Depois de um golo poborskyano ao Estoril, em março, escrevemos assim sobre Rafa Silva: “Os lábios não têm o hábito de se curvarem. O corpo, aparentemente leve, vive carregado por algo, como se soubesse uma verdade terrível. Rafa, que corre como quem não ama futebol, escreve-lhe cartas de amor jogando, inventando, sendo quem é. Foi o que fez, aos 34’, quando pegou na bola antes do meio-campo. Correu, superou quem tinha de superar, principalmente as dúvidas e os desaforos, travou, mago, e levantou o estádio inteiro. Depois do jogo, saiu do relvado de cabeça baixa, escondida no capuz, ele todo escondido, como se não fosse nada com ele. Mas era: no seu jeito triste, Rafa foi Rafa e a Luz agradeceu-lhe”.
O diagnóstico pode estar errado, mas é para alguns a sensação derramada que o futebolista deixou escapar ao longo da carreira. Esta segunda-feira, Rafa Silva, de 29 anos e uma das figuras de uma equipa que leva 13 vitórias em 13 jogos, retirou-se do futebol internacional, da seleção, pela qual nunca foi especialmente feliz. Foram apenas 25 internacionalizações, sem golos, ainda que esteja ligado às conquistas do Campeonato da Europa e da Liga das Nações. “Peço que as razões, de foro pessoal, sejam respeitadas por todos”, pediu.
Soa a algo inaudito ver um jogador que ainda voa a abdicar de estar entre os melhores, ainda mais a poucas semanas do início do Campeonato do Mundo. Rafa estava convocado para os próximos compromissos da seleção, o que permitia antever uma presença no Catar. Tem apenas 29 anos. As pernas, rápidas e imprevisíveis, estão frescas. Esta temporada, satisfeito com a humanidade da equipa técnica, talvez tenha encontrado definitivamente o seu lugar no relvado, num modelo de jogo que o defende e permite expressar-se livremente, rodeado de gente que o entende. Curiosamente, atinge quem sabe o pináculo da sua maturidade futebolística jogando a 10, ou nas costas do avançado, algo a que Jesualdo Ferreira, então treinador do Sp. Braga em 2013/14, torcia o nariz. Rafa tinha 20 anos, acabadinho de chegar à Pedreira depois de uma bela e goleadora temporada no Feirense, na 2.ª Divisão.
“Parece-me um avançado e é aí que seguirá, jogando nos três espaços frontais e aprendendo a defender como toda a equipa tem de defender”, refletia na altura o professor. “Tem de ser mais finalizador e mais robusto, porque ainda não é suficientemente robusto para se dizer que vai ser o tal jogador de futuro, jogando a 10. Esqueçam o 10. Nos últimos anos só conheci um, o Zidane. O 10 tem características que o Rafa não tem e ele tem características que os 10 não têm.”
O supersónico Rafa Silva
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Mas o futebol avançou para os espaços ainda mais curtos, para o tirar o chapéu à fisicalidade, para a obediência à velocidade e para admiração para aqueles que resolvem problemas em espaços mínimos, sem tempo e espaço lá está, principalmente na zona do 10, ou na zona 14 para os académicos do jogo. Roger Schmidt, tal como antecipara ao “i” um ex-treinador do futebolista nas camadas jovens do Alverca, deu-lhe mesmo esse papel e, aparentemente, estão ambos felizes. Mas isso não chegou para o futebolista desejar tentar dar continuidade na seleção e quem sabe ser mais feliz. Aos 29 anos, disse adeus.
É certo que não falamos de uma figura da seleção nacional, intriga mais a opção e reflexão que está no coração da decisão do que gera preocupação a sua substituição a pouco tempo do Mundial, mas é uma boa desculpa para recuperarmos episódios semelhantes de tempos idos. E há nomes importantes que, tal como Rafa, abandonaram as respetivas seleções antes de celebrarem o 30.º aniversário.
Em junho de 2016, já com duas finais de Copa América e outra de Campeonato do Mundo perdidas, Lionel Messi hipotecou a alegria do povo enquanto mais fiel sucessor da camiseta 10 de Diego Maradona. “Penso que é o melhor para todos, para mim e para as muitas pessoas que o desejam”, disse na altura, citado pela TyC Sports. “Para mim a selecção nacional acabou. Tentei muitas vezes [ser campeão] mas não consegui". (…) É muito difícil, mas a decisão está tomada. Não vou tentar mais e nisto não haverá marcha atrás.”
Messi tinha apenas 29 anos e, ingénuo amante do jogo, acabaria mesmo por regressar mais tarde, a tempo de conquistar uma Copa América e de agora sonhar com o fugidiço título mundial, no Catar, em novembro e dezembro, exibindo já outra leveza e alegria com a farda nacional, com colegas que parecem amigos que não o procuram sempre e que têm estofo e liberdade para assumir.

Malcolm Croft - PA Images
Mas há outros tubarões, bem lá atrás na história, que também optaram por dizer adeus à seleção do país demasiado cedo. Eric Cantona foi um deles, com apenas 28 anos, já na ressaca daquele pontapé num adepto do Crystal Palace, em 1995. Perdeu a braçadeira e a aura messiânica foi transferida para as botas de Zinedine Zidane, que seria o obreiro dos triunfos no França 1998 e Euro 2000. O francês genial, o avançado da gola levantada e pontapé canhão ("au revoir"), pendurou as botas pouco depois, aos 30 anos. Não tinha a mesma ambição, explicou, a vontade de lutar e também se aborreceu com o novo mundo do merchadising, quando o negócio começou a mordiscar o jogo. E tudo acabou, em 1997. Foi um choque.
Puxando ainda mais a fita atrás, esbarramos na história de Gerd Müller, o bomber que estará sempre nos lugares cimeiros dos melhores livros sobre futebol. Pouco alemão no que toca ao físico, era um génio na área e na arte de marcar golos. Foi campeão do mundo em 1974, contra a Holanda de Johan Cruijff, e campeão da Europa em 1972, contra a União Soviética, contra quem fez dois golos – foram 68 em 62 internacionalizações. Depois de uma contenda difícil com a federação de futebol do país, decidiu abandonar a Mannschaft com apenas 28 anos.

Gerd Müller
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Bernd Schuster, campeão da Europa em 1980 com apenas 20 anos e um dos melhores futebolistas do planeta na altura (três vezes finalista à Bola de Ouro), fechou a porta da seleção nacional com apenas 24 anos. Mais uma vez, muitos problemas com a federação e, neste caso, com o selecionador Jupp Derwall ditaram o adeus precoce do jogador que jogaria no Barcelona, Real Madrid e Atlético Madrid, onde partilharia balneário com Paulo Futre, que em tempos disse à Tribuna Expresso que o alemão era “uma coisa do outro mundo”.
Na tarde de 27 de fevereiro de 2000, Alan Shearer, um mestre que sabia fazer bailar as redes das balizas como poucos, festejando com uma mão bem no alto, anunciou que abandonaria a seleção após o Campeonato da Europa, disputado na Holanda e Bélgica. “Gostaria de jogar, se for convocado, no Euro 2000 e depois sair para que o selecionador tenha tempo para planear o Campeonato do Mundo de 2002”, disse o inglês naquele dia, depois de fazer um golo no 2-0 do Newcastle ao Sheffield Wednesday. Na altura registava 28 golos pela seleção em 57 jogos.
“Falei com Bobby Robson e Kevin Keegan e eles compreenderam as minhas razões. Quero que as pessoas percebam que não estou a afastar-me de um desafio. Sou muito patriota e o meu tempo como capitão de Inglaterra deixou-me incrivelmente orgulhoso”, desabafou, admitindo ainda que estava focado em fazer valer o dinheiro que o Newcastle lhe pagava. Shearer, um dos melhores 9 em que Inglaterra meteu os olhos em cima, admitiu também que voltaria atrás caso houvesse uma “crise de lesões” ou “real necessidade”. Aí teria sempre a “honra” de responder à chamada, avisou.
Pouco mais de quatro anos depois, foi a vez de Paul Scholes, outro grandíssimo futebolista, dizer adeus à camisola dos três leões. Tinha, depois do Euro 2004, 29 anos. O jogo com Portugal, o tal da panenkada de Postiga e das defesas sem luvas de Ricardo, foi a derradeira presença do médio do Manchester United na seleção. “É uma decisão que não tomei de ânimo leve. Eu andava a considerar retirar-me do futebol internacional há algum tempo…”, admitiu, 66 internacionalizações depois, um número mágico para os ingleses.

NurPhoto
Há casos mais recentes deste tipo de decisões. Mesut Özil, por exemplo, também abandonou a seleção aos 29 anos, algures em 2018, depois de 92 jogos com aquela camisola, com a qual foi campeão do mundo em 2014. Uma fotografia com o Presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, ditou o desfecho precipitado, acabando Özil por denunciar ter sentido “racismo” e “falta de respeito”.
Finalmente, em agosto de 2014, Samir Nasri admitiu que não era feliz quando jogava pela França e decidiu meter aquele capítulo para trás das costas, 41 internacionalizações depois. “Não quero estar lá, não sou feliz, não quero lá ir mais”, disse o então futebolista do Manchester City. “A minha família sofreu com isso e não quero que eles sofram. Penso que é sensato parar e focar-me na minha carreira no clube. Eu tenho pensado sobre isso [abandono] desde o Campeonato da Europa de 2012. Isto foi só a confirmação do que eu tenho vindo a sentir.” Tinha apenas 27 anos.
São tantas as histórias de abandonos prematuros que a decisão de Rafa se torna menos inaudita e estranha. Há sempre justificações e, em última instância, o que importa realmente é a vontade e o bem-estar do futebolista e da família. Resta-lhe agora continuar a provocar diferentes versões da expressão “uau”, como provocou em Jürgen Klopp, no clube.