Talvez um dia algum sábio decida gastar tempo a debruçar-se sobre isto. Há uma inclinação inevitável para admirar e apoiar a melhor, a campeã, a mais dotada e a que recebe os olhares e os suspiros dos holofotes. Esperam-se anos, meses, dias, horas, minutos e segundos para as finais da ginástica dos Jogos Olímpicos para ver-se o que se imaginou e o que toda a gente anunciou e, de repente, sendo egoístas o melhor que sabemos, tiram-nos o chão aos exigentes, imperturbáveis e benevolentes guerreiros do sofá.
Desta vez havia um vazio. E até isso serve para percebermos o peso que estará sobre os ombros de alguém.
Aquela espera, salpicada por uma certeza tão grande como as maiores e infalíveis certezas operam, foi em vão. Simone Biles, à bulha com os demónios que lhe mordem a alma e a serenidade, decidiu não competir no concurso completo individual de ginástica. E isso era uma oportunidade dourada para as restantes ginastas.
Como sempre acontece no desporto, incansável geometria das histórias perfeitas e consoladoras, alguém que tem Simone como heroína encheu-se de coragem e de movimentos certos e bem suportados, seja pela técnica ou pela força, das pernas e da responsabilidade.
Aos 18 anos, Sunisa Lee (57.433) superou a concorrência da brasileira Rebeca Andrade (57.298) e de Angelina Melnikova (57.199), a atleta do Comité Olímpico da Rússia.

Rebeca Andrade, Sunisa Lee e Angelina Melnikova
Jamie Squire
A miúda de Minnesota garante assim uma travessia memorável para a ginástica dos Estados Unidos, que vence esta prova individual de all-around há cinco edições de Jogos Olímpicos consecutivas.
Tudo começou em 1984, com Mary Lou Retton, em Los Angeles. Na infância, em Fairmont, West Virginia, a pequena Mary ficou enfeitiçada pelos movimentos perfeitos e elegantes de Nadia Comăneci, em Montreal 1976, e a ginástica passou a ocupar um palácio inteiro no seu coração. Uns anos mais tarde, Retton foi para Houston, para ser treinada pelos ex-treinadores de Comăneci, Bela e Martha Karolyi. Nos Jogos Olímpicos de 1984, a ginasta conquistou, para além do ouro no all-around, duas medalhas de prata e outras duas de bronze.
Depois de um jejum importante neste concurso em específico, a época dourada da ginástica norte-americana deu finalmente à costa, com os ouros de Carly Patterson (2004), Nastia Liukin (2008), Gabby Douglas (2012) e Simone Biles (2016). Lee sucede assim ao seu ídolo na competição de all-around individual.
Sunisa, a mais jovem da equipa de ginástica dos Estados Unidos, é também a primeira norte-americana-hmong a competir por aquela equipa. Ela é, aliás, natural de St. Paul, Minnesota, onde existem muitas famílias Hmong, ali baseadas depois da Guerra do Vietname.
De acordo com a revista “Time”, aquele grupo étnico, que vive sobretudo em países do Sudeste Asiático, foi recrutado para alinhar numa operação militar dos norte-americanos em Laos, a “Guerra Secreta”. Derrotados e em fuga, empurrados do Vietname pelos vietcongs, os militares dos Estados Unidos deixaram aquela comunidade à sua sorte. As famílias Hmong fugiram primeiro para a Tailândia, já que lhes foi negado o asilo em solo norte-americano, algo que mudou no final da década de 1970. Os refugiados fixaram-se principalmente na Califórnia, Wisconsin e Minnesota.

Laurence Griffiths
Mesmo que ela talvez nem se apercebesse, a ginástica entrou na vida de Suni Lee quando era uma menina irrequieta. “Eu estava sempre a saltar na cama ou a dizer ao meu pai para olhar para mim enquanto fazia cambalhotas e coisas assim. Finalmente, a minha mãe fartou-se disso e tinha uma amiga com amigos no Midwest Gymnastics. É mais ou menos assim o meu início”, contou em 2019, citada pelo site oficial dos Jogos Olímpicos.
Foi assim que, aos seis anos, a ginástica começou mais a sério para Suni, como é conhecida, no Centro Midwest Gymnastics, em Little Canada, Minnesota. Quem diria que, 12 anos depois, estaria a suceder à sua atleta preferida como a melhor ginasta de all-around do planeta?
“Os últimos dois anos têm sido absolutamente loucos, com a covid e a minha família e tudo o resto”, disse Lee, já depois de dispensar algumas lágrimas. O pai caiu de umas escadas, em agosto de 2019, ficando paralisado do peito para baixo. Um mês depois, Lee ganhou o ouro nas barras assimétricas nos campeonatos nacionais e dedicou a vitória ao pai. "Eu estava a pensar nele o tempo todo, fi-lo por ele porque sabia que ele ficaria muito orgulhoso”, garantiu pouco depois da competição.
“Esta medalha definitivamente significa muito para mim porque houve uma altura em que quis desistir e eu simplesmente não achava que chegaria aqui, com lesões e tal. Por isso há muitas emoções, mas estou super orgulhosa de mim por me ter mantido e ter acreditado em mim", admitiu.
Lee revelou ainda que durante a prova começou a sentir muita pressão, aquele monstro que aperta a alma sem piedade e que transfere pontos de interrogação para o pensamento. Afinal, Rebeca Andrade e Angelina Melnikova iam fazendo o seu trabalho, tentando tudo por afastar a jovem ginasta norte-americana do lugar mais alto do pódio. Também a russa Vladislava Urazova, a japonesa Mai Murakami e a belga Nina Derwael iam impressionando.

Jamie Squire
“Sabendo que a Simone estava fora, senti que as pessoas puseram de certa maneira a pressão em cima de mim para voltar com uma medalha. Tentei não pensar nisso, só focar em mim e fazer o que normalmente faço porque é quando compito melhor”, desabafou, segundo a "CNN", explicando as agruras da alta competição.
A rapariga que aprecia ciência e os livros de Harry Potter, numa aparente atração pelo que é da fantasia e fantástico, usou a palavra “surreal” para descrever a situação que está a viver, admitindo que a ficha ainda não havia caído e que nada parecia soar à realidade.
Mas é a realidade, a mais bela das realidades, brilhante e amarelada como o sol, que aquece os ossos e derrete as dúvidas. Suni Lee ajudou a perpetuar o domínio norte-americano naquela modalidade e está agora entre os grandes nomes da ginástica olímpica para sempre.