Podem os EUA voltar a dominar a velocidade? Sha’Carri Richardson, em busca da sua pequena vingança, pode ser a resposta
Steve Christo - Corbis
Aos 24 anos, a velocista texana é favorita nos 100 metros e pode tornar-se na primeira mulher norte-americana a conquistar o ouro no hectómetro desde 1996. O triunfo até já podia ter chegado em Tóquio, mas uma polémica suspensão por consumo de canábis deixou Richardson em casa e a lidar com os seus demónios. Mas ela agora não está de volta: está melhor
“Não estou de volta, estou melhor.” Há frases lapidares, que se agarram à personalidade de alguém, às suas ações, ao que querem para si. É este o motto de Sha’Carri Richardson, a garrida e pespineta sprinter norte-americana, a quem os compatriotas confiam uma tarefa que é quase uma questão de orgulho nacional: voltar a trazer o título olímpico feminino dos 100 metros para os Estados Unidos, algo que não acontece desde o ouro de Gail Devers em Atlanta 1996, quatro anos antes do nascimento de Richardson. A oportunidade acontece já este sábado, primeiro nas meias-finais e depois, quem sabe, numa das grandes finais marcadas para o segundo dia de ação no Stade de France.
O que até já poderia ter acontecido, porque semanas antes dos Jogos Olímpicos de Tóquio, a texana de 24 anos era a favorita ao título no hectómetro, depois de arrasar nos trials norte-americanos, um passo consentâneo com a sua caminhada enquanto jovem promessa - em 2019, ainda na universidade, já era uma das 10 mulheres mais rápidas da história.
Mas seria de casa que Sha’Carri Richardson assistiria aos Jogos pandémicos. Tudo porque a 1 de julho, praticamente em vésperas dos Jogos Olímpicos, a Agência Norte-Americana Antidopagem, a USADA, anunciou que a atleta havia testado positivo a THC, a substância ativa presente na canábis e que é proibida, ainda que não existam evidências científicas de que melhore o desempenho desportivo. Suspensa por um mês, apesar dos apelos de outros desportistas e até de políticos - Joe Biden foi um deles -, Richardson ficou assim, ingloriamente, impedida de ir a Tóquio.
Cabelo cor de fogo durante os trials para Tóquio 2020
Andy Lyons
Paris apresenta-se então como palco para a pequena vingança pessoal de Sha’Carri, que estará ainda nos 4x100m. Mas é nos 100 metros individuais que o mundo se detém para durante pouco mais de 10 segundos colar-se ao ecrã e ver os seres humanos mais rápidos do planeta a digladiarem-se sem se tocarem, só eles contra o atrito, procurando que seja seu o primeiro pedaço de pele ou cabelo a passar a meta. O favoritismo é seu, até porque é de Sha’Carri a melhor marca do ano, 10.71 segundos, feitos há um mês, em Eugene. Mas a viagem para aqui chegar, nestes três anos, não foi sempre suave.
Os fantasmas e o regresso
Depois do adeus de Usain Bolt, o atletismo ficou órfão de uma figura emblemática no setor masculino. Mas elas começaram a aparecer do lado feminino. Ou melhor, já existiam. A também jamaicana Shelly-Ann Fraser-Pryce foi ouro em Pequim 2008 e Londres 2012, tal como Bolt, e o seu acervo de coloridas perucas, jeito brincalhão e maneira de correr, com o peito bem para a frente dentro dos seus 152 centímetros, que lhe valeram o cognome de “Pocket Rocket” (como quem diz “Foguetão de Bolso”), tornaram-na também num fenómeno, ainda que bem mais circunscrito do que o forjado pelo compatriota.
Sha’Carri Richardson é também dela herdeira, apesar de sua referência principal ser Florence Griffith-Joyner, falecida em 1998, norte-americana que ainda hoje é recordista mundial, com 10.49. Foi com uma longa cabeleira cor de fogo e quilométricas unhas das mãos (a que chamou de “look barulhento e perigoso”) que venceu os trials em 2021 e a sua atitude sem desculpas ou remorsos criaram um certo culto em torno da velocista, disposta a ser a pedrada no charco que os Estados Unidos procuravam.
Mas os fantasmas pessoais também acompanhavam Sha’Carri, criada por uma avó e uma tia, depois de ser abandonada pela mãe biológica. A solidão levou-a mesmo a uma tentativa de suicídio quando era adolescente. A força dada pela tia, também ela atleta, seria importante para Richardson dar a volta. Mas as notícias da morte da mãe, poucos dias depois do apuramento olímpico para Tóquio, precipitaram mais um desarrumar na vida da atleta. A notícia foi-lhe dada inadvertidamente por um jornalista, um momento que, confessaria depois ao canal NBC, ter sido “chocante” e um “gatilho”, já que o tema era para si ainda “ muito, muito sensível” e “confuso”.
Para conseguir lidar com a dor, Sha’Carri recorreu à canábis, algo que, no estado do Oregon, onde se encontrava, é legal.
A vitória na pista 9 nos Mundiais de 2023
FABRIZIO BENSCH/REUTERS
Ainda que penalizada por uma situação potencialmente injusta, Sha’Carri Richardson não se queixou, não usou a sua situação pessoal como desculpa. “Eu sei o que fiz e sei que é suposto não o fazer”, disse à NBC.
Em 2022, Richardson ainda se encontrava em processo de lidar com os seus próprios demónios, a arrumar a vida, e falhou a seleção para os Mundiais de Eugene. Mas, um ano depois, voltou. E com estrondo. Nos Mundiais de Budapeste, e apesar de estar a correr na indigente pista 9 na final, veio de trás para a frente para bater Shericka Jackson e Fraser-Pryce, garantindo o seu primeiro grande título internacional nos 100 metros. Sem cabeleiras coloridas, mas confiando agora no seu tom natural de cabelo. Seria ainda campeã nos 4x100 metros.
A presença em Paris é, para si, o “fechar de um cíclo”. Um ciclo de dor, mas também de dar a volta por cima. “Nos últimos três anos, aprendi a ter um melhor conhecimento de mim própria, a ter um maior respeito e gratidão pelo meu dom e também pela responsabilidade que tenho perante as pessoas que acreditaram em mim e me deram apoio”, disse Sha’Carri aos jornalistas depois de se apurar para Paris. Na sexta-feira, nas qualificações, surgiu com as suas habituais unhas gigantes e ornamentadas, mas sem as perucas que tantas vezes lhe deram um ar feroz. Ainda assim, ela continua a descrever-se como “rápida, cara e chique”. Atitude e carisma não lhe faltam.
Passagem de testemunho
A concorrência a Sha’Carri Richardson foi-se limitando ao longo dos últimos meses. A campeã olímpica do Rio 2016 e Tóquio 2020, Elaine Thompson-Herah, sofreu uma lesão grave em junho e não está em Paris. Sharicka Jackson, bronze em Tóquio e prata nos Mundiais de Budapeste, há um ano, anunciou que vai focar-se nos 200 metros, também por questões físicas. Aos 37 anos, Shelly-Ann Fraser-Pryce parece, de facto, a única capaz de evitar o regresso do ouro aos Estados Unidos - e, se o fizer, entra na história como a única mulher a ganhar por três vezes os 100 metros em Jogos Olímpicos.
Gail Devers, a última norte-americana a ganhar no hectómetro, já lá vão 28 anos, sublinhou à Reuters que sente que “este é o momento” para o ouro voltar aos EUA e que Richardson vai ganhar, sim ou sim. “Se ela tiver uma boa partida, todas estão tramadas. Se ela não tiver uma grande partida, todas estão tramadas. Porque o que ela não faz é entrar em pânico”, frisou a três vezes campeã olímpica, que pode muito bem estar a poucas horas de entregar o testemunho à atleta que há três anos passava por um inferno e agora pode ser uma das caras do regresso do domínio norte-americano na velocidade, até porque no masculino o favorito é Noah Lyles, em grande posição para vencer o ouro que escapa aos Estados Unidos desde 2004, quando Justin Gatlin foi campeão em Atenas, à frente de Francis Obikwelu.