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Lamont Marcell Jacobs: vencer os 100 metros com coração italiano em corpo americano. E uma mente sã, finalmente

Lamont Marcell Jacobs chegou a Tóquio com pézinhos de lã, mas sai de lá como os pés mais rápidos do mundo na prova rainha da velocidade, os 100 metros. Um outsider, que de cordão de ouro ao pescoço e tatuagens surpreendeu até os adversários mais diretos

Alexandra Simões de Abreu

DIEGO AZUBEL/LUSA

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Talento e trabalho são factos indissociáveis na conquista de uma medalha olímpica. Mas é nos pormenores que o sabor das vitórias e o amargo das derrotas acabam por fazer sentido. Uma indisposição passageira, um ritual, um passo fora do lugar, uma palavra, servem para tudo perder ou arrebatar. Lamont Marcell Jacobs Jr. tornou-se no primeiro italiano de sempre a conquistar o ouro dos 100m na história dos Jogos Olímpicos e, além do esforço e anos de preparação, foi decisivo um gigante pormenor para o sonho de menino tornar-se realidade: reencontrar e fazer as pazes com o pai e consigo.

Vamos à história com toques novelescos que vale a pena ser conhecida.

Viviana Masini conheceu o Sr. Marcell Jacobs em Vicenza, Itália, quando ele era um soldado do exército dos EUA. Tinha então 16 anos e o norte-americano 18. Casaram-se e mudaram-se para o Texas, nos EUA. Três anos depois nasceu Lamont Marcell Jacobs Jr. Nem 20 dias de relação com o filho tinha quando o soldado foi transferido para a Coreia do Sul. Na impossibilidade de acompanhar o marido, Viviana decidiu voltar para Itália e iniciar a aventura de ser mãe solteira na zona da Lombardia.

Os contornos que levaram Lamond a crescer com a ausência do pai e a forte presença da mãe não são conhecidos, mas sabe-se que Viviana incentivou o filho desde muito cedo à prática de desporto.

O miúdo mal sabia andar e já montava o skate. As bicicletas e as motos “deixavam-no louco”, revelou Viviana numa entrevista ao "Corriere della Sera", mas como ela vinha de uma família ligada ao motocross, tentou desencorajá-lo, preferindo direcionar-lhe a atenção para outras modalidades como a natação ou mesmo o basquetebol, que o pai de Marcell Jr. chegou a praticar. “Queria que descobrisse a sua paixão, tinha de cansá-lo, porque ele não ficava quieto nem enquanto dormia!”, revelou sobre o filho.

O atletismo surge com Gianni Lombardi, o seu treinador do desporto escolar que o aconselhou a modalidade, uma vez que era rápido. Lamond tinha nove anos.

Foram precisos mais alguns até o jovem que se diz italiano da ponta do pé à ponta dos cabelos, dar nas vistas. Aconteceu em 2016, quando venceu o Campeonato Italiano de Atletismo, no salto em comprimento, com 7,89m. Em 2018 conquistou o primeiro título nos 100m e começou a aproximar-se da difícil barreira dos 10 segundos.

Em março deste ano, no Campeonato Europeu de Indoor, na Polónia, deu um grande indicador, ao levar o ouro masculino nos 60m, com 6,47s, um novo recorde italiano. E na sua primeira reunião ao ar livre do ano, em Savona, estabeleceu novo recorde italiano de 100m, de 9,95s.

Uma meteórica evolução que apesar de não ter feito soar as companhias daqueles que, a partir de 2017, começaram a conjeturar sobre o possível sucessor do jamaicano Usain Bolt, já queria dizer alguma coisa.

CHRISTIAN PETERSEN/Getty

Laços de sangue

E é aqui que entra o tal pormenor gigante.

Desde muito pequeno que Lamond Marcell se sentia mal quando na escola a professora lhe pedia para desenhar a família ou quando os amigos ou outros lhe perguntavam quem era o pai. Ele próprio o confessou, recentemente: “Durante anos construí uma parede. E quando meu pai tentou entrar em contacto comigo, eu não me importei".

Rejeitou as tentativas de aproximação do pai viveu com esse fantasma até 2020, o ano da pandemia. Percebeu que tinha de enfrentar os seus medos porque cada vez que tinha uma grande competição, era como se as pernas pesassem chumbo. “Quando chegava a momentos especiais, as minhas pernas... não corriam”, confessou.

Nos últimos dois anos, especialmente na época da pandemia, trabalhou com uma treinadora mental, que o aconselhou a contactar o pai: “Precisas de falar com ele para chegares aos Jogos Olímpicos e talvez ganhar".

Noutra entrevista ao "Corriere della Sera", já depois da conquista da medalha, Lemont admite: "Não foi fácil: há uma parte íntima que não queremos mostrar nem para nós mesmos. Mas aprendo rápido. O trabalho psicológico começou em setembro do ano passado e em seis meses consegui um ouro no europeu indoor, os 9,95s, em Savona, os três recordes italianos nos Jogos e o ouro olímpico de 9,80s".

Lamont procurou o pai e assim que o relacionamento dos dois se restabeleceu as suas performances dispararam. Vale a pena ouvi-lo sobre todo o processo na mesma entrevista: "O poder da energia que se move quando derrubas uma parede é incrível. Eu odiei-o por o ter perdido, [então] inverti a perspetiva: ele deu-me vida, músculos fortes, velocidade. Eu julguei-o sem saber nada sobre ele. Antes, se uma corrida não dava certo, culpava os outros, o azar, o tempo. Agora entendo que os resultados dependem apenas de trabalho e empenho”.

JIJI PRESS/LUSA

Foi neste domingo que Lemont Marcell Jacobs Jr, o agora apelidado de homem mais rápido do mundo, surpreendeu tudo e todos, incluindo os seus adversários, como Andre De Grasse, medalha de bronze (9,89s), que aos jornalistas se referiu a Lemont como "o tipo italiano". “Não sei nada sobre ele". Surpreendeu-me realmente. Parabéns a ele”, disse o canadiano.

Lamont Marcell Jacobs Jr tem dois filhos com Nicole Daza - Anthony (2019) e a recém-nascida Meghan (2021) -, e outro mais velho, Jeremy (2013), de um relacionamento anterior, quando o atleta tinha 19 anos. Mesmo sabendo pouco sobre este italiano a sua presença no estádio olímpico de Tóquio não passou despercebida desde que pisou a pista pela primeira vez.

Com 1,88m e mais de 80kg, era impossível não reparar no número de tatuagens que o italiano tem. O mais engraçado é que ele chama às tatuagens uma representação do seu lado "americano". No peito tem uma rosa e uma citação de Charlie Chaplin, em italiano: "O que é realmente bom é lutar com determinação, abraçar a vida e vivê-la com paixão! Perde as tuas batalhas com classe e atreve-te a vencer porque o mundo pertence àqueles que ousam". No pescoço são visíveis as palavras "CrazyLongJumper" que é também o seu apelido nas redes sociais - sim, porque ele começou no salto em comprimento.

Tem também tatuados os nomes dos seus três filhos com a mais nova, Meghan, no seu bíceps direito. Nas costas há um tigre que representa "força, paixão e beleza" e no braço uma cruz com a palavra "Acredite".

Em criança Lamont dizia que queria ser arqueólogo ou astronauta, mas a ironia do destino ditou que acabasse com 25 anos de domínio por parte velocistas americanos, tornou-se no primeiro europeu a ganhar o título olímpico de 100m desde a britânica Linford Christie, em Barcelona 1992, e o primeiro campeão olímpico de sprint da Itália desde que Pietro Mennea conquistou os 200m em Moscovo 1980.