Há quem tenha a capacidade de marcar golos aparentemente do nada, criando do vácuo uma oportunidade, numa nesga de espaço um motivo para levar a bola à baliza. Mas, em geral, um golo é trabalho de mais do que um cidadão. Entre 2010 e 2013, num dos seus períodos mais prolíficos, Cristiano Ronaldo contou com ajuda de luxo para ir abocanhando recordes de golos no Real Madrid, com José Mourinho no banco. Mesut Özil era então o distribuidor preferencial, o empregado de mesa de bandeja de ouro nos pés, sempre pronto a servir.
A coisa funcionava mais ou menos assim: o alemão assumia um canto e Ronaldo saltava mais alto que todos e marcava; o alemão rompia linhas de passe pela direita e dava a bola redondinha a Ronaldo ou o alemão percebia quase telepaticamente as desmarcações do português e fazia o passe mortal. Nas três épocas completas em que coincidiram no Santiago Bernabéu, de 2010 a 2013, Cristiano marcou 53, 60 e 55 golos. Özil fez a assistência para 27 destes remates certeiros. Foi o melhor assistente da La Liga nesse trio de temporadas.
Özil, nascido em Gelsenkirchen, na Alemanha, filho de pais turcos do contingente dos gastarbeiter, chegados ao país após a II Guerra Mundial em programas estatais para trabalhadores estrangeiros, parecia então destinado a tudo. Mas a saída do Real Madrid significou um paulatino desvanecer na escala de importância do futebol europeu, entre polémicas e relações difíceis com treinadores, com circunscritos pontos altos pelo meio, como foi a vitória no Mundial de 2014 com a Alemanha e os 7-1 ao Brasil pelo caminho. Esta quarta-feira, sem as honras que a certa altura lhe pareciam devidas, sem farra ou choros ou atenção maior, com um simples post nas redes sociais, após três épocas em que mal jogou na Turquia, Mesut Özil usou os mesmos pés de veludo com que calcorreava o campo para dizer adeus ao futebol.
Ronaldo a agradecer mais um passe certeiro do alemão
PIERRE-PHILIPPE MARCOU/Getty
“Depois de pensar cuidadosamente, anuncio a minha retirada imediata do futebol”, começou por escrever o médio de 34 anos, que fala das lesões sofridas nos últimos meses como fator essencial para dar como terminada a carreira: “Ficou muito claro para mim que era hora de deixar o maior palco do futebol”.
A chegada de Carlo Ancelotti ao Real Madrid pressupôs um possível antes e depois para Mesut Özil. Admitiria publicamente que não havia sentido nem do italiano nem da direção do clube, que ajudou a sagrar-se campeão espanhol em 2011/12, em pleno guardiolismo em Barcelona, a confiança suficiente para continuar em Madrid e por isso decidiu sair para o Arsenal. Cristiano Ronaldo não gostou. “A saída dele é uma péssima notícia para mim. Era o jogador que conhecia melhor os meus movimentos em frente à baliza. Estou chateado”, escreveu o “As” em 2013, relatando uma suposta conversa entre o goleador e Fábio Coentrão.
Em Londres, mesmo ajudando o Arsenal a conquistar três Taças de Inglaterra e de ter repetido a distinção de jogador com mais assistências da liga, começaram os problemas com lesões e a inconstância em campo. Na fase final, a relação com Unai Emery estilhaçou, com relatos de insultos do alemão ao treinador espanhol após a derrota da equipa na final da Liga Europa de 2018/19. Criticaria também publicamente o clube depois deste se desmarcar das suas declarações contra o tratamento ao povo uigur por parte da China. Na época seguinte, Özil mal jogou, nem sequer foi inscrito e em janeiro de 2021 mudou-se para a Turquia natal dos seus pais, reforçando o Fenerbahçe a custo zero.
Özil deixou o Arsenal em janeiro de 2021
Chloe Knott - Danehouse
Por essa altura já havia deixado a seleção alemã, logo após o Mundial de 2018, não sem polémica, acusando a federação do país de “racismo” e “falta de respeito”, num desencontro que começou depois de Özil e Ilkay Gundogan, ambos de origem turca, terem tirado fotografias ao lado de presidente Recep Tayyip Erdogan, ato visto como de apoio ao homem forte do regime de Ancara, no poder desde 2003, primeiro como primeiro ministro e agora como Presidente da República. Criticado no país onde nasceu, Özil negou qualquer conotação política das imagens com Erdogan e bateu com a porta, abandonando a seleção com apenas 29 anos.
A emocional chegada a um país com o qual mantinha uma forte ligação e ao clube que, disse, apoiava em miúdo, não significaria um regresso aos bons momentos e a passagem pela Super Lig turca, primeiro no Fenerbahçe e depois no Basaksehir, emblema ligado ao regime, redundou em desilusão. Aos 34 anos, idade em que por estes dias muitos jogadores ainda estão no seu auge, Özil diz o adeus definitivo. “Foi uma caminhada incrível cheia de momentos e emoções inesquecíveis. Quero agradecer aos meus clubes - Schalke 04, Werder Bremen, Real Madrid, Arsenal, Fenerbahçe e Basaksehir”, escreveu também na mensagem de despedida, onde agradeceu também à família e amigos mais chegados, por terem estado ao seu lado “nos bons e maus momentos”. Que foram muitos. Ambos.
Agora, revela, é tempo de se dedicar à mulher Amine e às duas filhas, Eda e Ela, prometendo dar notícias de tempos a tempos através das redes sociais. Se tudo tivesse corrido como esperávamos algures em 2010, hoje seria um dia insustentavelmente triste para o futebol, uma efeméride para recordar de tempos a tempos. As circunstâncias atenuaram o peso do adeus, mas os pés de Özil e a forma como estes tratavam a bola farão para sempre parte da nossa memória coletiva.