O futebol foi madrasto com Arsénio Iglesias no dia 14 de maio de 1994. Depois de uma longa e mítica trajetória à bulha pelos pontos e pela dianteira da liga, com rivais como o famoso Dream Team de Johan Cruijff, os homens de branco que tentavam juntar as peças do legado da Quinta del Buitre e ainda o surpreendente Zaragoza, a coroação foi agendada para esse sábado, no Riazor, não muito longe da praia com o mesmo nome. O derradeiro adversário era o Valencia de Guus Hiddink.
A tensão no estádio do Deportivo podia comer-se às colheradas, ou sem colheres mesmo, bastava trincar o ar. O que foi a promessa de felicidade delirante transformou-se em angústia. Até que o árbitro apitou para grande penalidade em cima dos 90 minutos. Mesmo com Bebeto e Fran em campo, era Miroslav Djukic o senhor da bola. Reza a lenda que a mulher lhe disse, antes de sair de casa para se tornar rei de Espanha, para se livrar de bater penáltis. O futebolista, como contou muitos anos depois, partiu para a bola sem saber o que fazer, se esperar pelo movimento do guarda-redes, se bater em força. Fez o contrário de ambos. José Luis González defendeu com facilidade, caindo para o seu lado direito. O céu desabou na Corunha. E o Barça – que fez o seu trabalhinho contra o Sevilha com golos de Laudrup, Romário, Bakero e Stoichkov – somou mais um campeonato nacional.
“Muito que dizer e pouco que contar”, começou por desabafar na dolorosa conferência de imprensa o já muitíssimo respeitado Arsénio Iglesias, conhecido por bruxo e sábio, mas também por raposa, que morreu na sexta-feira, aos 92 anos.
“Empatámos, não pudemos ser campeões, estava escrito assim. A equipa correu, não jogou demasiado bem, talvez estivesse muito nervosa, faltou marcar um golo. Eles contra-atacaram um par de vezes. Não aconteceu, o que vamos fazer? A equipa está muito desgostosa, mas continuo a pensar que os tenho de felicitar, deixaram lá a pele, foram perseguidos por uma grande equipa, fizeram o que puderam, fizeram-no bem. São as regras do jogo. Não tenho muito mais o que dizer, é uma pena. É triste e duro, sobretudo porque possivelmente uma vez na vida podíamos ter conseguido e não aconteceu. Nem saberia o que dizer a mais perguntas”, resumiu. Às palavras admiráveis, normalizando o dia a dia no desporto, seguiram-se outras de um jornalista e uma ovação de muitos deles. Iglesias, então com 63 anos, agradeceu.

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“Muito obrigado em nome de todos, porque passei um dia mau, os jogadores estão a passar realmente mal”, confessou. “Sinto uma grande tristeza pelas pessoas que eu via todos os dias pelas ruas, segundas-feiras, terças-feiras, os mais velhos, as crianças, tinham uma ilusão tremenda. Eu pensava que podíamos desiludi-los porque isto podia acontecer, não era a primeira vez que me acontecia. Falhámos um penálti quando não havia tempo nem para respirar. Teve de ser assim. Muito obrigado. Até à próxima, que Deus reparta a sorte.” Mais palmas.
Um ano depois, em entrevista ao “El País” e já reformado, foi questionado sobre a derrota, como conceito, não exatamente aquele momento do penálti. O cidadão da Corunha, natural de Arteixo (onde há uma rua com o seu nome), lembrou o ciclista que nunca ganha. Revelou estar cansado dos “ganhadores natos”, preferia falar em saber competir. “O Deportivo tem uma história muito curta para permitir-se o luxo de ser uma equipa derrotada”, explicou. E justamente: até àquele momento, o especial Depor, hoje na terceira divisão, contava apenas com duas Taças de Espanha, conquistadas em 1912 e 1995, esta última com Iglesias no banco, que rapidamente desapareceu do relvado durante os festejos, pois o protagonismo não era para ele, mas que voltou para mostrar a taça aos adeptos.
“A derrota é mais humana”, concedeu ao jornalista na mesma entrevista. “Às vezes ouves essas frases banais: ‘Gosto de ganhar até nos treinos’. O que gosta de perder é um tonto, mas em toda a disputa há vencedores e perdedores. O mundo não se governa unicamente pelos sentimentos dos que se dizem ganhadores natos. Se fosse assim haveria que acabar com o Ruanda e com todos os povos da terra que, por desgraça, são perdedores.”

Iglesias durante a curta passagem pelo Real Madrid, o último trabalho da carreira
Tony Marshall - EMPICS
Em maio de 2016, o homem que lhe fez essa entrevista escreveu no mesmo jornal, por ocasião de uma homenagem do Riazor (em cujas bancadas nem sempre foi consensual), um artigo de opinião. Xosé Hermida descreveu Iglesias, que até ali contava apenas com um par de promoções à 1.ª Divisão, como o símbolo maior do Superdepor. “[Era] um filósofo rural que ocultava a sua astúcia atrás de um disfarce do homem do campo. Abominava o divino e proclamava que a sua função não era mais do que meter os melhores jogadores no sítio natural. Quando outros se pavoneavam adornando-se de retórica, Arsenio não fazia mais do que retirar-se importância. O seu discurso lacónico alcançava esse ponto exato onde se fundem a simplicidade e a profundidade. Como quando lhe pediram que definisse o futebol e despachou isso com duas palavras: ordem e talento.”
Como futebolista, uma carreira que se estendeu entre 1951 e 1966, Arsenio Iglesias vestiu as camisolas de Sevilha, Granada, Oviedo, Albacete e, claro, Deportivo. O primeiro trabalho como treinador foi na segunda equipa do grande clube da Corunha, por onde passou em três ocasiões. Essa outra carreira dentro do futebol levou-o por outros clubes como Hércules, Zaragoza, Burgos, Elche, Almería, Compostela… e Real Madrid, onde substituiu Jorge Valdano. “Ninguém pode negar-se a uma oferta deste clube”, disse então, com 65 anos, talvez ainda com assuntos por resolver com um emblema pelo qual tinha simpatia e por quem chegou quase a jogar, como contou Xosé Xermida na ressaca da morte daquele ícone contracultural.
Mas chegou numa tormenta merengue, uma crise cíclica, e foi um desastre que durou apenas 19 jogos, os derradeiros da carreira, nos quais o Santiago Bernabéu e a imprensa lhe morderam a serenidade. “Como disse a rainha de Inglaterra, este é um annus horribilis. Não sei falar como ela, mas essas palavras dizem-me algo”, chegou a dizer antes de uma partida. O Real Madrid falhou a classificação para a Europa nessa temporada 1995/96 e Arsenio Iglesias, que seria substituído por Fabio Capello e que chegou a ser visto por diretores a chorar e destroçado depois de um jogo (“quero morrer”, terá dito ao presidente Lorenzo Sanz), decidiu aí colocar um ponto final na vida de treinador. Mesmo no futebol dos anos 90 que ainda flertava com o amadorismo, Arsenio Iglesias era um homem fora de época.
Este aldeão que não era tonto, como chegou a dizer, nunca duvidou que os futebolistas eram muito mais importantes que ele. “Se eu ficar doente e não for ao Bernabéu, não acontece nada. Agora, se não fossem Mauro Silva, Rekarte ou Bebeto, estou seguro que íamos acusar isso”, disse certa vez, em 1993. Admirável é também a forma como os seus ex-jogadores falaram dele em algumas entrevistas, o que embelezam e dão robustez a este personagem lendária do futebol espanhol. Bebeto, na hora da morte do treinador galego, recorreu às redes sociais.

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“Escrevo estas linhas com o coração partido”, publicou nas últimas horas o internacional brasileiro, campeão do mundo em 1994, no Instagram. “Foi mais do que um treinador para mim. Hoje [sexta-feira] deixou-nos Arsenio Iglesias, um pai que ajudou muitíssimo a mim e ao meu amigo Mauro Silva quando aterrámos na Corunha. Foi-se o grande artífice do Superdepor. Uma figura que vai além do mundo do futebol. Toda a Corunha deve estar a chorar, como estamos eu e a minha família, porque partiu uma das melhores pessoas que conheci neste mundo”, desabafou o brasileiro, cujo nome e número são exibidos num provador da loja oficial do Deportivo no Riazor.
“Por tantos ensinamentos, por tantos momentos partilhados e por tanto que vivemos, obrigado, Arsenio. Estarei eternamente agradecido. (...) Adeus, Arsenio. Boa viagem. Descansa em paz com Jesus. Permanecerá sempre nos nossos corações.”
O povo saiu à rua para saudar o homem que era como eles, que semeou as gloriosas sementes para o que finalmente aconteceu em 2000. O corpo de Arsenio Iglesias descansa numa capela do Estádio Riazor, com uma bandeira do Deportivo por cima. Há histórias que são eternas, belas e decentes, impossíveis de beliscar por um penálti falhado quando não havia tempo nem para respirar.