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Futebol internacional

A imperfeita inspiração de Bruno Fernandes e as memórias dos tempos do Boavista que ajudam a explicar o futebolista

Depois do 7-0 em Anfield Road, choveram nos ombros de Bruno Fernandes críticas e questionamentos. Ian Wright e Gary Neville foram particularmente duros com o futebolista português, mas ele, habituado às lengalengas de Antonio di Natale e Abílio Novais, o seu treinador nos juniores do Boavista, voltou a levantar-se e a ser especial no jogo contra o Betis. “Ele foi o melhor jogador no campo e mostrou a personalidade dele. Foi brilhante.”

Hugo Tavares da Silva

Matthew Peters

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Os puxões de orelhas, que sempre misturam admiração, não são de agora. Qualquer dia faz 10 anos daquelas palavras de Antonio di Natale, uma lenda da Udinese e então colega de balneário: “O Bruno Fernandes irrita-me porque é jovem e é o que tem mais qualidade entre todos nós. Tem uns pés incríveis, mas às vezes acomoda-se durante os jogos”.

Talvez por isso, pelos di Natales da vida ou por todo aquele futebol inevitável e candidato ao que é fabuloso, foi de Udine para a Sampdoria, voando depois para o Sporting, onde foi tão feliz que ganhou o direito a ser uma das coqueluches do Teatro dos Sonhos de Manchester.

Também Abílio Novais, treinador de Fernandes nos juniores do Boavista, contribuiu com o seu grãozito de areia. “Uma vez meti-o a chorar”, contou à Tribuna Expresso, em 2019. “Foi um jogo qualquer, talvez com o Varzim, aqui no Bessa. Era daqueles dias em que ele não passava a bola a ninguém. Gostava de fazer tudo. Estava com isca, como a gente diz”, ia lembrando com genica o ex-futebolista, campeão pelo FC Porto em 1989/90. No intervalo, a palestra foi exclusiva para o menino da Maia. As lágrimas começaram então a correr-lhe pelo rosto. “Agora vai lá para dentro e vê lá se começas a jogar direitinho com os teus colegas”, disse-lhe o técnico para travar as lágrimas e sacar-lhe algo especial das botas e entranhas. “Fez uma segunda parte excecional.” De acordo com aquele seu treinador, a ética de trabalho do médio era já surpreendente e admirável.

Talvez todas essas pequenas lições da formação de um futebolista tenham sido úteis para agora superar esta semana difícil. No domingo, o Manchester United visitou o campo do maior rival do país – do planeta, na verdade – e foi esmagado (0-7). A equipa chegava num bom momento, depois do triunfo na Taça da Liga e com a aproximação ao céu da Premier League onde jogam entre as nuvens Arsenal e Manchester City. Bruno Fernandes, o homem que leva a braçadeira na ausência de Harry Maguire, foi um dos alvos dos media e de populares comentadores e entendedores do jogo, como Ian Wright e Gary Neville, lendas de Arsenal e Manchester United.

Matthew Peters

“Isto é o capitão! Isto é o indivíduo que é suposto liderar por exemplo e olha como ele está atuar”, ia vociferando Wright enquanto apontava para um ecrã, perseguindo o insatisfeito Bruno Fernandes, que, enquanto a bola estava longe, trocava argumentos com Alisson e depois com Rashford. A certa altura, num painel onde também estava Michael Owen, perguntaram ao antigo avançado dos gunners como seria ter um colega assim. “Isso nunca aconteceria, não penso que teríamos um jogador assim no balneário”, referiu, sem meias palavras, queixando-se das constantes lamúrias do futebolista do United.

Gary Neville, que usou muitas vezes a braçadeira de capitão dos red devils, foi outro dos insatisfeitos que visaram o português. “Penso que uma parte do seu comportamento, na segunda parte, foi uma vergonha.” O United sofreu seis golos nos segundos 45 minutos. O ex-lateral referiu ainda que Bruno Fernandes foi “terrível”, visando também a defesa e os restantes companheiros, “que não apareceram”.

Foi uma daquelas tardes em que tudo corre mal, algo que levou a um desligamento grupal, obviamente difícil de compreender para quem está do lado de fora. Para além do fraco rendimento desportivo, Bruno Fernandes ficou ainda associado a um toque com a mão num árbitro auxiliar. A tal conversa de 2019 com Abílio Novais, o treinador dos juniores do Boavista, abordou ainda esse lado: como era Bruno Fernandes quando não ganhava? “Era ranhoso”, riu-se durante a resposta. “Era aziado como tudo. Mas no bom sentido, não é?”

O chicotear coletivo nas costas do internacional português sacudiu da toca Erik ten Hag, o treinador, e Marcus Rashford. Ambos defenderam o futebolista formado no Boavista e no Pasteleira. “Toda a gente tem de aprender, eu tenho de aprender, ele tem de aprender também porque é inteligente”, comentou o técnico neerlandês na véspera do jogo com o Betis, a contar para a primeira mão dos oitavos de final da Liga Europa.

“Ele é uma inspiração para toda a equipa, mas não é perfeito, toda a gente comete erros”, continuou. “Estou muito feliz por ter o Bruno na equipa e que ele seja o capitão quando o Maguire não está no campo. Ele tem sido brilhante esta época, tem um papel muito importante, estamos na posição em que estamos porque ele dá energia à equipa, corre muito a grande intensidade, mas também da maneira certa.”

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Rashford disse adorar jogar com o português. “Ele tem sido um bom líder para nós mesmo quando não era capitão, o que é sempre um bom sinal”, refletiu. “Ele ajudou outros a tornarem-se melhores líderes. Ninguém é perfeito e às vezes queres tanto algo que acabas a fazer coisas que são um pouco fora de tom.”

E acrescentou: “Estou 100% com o Bruno, penso que como equipa devemos apoiá-lo porque é um jogador fantástico e, como o treinador disse, não estaríamos nesta posição se ele não estivesse a jogar por nós”.

A situação não é nova para Fernandes. E o desfecho também não. O que fez ele na Liga Europa, no Old Trafford, quatro dias depois? Golo, assistência e distribuiu uma influência enorme no 4-1 ao Betis.

Erik ten Hag delirava num contido contentamento. “Ele foi o melhor jogador em campo e mostrou a personalidade dele”, começou por dizer na ressaca do duelo no europeu contra William Carvalho e companhia. “Ele jogou um pouco mais atrás esta noite, foi brilhante. Foi um líder a fazer jogar a partir de trás e a controlar o ritmo do jogo. Fez muitos bons passes entre linhas e a partir daí criámos oportunidades. Ele liderou a equipa desde o primeiro minuto com o seu jogo, com a bola, manobrando o ritmo do jogo e marcando um golo, por isso estou feliz.”

Do Porto até Manchester são quase 24 horas de carro, por isso as lições de Abílio Novais e de outros em tenra idade estão mais à mão no pensamento e na útil memória daqueles tempos que viveu no Bessa, há sensivelmente 11 anos. A história às vezes repete-se e Bruno Fernandes lá vai escrevendo a sua como ele quer.