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“Não é a 3.ª divisão, é o Deportivo”: por amor, Lucas Pérez desceu duas divisões, abdicou de dois milhões e pagou metade da transferência

Por amor ao clube de infância, o avançado espanhol, de 34 anos, abandonou o Cádiz, da 1.ª divisão, e assinou até 2026 pelo seu Deportivo da Corunha, onde já tinha jogado noutras duas ocasiões, numa delas conquistando a admiração de Arsène Wenger e a contratação para o Arsenal. “Não sou estrela. Sou o Lucas, o mesmo de Monelos, o mesmo, o mesmo, o mesmito”

Hugo Tavares da Silva

Deportivo

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Não costuma haver mais verdade do que na infância. Até os sonhos ignorantemente tenros e suaves como o tecido mais tenro e suave parecem realistas. Talvez nem importe se o são, aliás, apenas são. Existem. Pelo menos até o cinismo entrar, até a vida adulta berrar à porta, impaciente. Há muitos anos, em muitos dias e tardes da década de 90, um menino de sonhos tenros e suaves jogava à bola nas ruas da Corunha, nos becos e segredos do bairro de Monelos, chutando aquele objeto redondo e mágico contra a parede, trocando-o com os amigos, inventando jogadas, acumulando glórias e aprendizagens. E celebrando golos, claro, que são como amores. Quando os heróis lhe apareciam pela frente, como Mauro Silva, Fran ou Diego Tristán, os olhos brilhavam e a assinatura deles era um tesouro.

Agora, esse menino é Mauro Silva, Fran e Diego Tristán para outros meninos e meninas. Lucas Pérez decidiu entrar e ser movimento nas palavras de Javier Marías, que um dia disse que o futebol é "a recuperação semanal da infância”. Aos 34 anos, o avançado decidiu abandonar o Cádiz, da 1.ª divisão, renunciando a dois milhões de euros na conta bancária, descendo duas divisões e pagando metade da transferência para jogar no seu querido Deportivo, o clube pelo qual chorou como um homem normal, no Riazor, em junho, quando falhou a subida à 2.ª divisão contra o Albacete.

Não poderia haver metáfora maior. Enquanto o mundo estava em suspenso e meio incrédulo a ver a apresentação de Cristiano Ronaldo pelo Al-Nassr, que supostamente vai pagar 500 milhões pelo futebol e imagem do português nos próximos anos, Lucas Pérez mostrava-se perante cerca de 7.000 adeptos no Riazor, cantando uma carta de amor ao futebol, chutando para longe os desanimos de quem apenas vê negócio no futebol.

“[Isto] não é a Primera RFEF [3.ª divisão], para mim é o Deportivo”, tratou de aclarar, no fim da tarde de terça-feira, já com o contrato assinado até 2026. “De dinheiro não falo, se falo de dinheiro sinto-me vazio, e falo pessoalmente e não da sociedade, não interpretem mal as minhas palavras. A única coisa que faço é vir para casa e oxalá que se possam dar os meus últimos anos de carreira e que sejam bons, e que o Deportivo se aproveite disso. Não fico preso aos contratos. No momento em que o Deportivo acreditar que não sou válido, podem falar comigo.”

Na próxima jornada, em vez de jogar contra o Valencia, no Mestalla, Lucas Pérez terá pela frente o Unionistas de Salamanca. O Depor, que já foi Super Depor na Liga dos Campeões e até campeão da La Liga em 1999/2000, ocupa a quarta posição do Grupo 1 do escalão, apenas a quatro pontos da liderança. Os campeões dos dois grupos garantem a promoção imediata ao segundo escalão, enquanto as quatro equipas que se seguem de cada série envolvem-se num play-off.

“Sei que tenho pressão. Está tudo bem. Eu quero-a, gracias. Se fosse por mim, jogaria agora mesmo. Levo muitos anos nisto e já joguei no Riazor, eh?”, alertou, lembrando as outras duas passagens por ali. Desenvolvido nos escalões de formação de Órdenes, Atlético Madrid e Rayo Vallecano, Pérez jogou no Deportivo pela primeira vez em 2014/15, emprestado pelo PAOK, depois de algumas temporadas na Ucrânia, com a camisola do Karpaty. O sonho de menino apertou-lhe de felicidade o estômago aos 26 anos. Depois ficou em definitivo no gigante da Corunha, marcando muitos golos (17 em 34 jogos), e aí mereceu a atenção de Arsène Wenger, que o levou para o Arsenal. Mais tarde, o francês pediria desculpa publicamente por ter contratado o espanhol para este jogar tão pouco. Quem sabe para o recompensar, os gunners emprestaram-no ao Deportivo por uma temporada, talvez assim saciasse o coração ferido.

Stuart MacFarlane

Aquele regresso a casa foi uma tragédia. O Deportivo, que viu três treinadores no banco, um deles Clarence Seedorf, acabou por descer de divisão. Os portugueses Bruno Gama, Gil Santos e Luisinho estavam nesse plantel. A vida do então triste futebolista, que pensou muito naquele fatídico dia, prosseguiu em Inglaterra, no West Ham, mas nos arquivos deixou uma marca importante: 32 golos e 20 assistências em 93 jogos na 1.ª Divisão pelo Deportivo da Corunha, agora treinado por Óscar Cano, que em maio deu uma longa e sumarenta entrevista à Tribuna Expresso.

Depois de passagens por Alavés, Elche e Cádiz, mais um regresso a casa, com uma farda de treino e de jogo que reluzem como lhe reluziam os olhos quando via os seus heróis de infância enfiados nela, ou quando, nas ruas da Corunha, se imaginava a marcar golos no Riazor.

“Quando beijo o escudo nas celebrações não estou só a beijar o do clube, estou a beijar o escudo da minha cidade, onde vivi muito menos [tempo] do que teria gostado”, desabafou, em março de 2016, numa entrevista ao site da Liga Espanhola. O jogador abandonou a cidade quando tinha 16 anos. Foi nesta conversa que se deteve a refletir sobre os ídolos que navegam os pensamentos da juventude.

“Adoro que os miúdos venham ter comigo e peçam autógrafos, porque me recorda a mim quando era pequeno e via o Fran ou o Mauro Silva ou o Diego Tristán. Agora param-me na rua e vejo nos olhos deles o mesmo que eu via faz tempo”, explicou.

O futebolista chegou a ser assobiado pelos adeptos do Cádiz por, numa homenagem à infância (para alguns a melhor pátria que existe), ter expressado o desejo de sair para um futebol menos famoso. Segundo o “El País”, depois dos golos entrarem, saíram da toca presidente e companheiros para o defenderem. Afinal, assobiavam alguém que queria jogar no clube do coração, que é pelo que tanto salivam os seguidores de qualquer clube do mundo.

“Cadistas, cheguei há um ano com o objetivo claro da salvação e conseguimo-la”, escreveu Lucas Pérez nas redes sociais, no último dia do ano. “Quero agradecer à afición, ao clube e à cidade o carinho que me mostraram durante este tempo. Vou cumprir um sonho. Vou sempre desejar-vos o melhor, vocês merecem.”

A conferência de imprensa de apresentação do jogador começou com os agradecimentos e as loas do presidente, Antonio Couceiro, que não poucas vezes olhou para o jogador como se olha a primeira paixão: “Quero agradecer-lhe pelo altíssimo compromisso que demonstrou com o nosso clube, demonstrado através de uma vontade decidida e firme de vir. Por outro lado, por fazer uma renúncia pessoal muito importante desde o ponto de vista económico. Todos sabemos que o Lucas é um jogador de 1.ª divisão e que podia continuar a jogar aí não só este ano, mas nos próximos anos”.

Lucas Pérez num Real Madrid-Deportivo, em 2018

Lucas Pérez num Real Madrid-Deportivo, em 2018

Anadolu Agency

Os sorrisos entre presidente e atleta iam construindo uma torre vertical e infinita de cumplicidades. Lucas Pérez, equipado como a elegância ordena, parecia um menino, o tal menino de Molinas que devia aguardar com esperança e ternura cada domingo para entrar no Riazor. Enquanto os rios de gente iam entrando no estádio para o ver, o avançado que outrora vestira a camisola 9 do Arsenal dizia estar muito feliz.

“Venho para uma situação complexa. Comentei com vários companheiros do Cádiz que venho para o projeto mais difícil da minha carreira”, começou por dizer, merecendo um aceno favorável de cabeça e um não tão fugaz sorriso do presidente. Quando um jornalista tocou no passado recente e na palavra “estrela”, Lucas Pérez reagiu.

“Antes de nada, não sou estrela”, contestou. “Sou o Lucas, o mesmo de Monelos, o mesmo, o mesmo, o mesmito. O que acontece é que agora tenho um pouco mais de branco por aqui [afaga a barba curta] do que noutras épocas, está claro. É experiência, como digo. A única coisa que quero é ser feliz, voltar a jogar na minha casa, é o que quero há alguns anos. Antes não foi possível, por uma ou outra razão, mas foi possível agora. O Deportivo está a quatro pontos do primeiro. O que temos de fazer é trabalhar muito.”

A seguir, tocou o violino que amolece a orelha de qualquer amante de um clube ou de uma instituição ou de um desporto ou da Humanidade. “Isto não é a equipa do Lucas, é a equipa do Deportivo da Corunha, da cidade, de muita gente, de muitos miúdos, de muitos avós, de muitos pais e mães. Com toda a expectativa que agora está a gerar isto, oxalá que vá para o campo. Não venho salvar ninguém. Só venho ajudar. Ajudar e tentar. Não sou salvador. Não pensem que porque venho eu ou o Messi amanhã vamos subir de divisão. Não, não. Vamos tentar estar tranquilos. Esta euforia que temos vamos mostrá-la nos jogos que restam e [procuraremos] conseguir o objetivo.”

O novo camisola 7 foi recebido no Riazor, tocou na bola, pisou o “verde”, como diz, o tal que costuma falar verdade tal como fala a infância, fez uma vénia e sorriu como se dissesse o que disse um pouco antes: “Somos um clube muito grande. Estando bem ou mal, aí estão as pessoas”.