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As Fiji repetem o ouro olímpico em sevens e têm uma mensagem de amor e esperança para o mundo: "O desporto pode mesmo mudar vidas"

Os fijianos voltaram a conquistar a medalha de ouro em sevens, em Tóquio, tal como nos Jogos Olímpicos de 2016. Um dos obreiros, inspirado pela cultura local e pela generosidade do povo das Fijis, é Ben Ryan, um homem que ali chegou sem saber ao certo ao que ia e que ganhou o primeiro ouro no Rio de Janeiro. "Deram um exemplo de vida ao não deixar que o passado ditasse o futuro"

Hugo Tavares da Silva

Dan Mullan

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Talvez, num exercício ousado de compreensão sobre o que significa para aquela gente esta era dourada das Fiji em sevens, bastasse mencionar os desastres naturais, os pedaços das casas que se separaram e voaram, os golpes de Estado, a pobreza e as eleições que dividem o país, como o esquecimento que se afasta inevitavelmente da lembrança. As duas medalhas de ouro nos Jogos Olímpicos de 2016 e 2020 e o povo que saiu à rua, dançando e celebrando, contam-nos sobre a obra de arquitetura mais bela e valiosa do desporto: edifícios de emoção, orgulho e união que se levantam do chão, independentemente do jardim ou lamaçal.

Ou bastaria até referir os problemas no interior da federação fijiana de râguebi, as condições de treinos supostamente deficientes e rudimentares e os magrinhos orçamentos. Ou relatar que aquela equipa, em plena pandemia e sem dinheiro para fretar um avião, viajou para Tóquio num voo de mercadoria, ao lado de peixe congelado.

Por isso tudo, olhar e sentir o cheiro do ouro, que até poderia ser outra classificação qualquer, não chega, nunca chegará. É necessário saber mais, descobrir de onde vêm, o que fizeram, quem são e como se levantam quando caem.

BEN STANSALL

Quando chegou às Ilhas Fiji, Ben Ryan não sabia exatamente ao que ia, mas foi ali, naquela decisão, que a história dele e daquele país começaram a mudar. O inglês até já tinha apalavrado outro emprego, depois de treinar a seleção inglesa de sevens entre 2007 e 2013, mas um amigo falou-lhe na possibilidade de assumir a seleção daquele país do Pacífico Sul e ele, que nunca havia ido lá, decidiu dar aquele salto encharcado de “fé cega”. Desconhecia o salário, a duração do contrato, os patrões e na primeira semana disseram-lhe que estaria seis meses sem receber.

À distância e pelas palavras que lhe saem da boca, Ben Ryan parece um homem extraordinário. Não por ser perfeito, isso não existe, não por fazer tudo bem ou ter descoberto a fórmula da glória eterna, mas antes pela maneira como reflete sobre a sua jornada de três anos. O seu casamento acabou, perdeu um amigo para uma prisão qualquer, por isso sente alguma culpa pelo desacompanhamento e transformou-se pelo caminho, já que o homem que se deixou seduzir pelo que era material e superficial deu lugar a alguém que só precisava do que era necessário. As Fiji, de certa maneira, salvaram-no.

Foi campeão olímpico com as Ilhas Fiji em 2016, batendo algumas caras familiares da Grã-Bretanha. Desta vez, não era ele que estava a treinar a equipa, quando venceram na quarta-feira a Nova Zelândia na final do torneio olímpico. O treinador da segunda medalha de ouro da história do país é Gareth Baber.

Mas esta história, ou pelo menos o início da caminhada, explica-se pelas palavras de Ben Ryan, que há cinco anos já havia recebido, como recompensa pelo ouro descoberto, pedaços de terra, uma cascata, o estatuto de chefe e até a sua figura cravada numa moeda de 50 cêntimos. Naquele pedaço de metal está sentado, com os braços cruzados, quem sabe a digerir tudo o que conquistou naquela terra que aprendeu a amar.

Mas nem tudo foi tão belo como parece.

“Demorou cerca de três meses para os jogadores começarem realmente a falar comigo”, admitiu Ryan, em maio de 2018, em entrevista ao “South China Morning Post”. O papel e a influência de Osea Kolinisau, o capitão da equipa que a federação até queria que ele deixasse cair, foram decisivos para o panorama mudar. “Estávamos ambos num ponto em que precisávamos da ajuda um do outro. Ele acelerou tudo. Eu não poderia ter ganhado a medalha de ouro olímpica sem o Kolinisau.”

Quando aterrou naquele país, apesar do choque cultural, o inglês não quis cavar ainda mais o fosso, não quis ser o típico branco que chega a um lado qualquer julgando saber as respostas todas. E negou, portanto, viver como a comunidade de expatriados, que por vezes demonstra “alguma falta de respeito” pelos lugares que ficam longe. Ryan preferiu viver fora de Suva, a capital, com muitos locais por perto. Os amigos seriam todos fijianos.

A realidade rapidamente esmagou a ideia que dançava no pensamento, no qual imaginava “areias douradas e palmeiras”, um outro tipo de céu terrestre. Ali a dignidade era e é sovada todos os dias. Nas aldeias muita gente não tinha geradores nem condições sanitárias adequadas.

“Passei os meus primeiros seis meses a olhar à volta, na verdade, e a falar com as pessoas. A compreender a cultura e a adaptar isso ao meu treino e liderança”, disse na mesma entrevista ao “South China Morning Post”. E assim foi plantada a semente da equipa olímpica, que seria campeã em 2016 e que daria continuidade em Tóquio 2020.

Foi nessa mesma conversa que deixou, sem essa pretensão, algumas palavras que são um tratado sobre o que é encaixar num lugar, e sobre a natureza dos fijianos. “Há um tema geral sobre como se pode ser feliz, gentil e simpático para as pessoas, mas também implacável e porventura que uma vida simples possa ser uma vida bem-sucedida. Tira as coisas materiais que as Fiji não têm, trata as pessoas com respeito, cria um ambiente que não custa dinheiro, oferecendo-lhes sentimentos de segurança, estatuto, conquista, propósito e crença, e aí podes fazer coisas muito espetaculares”, explicou.

Ben Ryan, noutras entrevistas, vai repetindo a questão da gentileza no trato, mas também elogia a liberdade e criatividade do jogador fijiano. Talvez seja por isso, por esse lado mais selvagem e genuíno, que não quer que o desenvolvimento chegue através de uma catrefada de campos impecáveis e bolas imaculadas.

“Não queremos isso porque a nossa vantagem natural são os campos ondulados. São as garrafas de plástico cheias de areia que lhes dão coordenação. (...) Deem-nos mais dinheiro, sejam mais organizados, tenham mais formação à volta dos nossos treinadores, fisioterapeutas e administradores, mas mantenham aquelas praias e aquelas campos com lixo, se faz favor.”

Poucas horas depois da final desta quarta-feira, em que as Fiji bateram a Nova Zelândia por 27-12 (a Argentina trincou o bronze), Ben Ryan partilhou na sua conta no Twitter o vídeo em cima, mostrando que é incapaz de se desconectar daquelas pessoas, mesmo cinco depois de abandonar o cargo de selecionador.

Na terça-feira passada, num texto para o “Guardian” e antecipando o que estava no horizonte, o treinador explicou o que significava o ouro para aquele país e guardou, para último, uma palavra de esperança, mais uma prova de que o desporto pode ser algo realmente especial numa sociedade.

“Como treinador, [a final dos JO de 2016] foi sem dúvida o ponto alto da minha carreira até agora. De volta a casa, às belas ilhas do Pacífico, o país estava a enlouquecer, com três feriados, celebrações loucas e uma nova nota criada, uma de sete dólares, naturalmente”, escreveu, numa alusão àquele desporto, sevens.

Depois de tragédias financeiras, doenças e até de um devastador ciclone, que soprou para longe a casa de alguns atletas fijianos inclusivamente, a recompensa bateu à porta. “[O ouro] significou responsabilidade, para inspirar não só no desporto, mas em todas as áreas da vida onde se podem erguer. Deram um exemplo de vida ao não deixar que o passado ditasse o futuro. Alguém da mesma aldeia, da mesma escola, era agora campeão olímpico”.

E isso tem um valor incalculável para um lugar onde a esperança e a dignidade metem folga demasiadas vezes. De acordo com o Banco Asiático de Desenvolvimento, 30% da população das Fiji vivia abaixo do limiar da pobreza em 2019. O país tem cerca de 890 mil habitantes.

“O primeiro jogo de râguebi no estádio nacional, jogado depois dos Jogos Olímpicos, foi um jogo escolar de meninas”, continuou Ryan no tal texto. “O estádio estava cheio. As pessoas só queriam estar juntas a celebrar o jogo que deu àquele país o primeiro ouro [da história nos Jogos Olímpicos]. Golpes de Estado, desastres naturais e eleições dividiram-nos no passado, mas isto uniu-os. A partir de muito pouco, conseguiram agora muito. O país inteiro foi inspirado e motivado pelo que os jogadores fizeram. Esse pode ser o poder de uma medalha olímpica.”

No dia em que as Fijis voltaram a conquistar o ouro olímpico, na quarta-feira, Ben Ryan voltou a escrever para aquele diário britânico o que mais parece uma carta de amor, encanto e gratidão àquelas pessoas com quem esteve entre 2013 e 2016. Para o ex-selecionador, um dia todos aqueles atletas serão homenageados na hora de serem escolhidos nomes para filhos, animais domésticos, pontes, escolas e estradas.

"Porquê? Orgulho na equipa, na nação. Pelo sentimento de pertença. A equipa veio toda do povo. Quando digo isso, eu quero dizer que muitas vezes eles trabalharam ou trabalham e certamente vivem entre eles", escreveu, deixando ainda uma palavra sobre o que têm debaixo da pele as pessoas daquele país.

"A maioria da população tem muito pouco, por isso partilham e tomam conta uns dos outros. A vida na aldeia e no sistema tribal foi afetada pelo modo de vida moderno, mas a velha frase fijiana "vei lomani" (o ato de nos amarmos uns aos outros) ainda brilha fortemente no arquipélago no Pacífico."

Ben Ryan sentou-se a ver a final contra a Nova Zelândia, no seu portátil, e à medida que o desfecho do jogo combinava com os seus suspiros, foi-se enchendo de amor e esperança. Afinal, "o desporto, no seu melhor, pode mesmo mudar vidas".