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Futebol internacional

Luís é analista na seleção da Tailândia. Foi jogar à Indonésia e diz que a polícia montou uma emboscada para adeptos atacarem o autocarro

Nem três meses depois da tragédia no estádio de Malang, na Indonésia, onde mais de 130 pessoas morreram, a seleção da Tailândia visitou o país para um jogo da Taça do Sudeste Asiático, o primeiro com público de novo nas bancadas. A caminho do estádio, a (pouca) polícia seguiu uma rota diferente e encontrou entre 60 e 70 adeptos que partiram os vidros do autocarro que transportava a equipa tailandesa, abrindo a porta e cuspindo no motorista. Luís Viegas, que trabalha na seleção da Tailândia, conta as “coisas medievais” que o fizeram temer o pior e achar como “tudo foi armado”

Diogo Pombo

Federação Tailandesa de Futebol

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Carros da polícia virados do avesso, queimados, amolgados e de vidros partidos, a repousarem de lado no relvado. Pedaços de roupa e calçado deixados para trás, à balda. Uma neblina de fumo a pairar no ar do estádio Kanjuruhan, em Malang, na Indonésia, com as bancadas a rodearem um cenário caótico, de ali ter acontecido uma tragédia. A 1 de outubro, mais de 130 pessoas morreram e centenas mais de lá saíram com ferimentos quando o fim do jogo entre o Arema e o Persebaya Surabaya desatou uma invasão de campo e a subsequente anarquia que durou várias horas.

A polícia não poupou nos disparos de gás lacrimogéneo para as bancadas, algo proibido pela FIFA, com as saídas do recinto fechadas. Fugindo para o relvado ou tentando trepar vedações, milhares de adeptos (seriam cerca 42 mil, apesar da capacidade oficial rondar os 38 mil) provocaram uma debandada, pisando-se, encurralando-se e eventualmente entrando em conflito com as autoridades. Os jogadores das duas equipas fugiram para o balneário, onde se refugiaram durante horas. Um deles, o luso-guineense Abel Camará, do Arema, teve pessoas a morrerem ao seu lado na cabine.

Luís Viegas sabe-o. Fácil era que o soubesse, houve relatos da tragédia noticiados em várias partes, mas do jogador ouviu uma narração direta de quem viveu a tragédia de Malang nas suas entranhas. “Ninguém imagina as coisas que ele contou, de ter ao lado pessoas mortas no balneário e ver aquela gente a querer atacar os jogadores”, diz sobre a “descrição de tudo”, incluindo pedaços cénicos que prefere nem recordar, contados por Abel Camará quando aceitou o convite para ir “passar uns dias” a Banguecoque e “descontrair”. O amigo aceitou e ficou uma semana na capital da Tailândia após a tragédia.

À cabeça do analista de jogo desaguou um pico dessas recordações perturbadores quando, sentado na dianteira do autocarro que transportava a seleção da Tailândia, viu um aglomerado “de 60 ou 70 pessoas” no meio da estrada, de costas voltadas.

A estranheza já o invadira há algum tempo. Do hotel ao Utama Gelora Bung Karno, o recinto do jogo, era uma viagem rápida de 10 minutos de carro, comprovada na véspera para a feitura do rotineiro treino no relvado. Na quinta-feira, porém, o autocarro com a comitiva da seleção tailandesa demorara quase 45 minutos a alcançar as imediações do estádio onde o pequeno maralhal de adeptos bloqueou a rota de alcatrão. Muitos encapuçados, de boné, lenços a taparem a cara ou óculos escuros, esticando os ofensivos dedos médios das mãos, Luís Viegas viu-os então a cercarem o autocarro. “E fiquei perturbado.”

Arreliado mais ainda pelos recentes relatos de Abel Camará e admitindo o peso da sugestão na sua mente, relata os “cerca de dois minutos” em que o autocarro, inexplicavelmente, ficou parado como um antílope em pradaria africana. “Viraram-se de repente e começaram a atacar o autocarro. Eu estava na frente do autocarro, foi a zona mais atacada onde partiram vidros e chegaram a abrir a porta e a cuspir para cima do motorista”, descreve o analista, de 41 anos, pasmada com a agressividade que jamais vira desde 2014, quando chegou à Tailândia para trabalhar no Bangkok United. Depois de um par de anos nos Vietname, entrou na seleção da Tailândia em 2020.

A pacatez dos tailandeses, que nem após uma derrota por 7-0 na época de estreia do português no sudeste asiático deixaram de dizer “não faz mal, ganhamos no próximo domingo”, ou a calma dos vietnamitas quando esteve em Ho Chi Minh, onde “vão mais ao estádio, têm uma paixão muito grande e vibram muito”, contrastam com o que viu esta semana na Indonésia. Tão fresca que está a tragédia em Malang, de outubro - a segunda pior na história do futebol em termos de mortes, a seguir às, pelo menos, 300 mortes contadas no Peru, em 1964 -, que o pasmo de Luís Viegas acentuou-se ao ver o cerco dos indonésios ao autocarro.

O Indonésia-Tailândia contou para a fase de grupos da Taça do Sudeste Asiático e “era o primeiro com público de volta ao estádio”, porque o governo do quarto país mais populoso do mundo (e onde o fervor pelo futebol fica a dever, apenas, à febre por badminton) retomou, entretanto, o campeonato à porta fechada.

Federação Tailandesa de Futebol

Com a tragédia a puxar o foco para a insegurança nos estádios indonésios, Luís Viegas pasmou ainda mais quando o cerco ao autocarro lhe pareceu premeditado não só pelos adeptos. “Quando saímos para o jogo, só temos uma espécie de carro-batedor na frente do autocarro e quando vamos a meio do percurso, sensivelmente 5 minutos depois de deixarmos o hotel, um dos nossos responsáveis apercebe-se que a polícia tinha ido por um caminho diferente. Questionámos o oficial local e ele não sabia porquê”, alega, criticando os dois minutos em que o veículo esteve parado e à mercê dos ataques dos adeptos: “A polícia sempre [a andar] muito devagar, no vídeo dá para ver como o carro já não tinha ninguém à frente e continuava parado. Foi claramente para nos intimidar.”

Ninguém se magoou, o episódio foi um susto e Luís até conta como os jogadores tailandeses se mantiveram algo tranquilos, “nem ficaram muito perturbados”. O jogo ficaria 1-1. Houvesse vitória da Tailândia e talvez o cenário no pós-encontro fosse outro, mas o português descreve como “já vieram os tanques, fomos escoltados por batedores da polícia armados com metralhadoras”. Coisas “medievais” de jogadores a serem transportados em veículos militares que “não diminuem” o sucedido, que são normalizadas no futebol indonésio e das quais ele já ouvira falar, por Abel Camará e outras vozes. “A polícia montar uma emboscada para o autocarro ser atacado pelos adeptos e estar parado quase dois minutos já é uma situação impensável”, critica.

Já no estádio, Luís Viegas queixou-se ao responsável da FIFA pela segurança, que partilhou a estupefação. Disse que ia “reportar tudo”, condenou a “situação inacreditável” e explicou que dera “um plano à polícia” indonésia no qual “mencionou que a estrada tinha de estar desimpedida”. A Federação de Futebol da Tailândia vai preparar uma queixa formal à FIFA porque, lamenta o português, “parece que as pessoas não mudaram depois da tragédia” de outubro. Na semana anterior, sem prejuízo da menor gravidade, o selecionador do Cambodja que foi jogar à Indonésia queixara-se de telefonemas a meio da noite para os quartos de hotel dos futebolistas. A polícia da Indonésia também anunciou que está a investigar o caso - o português riu-se quando soube.

O analista sentiu-se “completamente inseguro e à mercê”, confessa que começou a “pensar em muita coisa da vida” enquanto revia os episódios que Abel Camará lhe contara. Agora questiona o que acontecerá em 2023, quando é suposto a Indonésia acolher o Mundial de sub-20. Ou daqui por uns meses mais breves, caso a Tailândia e a seleção local saiam ambas da fase de grupos da Taça do Sudeste Asiático: assim dite o sorteio, poderá haver um reencontro nas eliminatórias da prova. “Eles têm de ser expostos porque isto é inadmissível no século XXI.”