Perfil

Jogos Olímpicos

Os demónios e a virtude da mistura na cor da pele, segundo Ana Peleteiro

Bateu o recorde de Espanha duas vezes em Tóquio e ganhou a medalha de bronze, ficando só atrás de Mamona e Rojas. Natural da Galiza, Peleteiro é adotada, pelo que depois da conquista tocou na questão racial, já que há não muito tempo a mandaram para a terra dela: "É a evidência de uma mudança. De que a mistura é super boa, de que a mistura enriquece um país, de que a mistura é o melhor que há. Quem não o quer ver é porque é tonto, porque não há nada mais bonito do que misturar duas coisas boas, joder"

Hugo Tavares da Silva

DeFodi Images

Partilhar

Arruma os pés milimetricamente, como se tivesse uma posição inicial obrigatória. A seguir dá um berro, bate uma ou duas palmas, dá uma pancada com as duas mãos perto das ancas, depois no peito e, apontando-lhe o dedo, fala para o perímetro onde descansa a areia. A seguir, nuns acordes perfeitos, Ana Peleteiro toca um trompete invisível só com uma mão.

Está pronta.

À corrida cheia de convicção segue-se a validação do salto, a bendita bandeira branca, mensageira de boas notícias. Depois, a história: Peleteiro, uma atleta de triplo salto galega, acabava de bater pela segunda vez o recorde nacional de Espanha, com um salto de 14,87m. Antes já saltara 14,77, derretendo o agora caducado recorde de Glasgow 2019, onde saltou 14.73.

À frente da espanhola só ficaram a portuguesa Patrícia Mamona (15,01m) e a venezuela Yulimar Rojas (15,67m), com quem treina e tem uma relação tão boa que, quando ela saltou e fez aquela assombrosa marca, saltou e celebrou com ela, feliz, feliz, como só os bons podem estar pelos outros.

DeFodi Images

Ou seja, medalha de bronze. “Estou a sonhar com isto a vida toda, também sonhei ser cantora e isso não o serei”, admitiu depois da prova. Mas também falou em demónios, demónios na cabeça, demónios espalhados pelo corpo, seres que vivem nas penumbras da alma, que mordem e beliscam sem piedade as certezas e as convicções.

“Todos temos os nossos demónios na cabeça, os nossos medos e devemos aprender a travá-los, a dizer-lhes que não”, explicou depois numa entrevista ao “El Mundo”.

“De repente, vês que tens uma insegurança que nasce de um trauma de quando eras pequena e dizes: ‘mas como é que aquilo pode afetar-me agora?’. Mas afeta. Tenho a sorte de trabalhar com uma profissional, a minha coach Rebeca [López], que é muito empática, que me entende, com quem consegui abrir-me e que me ajudou muito. Desde o Mundial de Doha de 2019 ajudou-me muitíssimo.”

Na mesma entrevista, numa referência à medalha de prata do ginasta Ray Zapata, Peleteiro comentou a questão da pele. A espanhola, nascida na Corunha e adepta do Celta de Vigo, é adotada. Sabe que a mãe é galega, mas não sabe quem é o pai. A cor da pele dá algumas pistas, por isso gostaria de ir a África, não para procurar a família, mas para entender os labirintos das suas origens.

ANDREJ ISAKOVIC

“Terá aborrecido muita gente que os dois medalhistas de Espanha de ontem [segunda-feira] fôssemos negros”, disse na mesma entrevista ao diário espanhol.

“Mas é a evidência de uma mudança. De que a mistura é super boa, de que a mistura enriquece um país, de que a mistura é o melhor que há. Quem não o quer ver é porque é tonto, porque não há nada mais bonito do que misturar duas coisas boas, joder.”

O desabafo não foi por acaso. Em agosto de 2020, numa entrevista ao "El País", a atleta de triplo salto contou o que ouviu uma vez num posto de gasolina: "Um senhor gritou-me: 'Preta de merda, vai para o teu país'". E, à distância como se dissesse algo àquele senhor, retorquiu depois: "Eu estou no meu país! Dá-me muita raiva. A minha mãe biológica é galega. O meu pai biológico é africano, não sei de onde. Nunca se pôs em contacto comigo, o que agradeço porque não necessito de nada mais. Para além disso, se trabalhas em Espanha e te sentes espanhol, que importa o sangue?".

Por pouco não se perdeu uma grande atleta em Ana Peleteiro, uma enamorada do que representa Rafael Nadal, pois começou por praticar ballet. A ginástica artística interessava-lhe, mas não havia clubes com essa arte toda em Ribeira, a cidade onde nasceu e viveu.

Por isso, agarrou-se ao atletismo e agora, aos 25 anos, está a escrever a sua lenda em Tóquio, uma cidade que serviu de inspiração para dar nome ao seu cão.