Quando, a 12 de dezembro de 2021, foi concluída a 18.ª jornada da liga ucraniana 2021/22, ninguém poderia adivinhar que a bola deixaria de rodar no país até ao final de agosto de 2022. Naquele dia do último mês da volta ao sol passada, o campeonato entrou na pausa de inverno, que se transformaria no cancelamento da segunda metade da competição devido ao começo da invasão russa.
A 24 de fevereiro, a ofensiva do país de Vladimir Putin começou e a liga seria definitivamente suspensa em abril. O Shakhtar Donetsk, líder da tabela, seria declarado vencedor, mas não houve a atribuição de qualquer troféu de campeão.
Agora, a liga está de volta, com quatro jogos a abrirem a competição na terça-feira, um dia antes de a invasão russa completar meio ano de duração. O encontro inaugural oporá o Shakhtar Donetsk, que não joga na sua cidade de origem desde 2014, devido ao conflito no Donbass, e o Metalist 1925, de Kharkiv, uma das cidades mais afetadas pela guerra — a equipa tem treinado em Uzhhorod, na fronteira com a Eslováquia, a cerca de 1.300 quilómetros de Kharkiv.
Face às equipas que teriam direito a disputar a competição, duas anunciaram que não o farão. O Mariupol não alinhará porque a sua cidade foi tomada pelas forças russas, enquanto o Desna Chernihiv, perto da fronteira com a Bielorrússia, também não jogará pela destruição causada pela guerra. O estádio do Desna foi gravemente danificado durante os confrontos.
Uma fotografia de 15 de abril capta a destruição no estádio do Desna Chernihiv
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As 16 equipas que participarão na liga verão os seus jogos envoltos em muito apertadas medidas de segurança. Foi elaborado um protocolo de atuação em conjunto entre o exército, forças de segurança e autoridades locais. Todas as partidas serão disputadas sem público e com forte presença militar. Por razões de segurança, não são conhecidos nem os horários, nem as localizações dos desafios da segunda jornada.
Para prevenção de possíveis ataques aéreos, nenhum desafio será disputado a mais de 500 metros de um abrigo anti-aéreo. Todos os intervenientes dos jogos receberam instruções e treino sobre o que fazer em caso de emergência. “Atenção! Alerta aéreo! Pedimos a todos que se desloquem para os abrigos”, será a mensagem que se ouvirá pelo sistema sonoro dos recintos.
Para as autoridades do desporto ucraniano, este regresso vai muito além do futebol. Andrei Pavelko, presidente da federação, descreve esta iniciativa como “única na história do futebol”, por ser “futebol contra a guerra em condições de guerra”, futebol “pela paz”. Queremos mostrar a força da nação, a coragem da Ucrânia e o desejo de vitória. É um sinal que damos ao mundo”, comenta Pavelko.
Vadym Gutzeit, ministro ucraniano do desporto, escreveu na sua página no Facebook que “a vontade de ganhar em todas as frentes não pode ser parada”. É esperado que, nas próximas semanas, a segunda divisão e o campeonato sub-19 também sejam retomados.
Quanto às competições europeias, a UEFA determinou que nenhum encontro pode ser disputado em solo ucraniano. Com efeito, o Benfica defrontou o Dynamo Kiev, no play-off da Liga dos Campeões, em solo polaco.
Êxodo estrangeiro com críticas à “falta de respeito da FIFA e de outros clubes”
A maior parte das partidas da liga terá lugar em Kiev, Lviv ou Zakarpatska, junto da fronteira com a Eslováquia. Mas se a bola vai voltar a rolar em algumas zonas do país, dentro de campo os protagonistas serão bem diferentes do que se verificava em dezembro de 2021, quando se disputou a última jornada antes da invasão.
Desde que a guerra começou, assistiu-se a um verdadeiro êxodo dos jogadores estrangeiros. O Shakhtar Donetsk, que nos habituou a apresentar uma importante legião de brasileiros, viu sair todos eles nos últimos meses — David Neres foi para o Benfica, Pedrinho, que também passou pela Luz, foi para o Atlético Mineiro, Tetê para o Lyon, Marcos Antônio para a Lazio ou Dodô para a Fiorentina, por exemplo. O cenário que se verificou no clube que tem tido mais êxito recente no país repetiu-se um pouco por todas as equipas, com plantéis que agora praticamente só contam com ucranianos.
Manor Solomon, um dos muitos estrangeiros que saíram recentemente da Ucrânia ao abrigo da permissão criada pela FIFA
Jacques Feeney/Offside/Getty
Várias destas saídas — como a de Tetê para o Lyon ou a do israelita Manor Solomon para o Fulham de Marco Silva — realizaram-se sem compensações para os clubes ucranianos. Em março, a FIFA anunciou que os jogadores estrangeiros com contrato com equipas da Ucrânia poderiam assinar temporariamente por outros clubes sem necessidade de pagamento de uma transferência, possibilidade essa que foi prolongada, no verão, até ao final da temporada 2022/23.
Sergei Palkin, CEO do Shakhtar Donetsk, queixou-se ao “New York Times” que já tinha acordado vendas de cerca de €8 milhões com o Fulham por Solomon e de €16 milhões com o Lyon, por Tetê. No entanto, ao ser prolongada a norma da FIFA, ambos saíram sem que qualquer pagamento fosse feito ao Shakhtar.
“Falam muito da família do futebol, mas na realidade não há família nenhuma”, disse Palkin ao “New York Times”.
No caso de David Neres, esta norma não foi aproveitada pelo Benfica, o que levou Palkin, em declarações à “Sport TV”, em junho, a agradecer ao clube da Luz, qualificando a sua atuação como sendo “de boa-fé” e “mostrando que apoiam a Ucrânia”.
Recentemente, o Lyon ofereceu €3 milhões por Tetê, valor descrito pelo CEO do Shakhtar como “ridículo”. “Há uma falta de respeito da FIFA e de outros clubes” em relação ao futebol ucraniano, acusa Palkin.
O Shakhtar pede ao Tribunal Arbitral do Desporto cerca de €50 milhões em indemnizações à FIFA — valor que entende ter perdido pelo prolongamento da norma por parte da entidade máxima do futebol mundial. A FIFA defende-se dizendo que a solução aplicada é a única que impede que os atletas rescindam unilateralmente os seus vínculos com os conjuntos ucranianos. Os jogadores que saíram com base nesta regra vão emprestados até final de 2022/23.