomeados por dominarem um jogo de futebol. Mas Casimir Westerveld, diretor da formação do Ajax, também duvidou, porque, hum, o rapaz “ainda tinha alguma gordura de bebé” e era “um pouco mais pesado do que os outros miúdos”.
Ele tão pouco tinha um feitio arrojado, a baloiçar na corda bamba entre a o atrevimento e a arrogância que o Ajax preza. O objetivo é que arrisquem, tentem coisas, queiram sempre dar nas vistas. Como escreveu Jordi Crujff, filho do eterno crânio no qual se baseia a forma como o Ajax educa: “Se és tímido, aqui terás a vida complicada”.
E de Ligt era e ainda é um rapaz envergonhado, humilde, viciado no método e na rotina pacata para conseguir funcionar. Uma vez, rejeitou ser capitão de equipa no Abcoude, por ter vergonha, por não gostar de falar. “Ele era o miúdo que, na escola, não seguia a multidão e defendia quem estava a ser alvo de bullying. Os professores diziam que cresceu antes dos outros”, contou Frank de Ligt, o pai. Findos quatro ou cinco treinos, o Ajax quis ficar com ele.
Tinha 10 anos.
Aos 15 já estava a jogar nos sub-19 e com 16 treinava entre os sub-21. Habituou-se a competir com os mais velhos, um ou dois escalões acima. O tamanho e o corpo de de Ligt, super-desenvolvidos para a idade, poderiam justificá-lo, mas se os sacos de dinheiro não marcam golos, como dizia Johan Crujff, muito menos os músculos são suficientes para, sozinhos, os evitarem.
É verdade que Matthijs de Ligt, primeiro que tudo, é um defesa central grande e forte. Superou os 1,85m do pai e os 1,80m da mãe para ficar com os 1,89m que alcançou há uns anos. Na prática, “ele é capaz de defender e de jogar futebol, uma combinação que qualquer treinador procura” e Kees van Wonderen reconheceu, em 2016, para o tornar capitão da seleção sub-17 da Holanda, que chegou às meias-finais do Europeu de 2016.
O selecionador destacou-lhe o “andar de cima” quando, ao jornal “AD”, contou como, no dia seguinte à eliminação da prova, de Ligt acordou e foi agradecer a toda a gente do staff - “cumprimentou o cozinheiro e as senhoras da limpeza” -, enquanto os restantes jogadores olhavam para ele. “Claro que isso nada diz sobre a sua capacidade como futebolista”, ressalvou, mas “diz muito” sobre o lado pessoal que, no ano seguinte, teve de aguentar a faceta de jogador.
Tinha de Ligt apenas sete jogos a titular com o Ajax quando Danny Blind o convocou para a seleção principal. Era a Holanda da fase pré-moribunda, a tentar não perder a segunda fase final consecutiva de uma competição, que foi à Bulgária jogar 90 minutos decisivos na qualificação. O central foi titular e, em parte, culpado nas jogadas que deram dois golos aos búlgaros em 45 minutos. O selecionador tirou-o ao intervalo, os holandeses perderam e compôs-se o cenário ideal para asfixiar mentalmente um rapaz que estava apenas a começar no futebol.
Blind explicaria que arriscou no imberbe de Ligt porque van Dijk, de Vrij e Bouma, centrais mais velhos e com maior andamento, estavam lesionados: “Correu mal, mas essa decisão não veio do nada”. O futebol que mói jogadores com a sua máquina de fazer juízos prematuros e ignorar tudo para se focar apenas no resultado entrou em funcionamento contra um adolescente.
Hum, talvez ele não seja assim tão bom.
Aos 17 anos, a cabeça de Matthijs de Ligt, a mais jovem a estrear-se pela seleção desde a década de 40, era testada, à bruta. “Fui alvo de discussão pública e isso foi estranho. Felizmente, consigo extrair essas coisas da minha mente. Não me foco em coisas negativas, nem críticas. Concentro-me em dar máximo quando estou no campo, mais do que isso não consigo fazer”, diria, uns meses depois, ao “Heet Parole”.
O teste virou em prova dada, porque, em maio de 2017, o central tornou-se no holandês mais novo de sempre a jogar uma final europeia pelo Ajax. Aos 17 anos e 285 dias perdeu com o Manchester United de José Mourinho, quando já era o segundo mais novato da história a estrear-se pelo clube com um golo. Na época seguinte, tornar-se-ia capitão.
Pelo meio, criou raízes impossíveis de cortar na equipa do Ajax e na seleção holandesa. Está com 19 anos e joga como se muitas mais décadas já o tivessem ensinado a encarar adversários com os apoios dos pés certos; a não abordar intempestivamente um avançado com bola, pensando primeiro onde estão os espaços e os outros jogadores; e a dar critério à bola quando a tem e fazendo-a sair limpa dos pés, tal e qual a equipa onde joga educa os jogadores a fazerem.
É a cara despida de barba, ainda pacata e modesta, que só este ano comprou casa em Amesterdão, logo na rua do Rijksmuseum, para “ver Netflix ou jogar FIFA”, como o pai sempre o via fazer nos tempos livres, em Abcoude, de onde também veio Dennis Bergkamp, o génio amedrontado com viagens de avião, outro feitio recatado do futebol holandês, que de Ligt nem se recorda de ver jogar.
Todo o tempo é para futebol
Matthijs até teve de ser convencido, quase forçado pela família, a tirar a carta de condução. Não tinha tempo para isso, queixava-se. Mais preocupado estava em melhorar a agilidade e velocidade, porque ciente sempre está do que tem de melhorar e como o deve fazer.
O pai encontrou sempre “halteres e pesos” do filho “à porta de casa”. A família, renegada a empresários e agentes, só contratou (a conselho do Ajax) a ajuda de Benny Hulshoff, antigo central do clube nos anos 70 e 80, quando conquistaram três Taças dos Clubes Campeões Europeus consecutivas. De Ligt trabalhou horas com ele e com Troy Douglas: ex-sprinter que participou em três Jogos Olímpicos, pelas Ilhas Bermudas, que o Ajax tem no departamento técnico para ajudar os jogadores no treino de explosão.
Ei-lo, assim, explosivo e estrondoso, há semanas, em Turim, a erguer-se na área da Juventus para cabecear um dos golos que deixou o Ajax nas meias-finais desta Liga dos Campeões, nas barbas desalentadas de Cristiano Ronaldo. Passa a bola a curta ou a longa distância, pela relva ou no ar, recompensa dos tempos em que Wim Jonk, ex-internacional holandês e antigo diretor da formação do Ajax, insistiu que fosse jogando no meio campo até aos 15/16 anos. Sem a bola, De Ligt focou-se em despistar aspetos a melhorar.
Quando chegou à equipa principal, “faltava-lhe velocidade nos primeiros metros de abordagem” aos adversários, tinha que trabalhar “no passe longo com o pé esquerdo” e concentrar-se nas jogadas que pretendia cortar em carrinho, do lado esquerdo da defesa, para “deslizar com a perna esquerda à frente e não com a direita”, reduzindo as hipóteses de derrubar o adversário com um joelho levantado.
Detalhes técnicos que Benny Hulshoff discutia com ele, enquanto Marc Overmars e Edwin Van der Sar, diretores do clube e figuras do último grande Ajax, que conquistou a Europa em 1995, foram segurando outros miúdos a transbordar de jeito (De Jong, Van de Beek, Ziyech) e convencendo talentos mais experientes (Tadic, Huntelaar e Daley Blind) a partilharem o campo com eles.
E agora, quem ainda desconfia de Matthijs de Ligt com este Ajax e nesta Liga dos Campeões, hum?