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Quando ganhar, mesmo ao ralenti, é um jeito de viver

O Real Madrid bateu o Eintracht Frankfurt, por 2-0, e conquistou a Supertaça Europeia, imitando assim o que fizera em 1960, num jogo mítico da Taça dos Campeões Europeus. Karim Benzema superou Raúl González, como segundo maior goleador da história do clube, e só tem Cristiano Ronaldo pela frente

Hugo Tavares da Silva

Soccrates Images

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Num foguetão frenético, branco e imaculado, os rapazes de Madrid passaram por cima dos de Frankfurt. Alfredo di Stéfano fez um hat-trick e Ferenc Puskás assinou os restantes… quatro. Sete-três, assim acabou a final da Taça dos Campeões Europeus de 1960. Passadas mais de seis décadas, os rapazes que vestem a farda da mesma cor, com um passado recente quase tão glorioso e pesado como essa gente de tempos idos, conquistou a Supertaça Europeia diante do mesmo rival, agora somente por 2-0, com golos de Karim Benzema e David Alaba.

Parecia um jogo de adultos num jardim, num domingo tórrido e impiedoso, contra crianças, quando fazem aqueles gestos de não querer pisar ninguém, tendo os máximos cuidados. Os carrinhos de Casemiro foram assim, ternos quase, com exceção para um em que o banco adversário reagiu e ele, gentilmente, pediu calma. “Só bola”, disseram as mãos.

Ao ralenti, foi assim que se jogou. O Eintracht Frankfurt, que foi amassado pelo Bayern na primeira jornada da Bundesliga (1-6, 0-5 ao intervalo) não mordia como mordem aqueles que precisam de morder para sobreviver contra lendas e figuras mitológicas. Os ataques, nem sempre bem pensados, viviam da movimentação e luz de Daichi Kamada, um japonês bom de bola. Até foi ele o primeiro a causar perigo para Courtois, depois de um passe brilhante de Santos Borré, mas o nipónico demorou e demorou e demorou, como se fosse canhoto, e bateu na bola tarde e frouxamente. O guarda-redes francês resolveu sem drama.

Kamada teve bons momentos

Kamada teve bons momentos

Alex Grimm

O meio-campo do Real Madrid, que se conhece melhor do que se conhecem grandes amigos de longa data, ia jogando a um ritmo baixo. Tinha paciência para encontrar linhas de passe, mas pouca energia para atacar espaços ou levar a bola para a frente. A equipa de Carlo Ancelotti viveu sobretudo das correrias de Federico Valverde, pela direita, abanando assim a organização defensiva alheia, composta por uma defesa de cinco, com o apoio dos médios Djibril Sow e Sebastian Rode.

Os triângulos dos espanhóis, arquitetados pelos pacientes e irrepetíveis Modric e Kroos, iam engolindo as vontades dos alemães, algo desconfortáveis por perseguirem futebolistas de outra dimensão. Mas o ritmo baixo permitia sonhar. Vinicius Jr, surgiu isolado ainda antes dos 17 minutos, após Valverde galgar muitos metros pelo corredor, e só o defesa Tuta, em cima da linha quase, evitou a glória blanca.

A pouca vertigem germânica intrigava, apesar de se desdobrarem na frente, não havia fúria, muito menos grande velocidade ou um número importante de jogadores à frente da bola. Kamada, talvez o maior destaque, ia sacudindo o jogo, um pouco isolado contra um exército infinito de 11 homens. O japonês perdeu nestes dias o aliado Filip Kostic, transferido para a Juventus.

Os alemães iam rematando, quase para se evitar dizer que era um encontro sem grandes ambições ou desejos. Courtois foi fechando o caminho. O Madrid parecia superável. Era um engodo, claro, é sempre. De vez em quando, os super desinspirados Benzema e Vinicius tratavam de fazer uma tabela ou algo semelhante e desbloqueavam os espaços. O golo chegou finalmente, após canto, por Alaba: Benzema ganhou, Casemiro corrigiu e o austríaco encostou para o deserto que era a baliza.

Tullio Puglia - UEFA

A bola gostava mais dos homens de branco (65%). Cada vez mais confortáveis, igualmente lentos e despreocupados, foram atraindo ainda mais o rival, frustrando-o ainda mais. Apesar do descaso, os rapazes de Carletto chegavam com alguma facilidade à área alemã quando se propunham a tal.

Mario Götze e Kolo Muani, com a camisola 9, entraram a meia hora do fim. Seriam também eles vítimas do general Casemiro, que ia fazendo inúmeros cortes mas também se ia dando ao drible, caindo como uma folha. O brasileiro disparou à baliza, com a canhota. Barra. Fazem tudo com uma leveza extraordinária, quase insultuosa. É a qualidade, senhores. E a mentalidade, quase imprópria para caber na alma de um homem.

Benzema fez o 2-0, aos 65', e sentenciou um jogo sem grandes emoções e paixões. O gaulês fez mais: superou Raúl González e tornou-se no segundo maior goleador da história do clube, com 324 golos (só superado por um tal de Cristiano Ronaldo). Seguiram-se as protocolares e úteis substituições. O Eintracht, magicado por Oliver Glasner e vencedor da Liga Europa, mudou o desenho, tornou-se mais ofensivo, mas nem por isso causou grande perigo.

A história do jogo, que graciosamente permite recuperar aquele mítico duelo de 1960 (e que testou uma nova tecnologia para o fora de jogo), resume-se a 90 minutos em que o Real Madrid fez o que era esperado: ganhou. Não foi um grande jogo de futebol. Não foi emotivo, nem artístico. Tudo isto, naturalmente, contrasta com os sorrisos daquela gente toda quando levantavam mais uma taça. Benzema estava feliz como um menino. Ancelotti, com um sorriso paternal, estava orgulhoso, esquecendo-se certamente de que é a sua quarta Supertaça, algo numa visto no futebol.

Assim, a temporada 2021/22 começou como terminou: com o Real Madrid a fazer cócegas ao céu. É um jeito de viver. E desta vez nem foi preciso convocar Juanito ou espíritos futeboleiros. É uma grande equipa de futebol.