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O inacreditável Jorge Fonseca: “Garanto que vou dançar pimba em Paris, lá na terra dos franceses. E vou organizar uma festa no Marquês"

Depois de conquistar o bronze em Tóquio, veio o show Jorge Fonseca, com dardos para os franceses, de quem não gosta à conta de um gesto de um adversário gaulês nos Europeus de Lisboa deste ano, e para o árbitro espanhol que esteve no seu derradeiro combate. Fica também a promessa: ele quer mais do que o bronze e é para ganhar em Paris, daqui a três anos. E é para ser recebido em festa no Marquês de Pombal

TIAGO PETINGA/LUSA

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“És muito chata, querida!”

Assim mesmo, em português. Minutos depois de conquistar a medalha de bronze nos -100kg, ainda com rios de suor a descerem-lhe cabeça abaixo, Jorge Fonseca chega à zona mista do Nippon Budokan, a casa espiritual do judo, o pavilhão que os japoneses construíram de raiz para servir de casa à estreia olímpica da modalidade nos Jogos de 1964, e senta-se na primeira mesa que encontra, mesmo ao lado dos jornalistas que ali o esperam.

Mas há regras a cumprir. Aqui há sempre regras a cumprir, até com um medalhado olímpico. Logo quatro voluntárias se aproximam, esbaforidas, “distance, distance”, trazem uma cadeira para Jorge e ele senta-se nos regulamentares dois metros. E é aí que o português, bem-humorado, mas visivelmente cansado, deixa sair o desabafo dirigido a uma delas, a mais vocal nas recomendações. Jorge ainda brinca, coloca a bandeira nacional que Pedro Soares, o seu treinador de sempre, lhe deu mal terminou o combate com o canadiano Shady Elnahas como uma espécie de proteção entre ele e os jornalistas. Um escudo anti-covid, made in Portugal.

E depois deste apontamento, é só abrir o microfone porque vai começar o show Jorge Fonseca, com direito a disparos para franceses, para o árbitro espanhol do duelo do bronze, para marcas desportivas, para quem não acreditou nele, até para a mãe que, diz ele, não pára de lhe ligar e não há mudança de fuso horário que a trave.

Mas vamos a isso.

“Melhor dia da minha vida? Naaa. Eu quero mais, nasci para o ouro, não nasci para o bronze. Estou feliz, mas infelizmente não consegui o meu grande objetivo, que era ser campeão olímpico”, começa logo por dizer, assim para início de conversa. Uma medalha olímpica é normalmente o zénite da alegria de um atleta, menos quando esse atleta só pensa no ouro. “Trabalhei muito para esta prova, de manhã, à tarde, à noite, tudo o que foi preciso para o ouro. Infelizmente a cãibra não me ajudou naquele momento na semifinal. E estraguei o combate todo. Foi um erro, vou aprender. O meu sonho é ser campeão olímpico. Vai ser em Paris. Posso garantir que vou trabalhar para isso”.

As referências a Paris serão mais do que muitas ao longo da conversa. Jorge Fonseca está em Tóquio, ganhou uma medalha de bronze em Tóquio, mas a cabeça dele já está três anos à frente.

O ouro se calhar até poderia ter chegado aqui, não fosse o “momento”. Aquela dor na mão esquerda no combate frente ao sul-coreano Guham Cho. E ele, com a maravilhosa candura de quem não precisa de ter filtros, de quem não tem deve nada a ninguém, de quem sabe que ainda tem coisas para limar, avisou logo que aquilo não foi físico.

“Quando fico muito nervoso e com a ansiedade de querer conquistar algo começo a ter cãibras. Já trabalhei isso com a minha psicóloga, ela ajudou-me bastante, mas neste momento não dá para controlar...brrr, é cabeça! A cabeça quer e o corpo tem de reagir. Só que na meia-final o corpo não ajudou”, conta.

FRANCK FIFE/Getty

Com a cãibra veio o erro e com o erro a derrota, E com a derrota foi-se a medalha de ouro. Claramente o momento ainda ressoa na cabeça de Jorge. Para se refocar numa possível medalha, mesmo que não a mais desejada, Pedro Soares foi essencial. “O meu treinador puxou-me para o canto e deu-me na cabeça. Disse-me: ‘Jorge, está na hora de fazer uma coisa histórica’. Trabalhámos muito, temos dois títulos mundiais e viemos aqui para vir buscar o ouro. Agora é ‘bora para a frente, tenho uma medalha que nunca tive. É terceiro... mas eu gosto é do ouro, gosto de senti-lo no pescoço, aquele peso!”.

Sobre aquele último combate, em que tantas vezes o vimos tombado sobre si mesmo, aparentemente exausto, Jorge admite que já estava “a entrar em desespero”.

“Estava muito cansado. Marco waza-ari, a seguir o meu treinador acorda-me, o árbitro mete-o para fora, faltam 26 segundos, eu acabei de cometer um erro e ele diz ‘Jorge, não voltes a fazer isso’... a malta pensa que aquilo é fácil, mas cada segundo ali vale muito”, explica, com aquele discurso em staccato, como que recordando novamente tudo o que tinha sentido minutos antes. Até o medo que lhe percorreu o corpo quando percebeu que o árbitro do derradeiro combate era o espanhol Raul Camacho.

“Eu tenho uma grande guerra com aquele árbitro espanhol, ele não gosta muito de mim e já me lixou a vida num Masters. Fiquei com muito medo quando vi que era ele a arbitrar. Felizmente hoje correu bem, até lhe pedi desculpa por tantas vezes que já ralhei com ele”, diz, muito mais sério do que a declaração possa sugerir. “Ele é injusto comigo porque não gosta muito da minha atitude. Mas eu não venho para brincar, venho para o ouro e ele prejudica o meu trabalho”.

E depois termina com uma daquelas frases que conquista uma sala: “Não somos muito compatíveis. Mas já estava na hora de lhe mostrar quem manda. E sou eu, não é?”.

Toda a gente ri, claro. E as gargalhadas estavam longe de acabar.

Vingança em Paris

Sobre a preparação para Tóquio, Jorge Fonseca diz que trabalhou “a resistência e a força". E que faltou à cerimónia de abertura porque a sua mentalidade já não é de festa. “A minha mentalidade é chegar e ir buscar o que é meu. Cheguei mais tarde que todos os meus colegas, decidi chegar apenas cinco dias antes da prova para poder estar concentrado”

Sobre a resistência, diz que era o que lhe faltava, essa capacidade de aguentar combates longos: “Era o que eu precisava. Eu tenho judo, sou explosivo, mas precisava de resistência para aguentar os combates todos. Depois com as dúvidas que as pessoas puseram relativamente a mim... eu gosto que as pessoas me coloquem em dúvida. Trabalhei muitas, muitas horas de resistência. Muito trabalho para aguentar os combates todos. Não me faltou nada nestes Jogos Olímpicos. Estava em modo monstro, mas a cãibra destruiu o modo monstro. Mas pronto, olha, agora é trabalhar para mais”.

FRANCK FIFE/Getty

Ainda em modo monstro, antes de partir para Tóquio, Jorge Fonseca prometeu dançar um pimba caso fosse ouro. Não sendo campeão olímpico, a vontade de dançar desvanece-se um pouco. “Só se for uma kizomba”, brinca - e até o poderia ter feito, já que a estereofonia do Budokan apresentou uma sonora kizombada no início da sessão desta quinta-feira.

Mas a brincadeira acaba ali.

“Mas eu não quero dançar kizomba, eu quero dançar pimba. Queria dançar pimba com o ouro no pescoço”, diz. E garante que daqui a três anos vamos ter pimba. E em França, onde lhe dará um prazer diferente. Parece mais ou menos evidente que Jorge Fonseca não adora aquela malta e tem as suas razões.

“Posso garantir que vou dançar pimba em Paris, lá na terra dos franceses, ali a comê-los todos. Eu estou um bocado por aqui com os franceses”, conta, enquanto leva a mão ao pescoço. “Um deles eliminou-me em casa [no Europeu de Lisboa, em abril] e depois meteu-se aos gritos na minha cara e nenhum homem pode gritar na minha cara, que eu não gosto. Aquele francês [refere-se a Alexandre Iddir] fez isso e eu quero eliminá-lo em casa dele e festejar na cara dele, porque eu sou muito rancoroso e não gosto de perder”. Mais uma vez, a deliciosa honestidade de um medalha de bronze olímpico.

E quando chegar a casa daqui a três anos é para ser recebido em grande. “Hoje não vou ter festa porque não me motiva festejar. Eu só festejo com o ouro. Agora vou comer bem, divertir-me, levar na cabeça do meu treinador... Vou ver o combate, para ver o que é que correu mal. Agora festa, festa mesmo vai ser em Paris, vai ser em Paris e vai ser no Marquês de Pombal, com o ouro no pescoço. Vou organizar uma festa em Paris e outra no Marquês de Pombal, uma festa no Marquês, estão a ver? Os adeptos todos, os meus fãs todos”. É bom que a Câmara Municipal de Lisboa se comece já a preparar.

A mãe e a música

Às tantas, a meio da conversa, passa o russo Iliasov, que Fonseca despachou nos quartos-de-final.

“Este é meu freguês, é meu filho”, comenta, a rir-se.

Perguntamos o que ouve ele naqueles auscultadores gigantes e modernos que tem sempre nos ouvidos antes dos combates, com os quais ginga e desentorpece o corpo antes do momento da verdade.

“Oiço muitas coisas, mas na verdade estou a interiorizar... estou sempre a dizer ‘eu sou o melhor’, a música está a tocar, mas eu nem estou a ouvir, estou a meter na minha cabeça que sou o melhor do mundo, se repararem estou a dizer "I'm the best, I'm the best" o tempo todo. A música está ali só para eu não ouvir o barulho das pessoas a gritar”, revela.

Das que ouve mais, aponta um clássico da motivação: “Aquela música da Mariza, "O Melhor de Mim", pá, eu estou sempre a ouvir essa música. Posso dizer... não tenho o telefone aqui, mas eu oiço aquela música todos os dias. O melhor de mim está para chegar, ainda não chegou, está para chegar. Em Paris”. A capital francesa, de novo na conversa.

Também tem de ouvir muitas vezes a mãe, a quem dedica todas as medalhas. Esta não é exceção - também houve palavras para o médico Manuel Passarinho, que o acompanhou quando sofreu de um problema oncológico, antes dos Jogos do Rio, há cinco anos.

JACK GUEZ/Getty

“A minha mãe estava sempre a ligar-me entre os combates. ‘Calma filho, calma filho’. A minha mãe praticamente é minha treinadora, está sempre lá em cima. Já me ligou mais de dez vezes... estava mais nervosa que eu. A velha ligou-me todos os dias, ela não sabe do fuso horário e então liga de madrugada a dizer ‘já devias estar a dormir e estás no Instagram’. Ela é minha fã número 1, mas está sempre pim, pim, pim. Ainda não falei com ela, é a seguir, vou deixar o coração dela palpitar um bocado”, conta.

Para o fim, lembra que o dia é de felicidade, apesar de se lembrar de todos aqueles que dele duvidaram. A medalha também é para os portugueses, que a merecem, diz, embora também assuma que já estava farto do discurso derrotista que ouvia vindo do nosso país. E questionado sobre as palavras duras que deixou para duas marcas desportivas em declarações à "RTP", explicou a sua mágoa, mesmo não querendo entrar em polémicas.

“Liguei para a Puma e eles disseram-me que eu não era um campeão. Liguei para a Adidas e eles disseram que eu não tinha mérito desportivo para ser patrocinado por eles. O meu kimono é Adidas... eu sei que não vou para o pódio com o kimono, mas o kimono é Adidas. Mas são estas pessoas que me alimentam. Disseram que não, mas eu mostrei que sou um verdadeiro campeão. Mérito desportivo? Eles agora podem fazer o que quiserem. Eu sou o Jorge Fonseca, bicampeão do Mundo, terceiro nos Jogos Olímpicos”, atirou.

E digam lá, há assim cartões de visita muito melhores que este?