Paris coroou Julien Alfred, da pequena ilha de Santa Lúcia, como a mulher mais rápida do mundo. Foi uma surpresa? Nem por isso
Michael Steele
No Stade de France, em Paris, a ver Julien Alfred zarpar até ao ouro, estava nas bancadas o equivalente a quase metade da população de Santa Lúcia, diminuta nação caribenha que nunca tivera uma medalha olímpica. A forma como demorou 10,78s a correr os 100 metros, pulverizando a oposição (incluindo a favorita Sha'Carri Richardson), tinha as pistas bem à vista na história da tímida atleta. Faltou aos holofotes da atenção destacaram-nas
Ter nascido em terra humilde, pobre em recursos, é meio caminho feito para ser carimbada de surpresa e mal Julien Alfred, sem uma mulher por perto a beliscar-lhe a superioridade, cumpriu os 100 metros em Paris, era previsível adivinhar os títulos a serem redigidos no momento. “Surpresa” e “surpreendente” foram palavras comuns, desbaratadas na apoteose de uma atleta radiante, boquiaberta e efusiva ao ser a primeira a correr a distância que consagra a vencedora com um cognome bastante mais apropriado, porque justo.
Julien Alfred é a mulher rápida do planeta e terá, para quem duvide, um penduricalho de ouro no pescoço a prová-lo. Ela nasceu em Santa Lúcia, diminuto país-ilha das Caraíbas onde vivem cerca de 180 mil pessoas, que tem por vizinhança a Martinica, a São Vicente e Granadinas e também Barbados, outras pequenas nações rodeadas por mar, afamadas pelas praias e prediletas como destinos de férias, não propriamente vistas como geradoras de talentos no atletismo onde são precisas pistas, condições de treino e investimento em treinadores.
A mulher que se apropriou dos 100 metros em Paris veio de um país que jamais vencera uma medalha de ouro, tão pouco uma prata ou algum bronze, no passaporte tem Santa Lúcia escrito então julgou-se que o pasmo era a melhor reação a aplicar ao feito de Julien Alfred. Mas o tartã desmente essa noção, tanto no Stade de France, que acolhe o atletismo olímpico e onde a atleta fez soar o sino reservado aos vencedores, como noutras superfícies recentes por onde andou a acelerar nos últimos tempos.
Diria Alfred mais tarde, a lacrimejar, que adotou a estratégia de “não olhar para o lado” de modo lhe ser incógnito que tem ao lado, “tendo a panicar quando o faço”, portanto nem viu Sha’Carri Richardson na pista mesmo a ladear a sua. Se quisesse vê-la, talvez nem conseguiria: os 10,72 segundos que lhe valeram o ouro foram 0.15s mais rápidos do que a marca da norte-americana (a maior margem desde 2008, em Pequim), o equivalente a quase três corpos, parece pouco mas na prova-rainha da velocidade é muito. Ainda mais quando a perseguidora era a extrovertida campeã mundial, tida como grande favorita nos 100 metros, mas cujo mau arranque na pista molhada pela chuva a fez caçar o prejuízo desde a largada.
Kevin Voigt
O pó comido por Richardson na final tinha prenúncios, ainda por cima recentes, pois a extravagante velocista das tatuagens, dos cabelos pintados a cores berrantes e unhas bem compridas já ficara a .05s de Julien Alfred nas meias-finais, fase em que o melhor tempo pertenceu à flecha de Santa Lúcia - e onde se viu a desistência misteriosa de Shelly-Ann Fraser-Pryce, jamaicana de 37 anos, supostamente devido a lesão. A rainha dos 100 metros, com dois ouros na gaveta e quatro medalhas olímpicas no total, abandonou a prova onde era suposto competir com Richardson e Alfred. Muito antes, Elaine Thompson-Herah, sua conterrânea e dona do segundo melhor tempo da história (10,54s), portanto outra favorita, falhou a ida a Paris devido a uma lesão.
Julien Alfred nada tem a ver com ausências, mazelas ou infortúnios alheios. Como a qualquer outra atleta, compete-lhe fazer o seu melhor para prevalecer.
Com o mundo focado na redenção em corrida de Sha’Carri Richardson e na sua demanda por redenção após, há quatro anos, ser suspensa por ter no sangue THC, substância ativa na canábis que admitiu fumar, legalmente, nos EUA durante o luto que fez da morte da sua mãe ausente (está para ser provado como fumar marijuana dará vantagem competitiva a alguém), ninguém reparou na mulher de Santa Lúcia a zarpar no quintal do lado, decidida e focada, sem surpresa porque, aliás, era a única outra velocista que este ano tinha corrido abaixo da fasquia dos 10,8 segundos.
Carmen Mandato
Carmen Mandato
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Julien Alfred não olha para os lados, bloqueia só no que tem à frente, mas disse já de ouro ao peito que se apercebeu da iminente vitória à entrada para os últimos 20 metros, ao situar que não havia vultos a surgirem na sua periferia. Sem as jamaicanas em Paris, pulverizada Richardson nas meias-finais e com o arranque de caracol da campeã do mundo na final, a história da atleta da pequena ilha caribenha teria que apequenar também a perceção de ser surpreendente.
A demonstração de superioridade veio da mulher que é, desde março, campeã mundial dos 60 metros em pista coberta (6,98s), vinda de Santa Lúcia, pobre pedaço de terra perdido no mar, mas de onde saiu, em 2018, ainda adolescente, para a Universidade do Texas, nos Estados Unidos onde não haverá melhor lugar para uma atleta nutrir as suas aptidões. Por lá venceu, há dois anos, os 100 metros e os 4x100 nos NACC Championships, a maior prova de atletismo do país. Há poucos meses, em Eugene, nos EUA, já ficara só atrás de Richardson numa dos derradeiros eventos de preparação para os Jogos. Os sinais estavam lá todos.
Uma história por estimar também, agora que a World Athletics acordou para as canções que pode ser tocadas aos ouvidos das massas e tem, na Netflix, uma série, batizada de ‘Sprint’, que perscruta a aura dos atletas. Os americanos são ímans de atenção, o atletismo é um negócio por lá. Em Julien Alfred, contudo, também habita uma matéria para livros: cresceu descalça, envolta em pobreza, em Santa Lúcia, tinha 12 anos quando perdeu o pai, a família arranjou forma de a colocar na Jamaica, para ir à escola onde atletas caem das árvores e nasceu Usain Bolt, o seu ídolo, o sistema do college norte-americana detetou-a, ela foi, envergonhada e tímida, ganhou a alcunha de ‘Juju’ e até no seu maior momento, em Paris, quis esclarecer que “nunca me irão ver a celebrar assim”.
Julien Alfred tem o ouro que a distingue como a mulher mais rápida do mundo. A sua introversão e os holofotes apontados a outras coordenadas, ali tão mesmo ao lado, não apagam os sintomas. A mulher de Santa Lúcia era uma glória à espera de acontecer.