Que o futebol é como a vida já se sabia, a bola será redonda também por ser reflexiva do jogo a que toda a gente joga mal vem ao mundo e, correndo atrás dela, um futebolista também corre contra o tempo. Melhor, dá corda às pernas para fugir dessa contagem inexorável que poupa ninguém, mesmo que, durante o melhor dos seus anos, provavelmente nem lhe passe pela cabeça a inevitável chegada do momento em que dirá adeus. No livro “Os Meus Sentimentos”, a escritora Dulce Maria Cardoso perguntou “para que servem os relógios se só contam o tempo que já deixámos de ter, o já passado, quando o único que importa é o que resta, o que ainda se tem”, como que profetizando o tiquetaque a pulular, de momento, na cabeça de um jogador que definiu uma era.
Jamais seria surpresa, tão pouco razão para incredulidade, que o vindouro Campeonato do Mundo do Catar pudesse ser o último a contar com Lionel Messi de chuteiras calçadas. O argentino tem 35 anos, idade a que o corpo já não precisa de lembrar a cabeça do quão desarranjado já vai ficando para aguentar uma vida de futebolista profissional de topo seja qual for o talento que o oriente, mas lê-lo a dizer que “seguramente será o último” que jogue é, como o jornal “El Clarín” o definiu, um momento “comovente”. Resta-lhe, então, pouco tempo para honrar aquilo a que não é obrigado e todo um país lhe imputa.
A alquimia de dribles, simulações, golos e jogo gerado vista por todos, numericamente exemplificada em 691 golos espalhados por 825 partidas de uma carreira arrancada em 2004, foram, desde os primeiros vislumbres de genialidade, comparados com Diego Armando Maradona, génio de outros tempos com quem partilhada as evidências anatómicas de ser canhoto e baixo em estatura. A história ficou com o exagero de El Pibe ter ganhado um Mundial sozinho, em 1986, portanto, a La Pulga se foi exigindo que o fizesse em 2006, 2010, no 2014 que lhe farejou o troféu (a Argentina perdeu na final) e 2018. “Não sei se somos os grandes candidatos, mas a Argentina, em si, é candidata pela história, pelo que significa”, admitiu na mesma entrevista à “Star+” na qual confessou que o seu fim na maior das provas será na edição mais inusitada do torneio.
No Catar votado como anfitrião com subornos e corrupção pelo meio, no país onde a homossexualidade é proibida e há suspeitos de desrespeito por direitos humanos básicos que terão levado à morte de milhares de trabalhadores migrantes, que obrigou a mover a competição para durante o inverno no hemisfério norte, será por lá que Lionel Messi se despedirá do Mundial. É chover no molhado escrever que a narrativa de ser a derradeira oportunidade de um dos melhores jogadores de sempre ganhar a mais importante prova do futebol dominará qualquer alusão ao argentino. “A verdade é que me sinto bem fisicamente, pude fazer uma pré-época muito boa este ano. Estou com outra cabeça, outra mentalidade e com muita vontade”, garantiu quem, esta temporada, vai com oito assistência e igual número de golos, o último feito contra o Benfica, na Liga dos Campeões.
Os relógios futebolísticos contarão agora a réstia de tempo que sobra a Lionel Messi e a quem o viu jogar, porque com os excelsos jogadores é assim, o deleite de os ver passar à frente em campo e com uma bola é tanto que acaba por nos passar ao lado o privilégio de os presenciar. “Odeio perder, o não jogar bem, o não desfrutar dentro de campo, o passar mal. Óbvio que aprendi a perder, são muitos anos e tocou-me perder muitíssimas vezes”, disse, na mesma entrevista, acabado de condenar quem aprecia futebol a começar a aprender a perdê-lo, aos poucos, para o natural decurso da vida.