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¿Qué tocas, bobo? Weghorst mexeu na placa “This is Anfield”, o United perdeu 7-0 e ele explicou-se

Antes da tragédia vivida pelo Manchester United no relvado do Liverpool, no domingo, o avançado neerlandês tocou no cartaz “This is Anfield” e atiçou a mitologia e o lado fabuloso do futebol. A história daquela placa remonta aos tempos de Bill Shankly, sendo que aquele glorioso rectângulo metálico acabou por cair no esquecimento no final do século XX. Em 2012, Brendan Rodgers devolveu-o à parede para onde todos olham com assombro. “A nostalgia à volta deste clube é imensa”, explicou na altura

Hugo Tavares da Silva

Michael Regan

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No futebol, o divino não é uma brincadeira. Domar uma bola e ter 11 pessoas coordenadas e em harmonia são já desafios que bastem para arranjar mais problemas. O que não é palpável importa. As inúteis estatísticas que se erguem como gigantes impossíveis deixam de ser inúteis. Há medos e reticências em certos palcos. Testemunha-se o peso da história, o respeito pelo que foi. Enfim, o místico é muitas vezes a camisola 10 mais decisiva num relvado. “O futebol é isto”, certo?

Wout Weghorst , o pobre neerlandês que injustamente ficou mais conhecido pelo “¿que mirás, bobo?” de Messi do que pelos dois belos golos à Argentina nos quartos de final do Campeonato do Mundo, foi retroativamente um dos protagonistas do clássico dos clássicos em Inglaterra. O Manchester United chegava a Anfield Road com o orgulho envaidecido, depois da conquista da Taça da Liga e da boa série de resultados, tão boa que alguns já magicavam a corrida ao título como viável.

Problema: no túnel de acesso ao relvado, quando Virgil van Dijk ia tocar no mítico cartaz “This is Anfield”, Weghorst fez o mesmo. Reza a lenda que brincar com o divino não é avisado, mas, focando-nos no que é térreo e possível, não foi nenhuma brisa improvável que no domingo empurrou as bolas para a baliza de David de Gea. Foram sete, seis na segunda parte. Bis de Darwin Núñez, bis de Cody Gakpo, bis de Mohamed Salah.

O United era assim humilhado no campo do maior rival do Reino Unido. Seguir-se-ia a tradicional caça às bruxas. Erik ten Hag não ajudou a equipa e prolongou a agonia por demasiado tempo, disseram uns. Bruno Fernandes, o capitão, queixou-se mais do árbitro e dos colegas do que jogou, alertaram outros. Wout Weghorst tocou no cartaz “This is Anfield”. What? Heresia.

Depois do episódio dramático, o avançado recorreu às redes sociais para se explicar. Afinal, a ideia não era provocar o Liverpool, muito menos atiçar os deuses de um mundo oculto e paralelo, mas sim contrariar Virgil van Dijk. Como companheiro de seleção, o futebolista do United sabia que o defesa tocava sempre naquele cartaz, então, segundo o próprio, tentou evitar que o compatriota lhe tocasse. No fundo, o propósito era meter-se com o amigo ou afetar a rotina. Quando surgiram conversas mencionando que era adepto do Liverpool desde pequeno, teve de explicar que o seu coração só pertencia ao Twente. Noventa minutos depois, aquele arrojado e alegadamente insípido gesto valeu-lhe um terremoto na consciência.

A história do “This is Anfield”, no entanto e sem bobices, vale a pena ser conhecida. Os arquivos referem que aquela tremenda e singela comunicação surgiu nos tempos de Bill Shankly. A sugestão partiu de um senhor que cuidava do campo e a frase original mencionava “Bem-vindos a Anfield”. Shankly rejeitou aquela simpatia toda. “Não vamos ter isso, não estás aqui para passar um bom bocado, não estás aqui para ter um dia bom, vamos pôr ‘This is Anfield’”, conta um site especializado nos reds.

“[O cartaz] está ali para lembrar os nossos rapazes por quem jogam e para lembrar o adversário contra quem estão a jogar”, explicou a certa altura Shankly.

Liverpool FC

Aquele pedaço metálico e épico, à venda na loja do clube por 15 libras, permaneceu naquele túnel entre 1974 e 1998. Nesse período, os futebolistas de Anfield Road conquistaram quatro Taças dos Campeões Europeus, duas Taças UEFA e 10 edições da Liga Inglesa (são 19 no total). A glória era imensa, assente certamente em bons jogadores e numa mentalidade especial, mas os anjos e ventos que abraçam os clubes nunca são subestimados.

Por acreditar que o legado era tão importante, em julho de 2012, Brendan Rodgers decidiu repor a tradição e colocar junto ao betão o tal pedaço de eternidade. “Quando vens para um clube de futebol, necessitas de ter a sensação real de passado, presente e futuro”, disse então. “E a nostalgia à volta deste clube é imensa. Eu senti apenas que isto era um símbolo do que durante muitos anos foi o Liverpool. O cartaz foi retirado em 1998, mas estava lá desde 1974 e aquele período de sucesso foi fenomenal. Por isso, para mim é um marco do Anfield de antigamente. Estamos na era moderna, mas eu penso que é muito importante lembrar o grande passado deste clube de futebol e o cartaz ‘This is Anfield’ é uma parte enorme disso.”

Apesar da expectativa, o clube escorregou finalmente durante os últimos suspiros da era Rodgers e falhou a conquista do campeonato, que fugia desde 1990, mas quem sabe aquela decisão do treinador tenha funcionado como profecia para o que aconteceria com Jurgen Klopp.

Com o alemão, o Liverpool conquistou a sexta Liga/Taça dos Campeões Europeus, foi campeão do mundo e voltou a celebrar a conquista da Liga Inglesa, a primeira Premier League da história da instituição. Só quando os troféus começaram a pingar no museu do clube é que Klopp autorizou os futebolistas a tocarem na placa. Não era uma tradição, mas passou a ser durante os difíceis primeiros tempos do seu mandato. Gakpo, por exemplo, chegadinho em janeiro, também tocou no cartaz antes do clássico de domingo.

Quando os seus dedos sentiram a textura do tal pedaço metálico cheio de memória e lembranças, certamente que Weghorts não tinha no pensamento atear o fogo que vive dissimuladamente naqueles corredores, mas fica a lição sobre as narrativas fabulosas que os adeptos não aceitam negociar.

Para além dos golos e dos dribles, o futebol vive sobretudo de histórias e lendas. Os clubes são isso.