Depois dos calhaus que esbarraram no carro da família de Sérgio Conceição e do menino de Famalicão que teve de retirar a camisola do Benfica, acabando por ver o jogo em tronco nu, deu-se mais um caso de intolerância no Estádio Coimbra da Mota, num Estoril-FC Porto. Um adepto vestido com a farda do clube visitante, um pai com uma menina ao colo, teve de abandonar a bancada central depois de ser insultado e cuspido.
A Autoridade para a Prevenção e Combate à Violência no Desporto (APCVD) abriu um processo pelos “atos de intolerância praticados naquele jogo”, confirmou à Tribuna Expresso Rodrigo Cavaleiro, o presidente daquela entidade, nomeado pelo Governo em novembro de 2018. “Sendo reconhecida a prova e identificados os suspeitos”, algo que já aconteceu segundo uma fonte da APCVD em declarações à Lusa, “estão sujeitos ao pagamento de uma coima entre €1.000 e €10.000 e sujeitos à aplicação desde logo de uma medida cautelar de interdição, para os afastar o mais rapidamente possível dos recintos desportivos”. Ou seja, estão afastados de eventos desportivos enquanto decorrem as averiguações e o processo.
Caso o processo culmine numa condenação, à aplicação da tal coima junta-se uma interdição efetiva de acesso a recintos desportivos que poderá ir até 24 meses, imposta pela APCVD. “Os tribunais podem aplicar um prazo mais alargado”, informa Cavaleiro.
O regime jurídico da segurança nos espetáculos desportivos prevê infrações contraordenacionais e criminais, uma definição que dependerá naturalmente da gravidade dos incidentes. “No caso concreto que se verifica nas imagens, está à vista de todos”, continua Cavaleiro. “Estamos perante atos de intolerância que estão tipificados no artigo 39 do regime jurídico referido como contraordenação. No fundo, é a prática de atos ou incitamento à violência e intolerância e outras condutas, como xenofobia e racismo. Está tudo numa mesma alínea e configurada como contraordenação, o que coloca a APCVD com atribuição de poder avançar com o processo contra os autores desses atos de intolerância.”
Se por definição são as forças de segurança os agentes de fiscalização da lei – o policiamento no jogo estava a cargo da GNR –, este caso tem uma componente que se configura numa exceção. “Estamos a falar de factos que foram tornados públicos e com indícios fortes, pelo vídeo, onde continua a ser imprescindível a colaboração da força de segurança. Mas o presidente da APCVD tem a atribuição por lei de dar início ao processo por sua própria iniciativa”, explica o presidente da entidade.
“Um aumento cíclico de perceção de violência”
Rodrigo Cavaleiro, embora admita o cenário de aumento de casos semelhantes pós-covid noutros países, não considera que a violência esteja a aumentar no desporto em Portugal. Existe antes “um aumento cíclico de perceção de violência”, que decorre normalmente nos inícios e finais de temporada.
“Talvez pela expectativa do começo, está toda a gente na transição da silly season para a rentrée do ano, haja sempre muito mais atenção”, reflete Cavaleiro. “E, depois, numa fase final dos campeonatos, quando começam a estar em discussão os títulos e a competitividade está ao rubro, quando a pressão e os discursos dos próprios agentes desportivos são um bocadinho mais acintosos, o que também se traduz na influência que colocam sobre os adeptos e isso depois reflete-se nas atitudes e no próprio mediatismo dado às situações.”
Segundo este dirigente, existem casos “muito claros de coincidência” entre um aumento de registos de incidentes de intolerância ou violência e declarações ou atos de agentes desportivos, sejam jogadores ou até dirigentes. O FC Porto-Sporting onde “as coisas mais do que aconteceram”, em abril, levou a um maior registo de participações das forças de segurança relativamente a eventos observados nas camadas jovens. Ou seja, “acredito que [os jovens] se reveem no que veem, que se sintam influenciados e queiram replicar o que são os comportamentos e ações dos seus ídolos”.
Por tudo isto, Cavaleiro considera a “ação responsável da atuação dos agentes desportivos e dirigentes absolutamente essencial", pois estes exercem uma influência importante sobre as massas. “Um sinal dado, mesmo que de forma subtil, tem efeitos imediatos no comportamento quer de grupos organizados de adeptos, que muitas vezes se reveem nesses discursos e podem reagir ou não (sentem-se defensores de primeira linha), quer do adepto individual, só por uma questão clubística. É necessária uma ação responsável do dirigismo," insiste.
Numa declaração publicada nas redes sociais, o secretário de Estado da Juventude e do Desporto, João Paulo Correia, defendeu que “este tipo de incidentes não pode ter lugar” nos estádios, assim como não se podem ser toleradas "as tentativas de normalização da intolerância no desporto”.
E garantiu: “A Autoridade para a Prevenção e Combate à Violência no Desporto agirá contra o comportamento dos adeptos em causa. Continuaremos a lutar implacavelmente”.
O clube do concelho de Cascais, num comunicado, desculpou-se do caso na noite de domingo: “Condenamos as atitudes de quem não consegue controlar as suas emoções e permite que atitudes provocatórias de supostos adeptos de futebol se transformem num momento lamentável de agressividade que não tem lugar num estádio de futebol”. O presidente, Alexandre Faria, embora defenda que “nada justifica aquela reação”, revelou que se tratará tratado de uma resposta a provocações.