Perfil

Futebol internacional

Sergio Busquets, o lingrinhas que pensou, logo jogou

O último resquício do grande Barça que se reagrupou em torno da bola no raiar de Pep Guardiola vai embora do clube. Sergio Busquets, o médio magricela com pouco aspeto de futebolista, revelou que esta será a sua última época com os culés ao fim de 31 títulos, mais de 700 jogos e um estilo redefinido para a posição que ocupa em campo

Diogo Pombo

Eric Alonso/Getty

Partilhar

Escanzelado, era um miúdo alto e magro que causou estranheza, a irromper do nada num Barça em cacos, retumbado nos vícios de tantas vitórias, títulos e egos flagrantes recentes de estrelas com muito futebol no corpo. Nos corredores de Camp Nou encostava-se, por vezes, o sorriso em pessoa que tanto fizera doer a barriga de adeptos culés a rirem com ele, Ronaldinho Gaúcho trazia a noite com ele para o dia e os rumores que se ouviam era a de um clube arrastado para a festa pelos jogadores que recentemente o tinham devolvido aos píncaros do futebol. Em 2008, quando o Barcelona olhou para o ‘caseiro’ Pep Guardiola, ele mostrou ao que ia com certas decisões tomadas.

Uma delas, das primeiras, foi enfiar no elevador que o ascendeu da equipa B para a principal um rapaz que era só pele e osso e, oito meses antes, jogava na terceira divisão espanhola. A anatomia de Sergio Busquets não aparentava ser a de um futebolistas. Delgado, desprovido de músculos como ainda hoje é, o catalão, filho de um outrora guarda-redes do Barcelona, trilhara os caminhos à bola na equipa que vencera a segunda liga espanhola na temporada anterior e aterrava com os 20 anos na equipa cheia de nomes adultos, apesar da ligeira limpeza promovida - entre os meiocampistas que se acercam da linha defensiva havia Xavi, um dos capitães, o matulão Yaya Touré, o confiável Seydou Keita ou Rafa Márquez, central mexicano com pé certeiro o suficiente para ser médio.

Diferente de todos, não tardou a prová-lo no campo onde se distingue a fibra dos futebolistas. Em Camp Nou, no anfiteatro que se precipita sobre o relvado com uma pressão que vai além do ganhar, Busquets estreou-se à segunda jornada da La Liga de 2008/09 e enraízou-se de imediato. Por lá, onde Guardiola quis devolver uma equipa ao passado fiel à bola, de todos avançarem no campo juntinhos, de passe em passe curto, no jogo de posição vidrado em controlo até aos últimos 30 metros de campo onde chegava a ordem de soltura da criatividade, Sergio tornou-se a cabeça que mais ordena os caminhos a seguir.

Cedo mostrou a mestria do engano, a começar pelas aparências em que nos é humanamente natural fiar. Os 189 centímetros do seu delgado e leve corpo, desprovido de musculatura, nunca sugeriram pertencer a um atleta; a forma de se movimentar em campo, a arrastar os pés e aparentemente a arrastar-se a ele próprio, não se coaduna com os cânones típicos guardados pelo futebol para condecorar um jogador com a afamada postura de ‘senhor’; e no vídeo da sua despedida, editado à pinça, até na sua voz narradora se denota o tímido carisma de um jogador cujos sinais para o exterior o aproximaram, mais ainda, da mestria do engano.

É provável que Busquets se esteja nas tintas para o que aparenta ser porque em cada bola que lhe chegou mostrou sempre quem ele é, na realidade.

Vê-lo a jogar virou um espetáculo de calma perante a tempestade, uma amostra monotemática em campo pela predisposição do espanhol em jamais tremer quando um, dois ou quantos adversários fossem que estivessem por perto, a querer roubá-lo. Nunca sendo o mais rápido, ágil ou explosivo dos jogadores a mexer-se, em qualquer campo, o cérebro de Busquets é inigualável em cada ação com a bola. A sua carreira é um compêndio de receções orientadas para o lado contrário da adivinhação do adversário e de simulações de corpo para induzir esse infeliz em erro que fizeram do espanhol um mentiroso total, a toda a hora.

As quatro épocas com Guardiola, as suas primeiras no futebol de topo, foram, à sua escala, um choque no futebol. Viu-se a erupção de um trinco que não era trinco, de um médio que tão pouco era bem um médio tradicional, mas de um jogador a quem se entregar as responsabilidades de filtrar o início das jogadas, de as pausar mais adiante se necessário e de inventar soluções para outros - os mais rápidos, mais criativos, mais técnicos - terem condições a brilharem. Enquanto o Barcelona e a seleção de Espanha se mantiveram fiéis a formas de jogar que não exigiam correrias a Busquets, nem o expunham a situações de jogo que lhe destapavam as fraquezas a cobrir grandes áreas de relva sem ajudas nas redondezas, o seu pensamento controlou o futebol.

1 / 5

Miguel Ruiz/Getty

2 / 5

Quality Sport Images

3 / 5

NurPhoto

4 / 5

Jasper Juinen/Getty

5 / 5

Aitor Alcalde Colomer/Getty

Guardar-se-ão as finais da Liga dos Campeões de 2009 e 2011, ainda com o auge do Barça de Pep e dos seus compinchas da arte do toque na bola eternizada como tiki-taka. Ficará a sua influência de simplicidade na versão 2.0 de uma equipa que começava devagarinho para acabar a acelerar com Messi, Neymar e Suárez (2014-16). Rebobinar-se-ão as partidas da supremacia da La Roja entre o pós-Euro 2008 e a conquista da edição em 2012 para se constatar a sua influência. Nessa final, Busquets deu um recital de engano para ganhar tempo contra a Itália de Andrea Pirlo, outro que se aprimorou a ordenar a vida de uma bola no quintal da frente dos defesas.

O espanhol, como o italiano ou o argentino Fernando Redondo antes deles, joga porque pensa e se pensa, logo joga. As sinapses mentais dentro da cabeça de Sergio Busquets proporcionaram momentos de futebol em que o espanhol tinha nervos de gelo na sua área, a receber e tirar adversários do caminho com olhos nas costas, ou a rasgar passes rasteiros que superaram linhas de pressão quase sem antes olhar para lá. E jogou sempre contra um mesmo adversário, o estereótipo que obriga um trinco ou 6 a ser matulão no físico e maratonista nas corridas quando tudo no futebol começa por ser uma escolha: a do perfil de jogador que se quer para cada posição é uma delas.

Enquanto teve Xavi e Iniesta a coabitarem no meio-campo e a justificarem, mais ainda, que era sustentável o Barça continuar a jogar de uma certa forma, Sergio Busquets prosperou. Com a idade a apanhá-los primeiro e a empurrá-los para outras geografias - depois seriam Suárez, Messi e Piqué, por outros motivos -, o médio lingrinhas começou a sofrer.

Presenciou o ocaso de uma era gloriosa do Barcelona e sentiu as dores do decrescimento em campo, viu treinadores chegarem em modo penso rápido e zarparem com ainda mais rapidez, esteve no 8-2 em Lisboa e também sobreviveu à descida à Terra da seleção espanhola. Já nos trintas, Busquets virou um capitão que remetia para tempos de glória, o farol de sucessos passados que foi tentando, como ainda o tenta, ir colocando gelo num jogo habitado por futebolistas explosivos e potentes, por transições e vertigens, por cada vez menos pausa. Com 34 anos e 714 partidas no Barça, sabe que tem de sofrer para ter prazer no ambiente em que atualmente se dão pontapés na bola.

Foram 15 épocas de “uma jornada inesquecível” que “não acreditava ser possível”. Pacato e tranquilo fora de campo, a quem os ocasionais refilanços teatrais com árbitros mancharam alguma da perceção pública (o episódio em 2010, contra o Inter de José Mourinho, cravou-lhe essa imagem), Busquets despede-se a agradecer a roupeiros, fisioterapeutas, analistas e pessoas do staff do clube antes de chegar aos jogadores “com quem partilhou milhares de horas de convivência”. Como qualquer grande futebolista, especialmente um com as suas características de melhorar a vida ao próximo, a sua carreira mede-se pela excelsa companhia de que foi beneficiando no clube e na seleção.

Será recíproco, pois Iniesta, a findar a sua luz há anos pelo Japão, descreveu-o como “amigo, lenda e espelho” do Barcelona. A cabeça de Sergi Busquets terá agora de pensar onde lhe apraz dar seguimento ao ano, quiçá dois que ainda lhe restam com capacidade para subsistir ao frenesim do futebol atual. Fala-se no dinheiro da Arábia Saudita, nas horas necessariamente metidas em aviões da MLS norte-americana, na suposta hipótese de haver lugares na Premier League que se acomodariam para o receber. Seja onde for, o homem que foi o 28, depois o 16 e acabou com a camisola 5 pensará bem antes de decidir.