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Futebol internacional

Deu três cuecas a Gattuso, enamorou Zidane e não queria estar do lado dos ricos: ascensão e queda de Fabián O'Neill, que morreu aos 49 anos

Os problemas com o álcool levaram a melhor sobre o ex-futebolista uruguaio, um mago que marcou dois golos contra Portugal no Campeonato do Mundo de sub-20, em 1993. Prometia muito mas, segundo o próprio, gastou a fortuna em “cavalos lentos” e “mulheres rápidas”. Antes de pendurar as botas aos 29 anos, O'Neill foi convocado para o Campeonato do Mundo de 2002, mas nem aí o ‘10’ foi feliz: uma lesão não lhe permitiu fazer qualquer minuto na seleção de Recoba e Abreu

Hugo Tavares da Silva

Tony Marshall - EMPICS

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Há sempre tardes e noites míticas nas carreiras dos futebolistas, daquelas que são lembradas sempre por alguém com uma memória admirável ou por alguém que nem a tem mas que a oferece misturando uma colher de magia. Existem também as histórias que pertencem a um qualquer livro de cabeceira dos deuses. Esta é uma delas: antes de o Cagliari visitar o campo do Salernitana, nos primeiros dias de 1999, Fabián O’Neill terá prometido a dois compatriotas, um deles Paolo Montero, que trataria de servir o prato da casa a Gennaro Gattuso – cuecas, túneis, berlindes por debaixo do arco-íris feito de pernas –, um jovem médio raivoso que era um honrado e comprometido soldado da causa defensiva.

O 10 do Cagliari, um uruguaio que acabaria por enamorar e emocionar os olhos de Zinedine Zidane nos treinos e jogos da Juventus, começou então o bailarico. Não se sabe se foi depois da primeira ou da terceira cueca, mas o então novato italiano declarou um sério “a próxima mato-te”. Os visitantes ganharam por 3-1.

Fabián Alberto O’Neill sobreviveu às patadas e desaforos de Gattuso, mas não resistiu à maldade que o alcoolismo lhe fez no corpo desde garoto e morreu no dia de Natal, aos 49 anos. A família confirmou a morte do ex-futebolista, que havia ingressado numa unidade médica de urgência no sábado, com uma hemorragia digestiva, informando-se ainda que não haveria velório. Luis Suárez e Álvaro Recoba foram alguns dos uruguaios a quem a bola obedece e obedecia que homenagearam O’Neill. “Obrigado pelo futebol”, escreveu o primeiro, que estará a caminho do Grêmio.

Basta ver como Fabián O’Neill corria e tocava na bola para a suspeita o ser cada vez menos: era sul-americano da ponta dos cabelos aos dentes das botas. Ao futebol deslumbrante que exibia juntou histórias bizarras ou tristes, que não deixam de explicar o rumo que a sua vida levou. Aos nove anos, quando supostamente começou a beber, vendia salsichas num bordel, conta o “Olé”. As jornadas bem regadas, na vida adulta, levaram-no a fazer coisas como comprar de uma vez 1.104 vacas a troco de 250 mil dólares. À parte de tudo isso e das ruínas que a bebida lhe emprestou, ainda jogava futebol.

Claudio Villa/ Grazia Neri

Teve muitos milhões no banco, 14 dizem, e desbaratou tudo. “Cavalos lentos, mulheres rápidas e timba”, assim explicou em tempos como acabou na pobreza, numa entrevista ao “Ovación”. Timba eram as apostas. “A mim não me aborrece ser pobre. É melhor estar assim do que ter plata. Tive muito dinheiro e tive milhões de amigos. Hoje só tenho 10 ou 12, boémios como eu, mas são os que me ajudam. Quero continuar assim, não quero estar do lado dos ricos.”

Formado no Nacional, foi ali que surgiu no futebol profissional. Em 1993, disputou o Campeonato do Mundo de sub-20, na Austrália, e até foi ele quem marcou os dois golos da vitória do Uruguai contra Portugal, que contava com Costinha, Litos, Pedro Henriques, Poejo, Porfírio e Bambo, que ainda empatou a partida na primeira parte. Na altura, Fabián usou a camisola 8, a 10 pertencia a Alejandro Marquez.

Do Nacional saltou para a Serie A, ainda a mágica Serie A dos anos 90. Depois de cinco anos no Cagliari, Carlo Ancelotti chamou-o para Turim, onde fez companhia a Zidane, Davids, Del Piero, Trezeguet e Inzaghi com a farda da Juventus. Foi durante essa curta estadia que Zizou ficou enfeitiçado pelo toque de bola de O’Neill. Por ali, com a camisola 6, encontrou Paolo Montero, o tal a quem supostamente prometeu fazer cuecas a Gattuso.

VANDERLEI ALMEIDA

Mirando uma vaga no Mundial de 2002, este futebolista que usava bem os dois pés aceitou vestir a camisola do Perugia. Mais tarde, os regressos: Cagliari e ao seu Nacional. Antes de pendurar as botas com apenas 29 anos, disputou 19 jogos pela seleção uruguaia. Participou na Copa América de 1993, conquistada pela Argentina de Redondo, Batistuta e Beto Acosta, sendo que o Uruguai caiu perante o cheirinho a café da seleção de Pacho Maturana, a Colômbia de Valderrama. Convocado para defender as cores do Uruguai no Campeonato do Mundo da Coreia do Sul e Japão, a tristeza voltou a beliscar-lhe o corpo: Fabian O’Neill acabou por não disputar qualquer minuto graças a uma maldita lesão.

“Que estejas em paz, papá”, escreveu Marina, uma das filhas numa publicação nas redes sociais. “Faz tempo que já tinhas perdido a chispa, a alegria e a tua essência única. Cada vez te via mais triste, mais doente, com os olhinhos perdidos, a mirada caída, o teu físico que sempre foi tão forte cada vez mais débil e deteriorado. Doeu-me escutar-te a dizer certa vez ‘não quero viver mais’ nas tuas poucas horas de sobriedade.”

Sobre a doença que derrubou o pai, Marina deixou também algumas palavras. “Desejo também que o teu trajeto nesta terra sirva para entender-se mais sobre o alcoolismo, esta doença que te seduziu e que provocou a tua dor desde miúdo, que levou tudo. Sempre quis entender o que era isso tão forte que sentias e com o qual não podias lidar, o que era isso que necessitavas de afogar literalmente cada dia da tua vida em copos de álcool. Lamento muito essa dor, pai, lamento-o na alma desde sempre. Oxalá não te tivesse tocado, mas todos viemos para esta terra com as nossas lutas e vê-se que a tua sensibilidade não suportou tanto.”

E assim fechou a carta de amor ao seu pai: “Vamos recordar-te toda a vida pela tua bondade, pela generosidade, pela humildade que te saía dos poros, pelo teu desapego ao dinheiro, pela tua luz, pelo teu olhar e os teus talentos. Amo-te para sempre e agora sei que não é só ‘até à morte’, como me dizias, mas muito mais”.