Dois mil e vinte e dois mal começou e o primeiro dos seus dias vai a meio quando a oferenda aparece, então deleitem-se, diz o futebol para o ar, essa modalidade das menos redondas que há no desporto devido à lógica que nem sempre tem, apesar de a sua vida ser uma bola. Há apenas uma em campo, redundância-mor à qual um treinador cede, desde sempre, a esta redondeza de evidências para escolher a sua forma de jogar.
O primeiro jogo dos grandes de 2022 ter o Manchester City que Pep Guardiola magica, faz seis épocas, um vício ordenado na bola, é uma ode a que vejamos um conflito de intenções logo no abre persianas inaugural deste ano. Ainda há dias se escutava Pep, com a maior das naturalidades, a encolher os ombros enquanto explica (outra vez) que sua equipa defende com a bola por não ter defensores natos sem ela, o que tem é uma predileção por escolher jogadores com bom pé e inteligência nos neurónios futebolísticos para interpretarem quando, como e por onde deve jogar se tudo correr como eles querem.
Mas não corre, não se veem os adversários a serem atraídos pelo seu jogo de muitos passes, não caem nos engodos de pressionarem aqui para vagarem espaço nos acolás pretendidos pelo City. As artimanhas com que tentam ludibriar os futebolistas contrários não resultam durante 45 minutos e a razão, com certeza, reside muito no treinador que não está no estádio do Arsenal por a pandemia o apanhar na viragem do ano e o confinar em casa.
Mikel Arteta habitou nas sombras de Guardiola durante as três épocas que antecederam a sua subida na vida, em 2019, quando virou treinador principal deste Arsenal, onde a tarefa de ressuscitar a equipa para estados de graça escapulidos desde a saída de Arsène Wenger tem sido feito aos pirolitos, com generosa dose de solavancos que, esta época, finalmente parecem estar a amainar. E o reencontro com os mais viciados na bola da Premier League serve para arrancar o ano com uma certeza.
A forma como o Arsenal bloqueia vias ao centro do campo, limitando o City a ter de retornar, uma e outra vez, aos seus defesas centrais e a só ter conforto quando Laporte ou Rúben Dias têm a bola na sua metade do campo — portanto, longe da baliza adversária. Quase todas as tentativas de a equipa de Guardiola trazer Rodri, Bernardo Silva ou De Bruyne para o volante do jogo são estancadas pela minúcia articulada com que o Arsenal se posiciona no campo, crescendo, depois, à medida que as suas intenções mais práticas e verticais vão desmantelando o City.
Porque usam cada bola que recuperam com uma preferência descarada, que é passá-la para a frente e com olhos em Lacazette, o avançado especialista em sair de perto dos centrais para se dar a passes que lhe metam a bola no pé e lhe peçam para ele a filtrar para quem, durante esses segundos, já corre para os espaços que há na última linha adversária. Nessa azáfama de terem reajustar as posições a que o Arsenal submete os defesas do City, assim que Lacazette (e Ødegaard, também) recebe bolas em terra de ninguém, as setas que são Martinelli e Saka zarpam em direção à baliza vindos das alas.
O brasileiro atazana a cabeça de João Cancelo cada vez que embala e tem um par de remates que cheiram a golo; o inglês saca faltas, puxa a equipa para perto da área e escapa a adversários com o seu estilo de bola colada no pé esquerdo enquanto arranca, abranda e volta a acelerar. É ele que faz o 1-0 a passe de Martinelli, quando aparecer na sombra do bloqueio que o matreiro Lacazette faz a Aké, na área, depois de se ter dado a receber um passe nas costas dos médios.

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O Arsenal era o senhor arreliador do City. A máquina coordenada para fechar os espaços mais desejados pela equipa de Guardiola e tão oleada nos movimentos para jogar logo para a frente, sempre para a frente, quando tinha a bola deu os prováveis 60 minutos mais chatos para o líder da Premier League esta época, até a loucura pegar no jogo pelos colarinhos e o destrambelhar por completo.
Numa das raras chegadas de Bernardo Silva à área, com a bola na sua cola UHU do pé esquerdo, partiu para cima de Gabriel, caiu e o árbitro apitou um penálti depois de ver no VAR o que não vira ao vivo. Mahrez bateu o 1-1 e logo o Arsenal reagiu com a estirpe de jogada que massacrara o City até então. A corrida Saka atrás de um passe longo fez o cérebro de Laporte parar, levando-o a atrasar a bola sem olhar para o guarda-redes e fazê-la passar por cima de Ederson. Só o esforço de Aké a impediu de entrar na baliza nas últimas e dar uma chance de recarga a Martinelli, que a atirou contra o poste.
Na jogada seguinte, Ederson colocou um dos seus rasgados passes longos à jogador de campo para o peito de Gabriel Jesus, cuja receção castigou o atraso do central Gabriel em pressioná-lo. Foi falta, o defesa teve o segundo cartão amarelo e o jogo ficava coxo de repente, sem que o City aparentasse ter descortinado soluções para consertar os problemas que o Arsenal lhe continuava a causar até à expulsão.
Para lá do natural recuo das linhas e do natural encosto a que foi submetido à própria área, o Arsenal não regrediu assim tanto com o jogador a menos, nem com a decisão de Guardiola em retirar uma referência aos centrais adversários — substituiu o avançado Gabriel Jesus pelo médio Ilkay Gündoğan, deixando os jogadores rodarem no papel de falso 9 — enquanto a equipa intensificava o carrossel de passes em grandes efeitos práticos. O City raramente entrava na área e o Arsenal, por vezes, ainda conseguia chegar à do adversário com as corridas incansáveis de Partey ou as desmarcações de Martinelli. O plano dos londrinos foi eficaz até ao fim.
Mas, já nos descontos e a três minutos do fim, ao discreto De Bruyne foi concedido tempo e espaço para ter a bola no meio-campo do Arsenal, onde, mesmo ainda longe da baliza, é um corpo cheio de ameaça dentro pela aptidão para colocar passes que caiam no costado dos defesas. O belga picou a bola que foi cortada por Holding antes de dois ressaltos darem as voltas ao resultado: o primeiro sobrou para Laporte, cujo remate originou o segundo que deixou Rodri só a ter de a rematar, em esforço, a dois metros da baliza.
A 11.ª vitória consecutiva do Manchester City na Premier League surgiu mais de um acaso do que do engenho reconhecido à equipa, cujo jogo passador não fez grande mossa ao Arsenal e foi mais machucado pela equipa londrina que, em hora e meia de primeiro futebol do ano, teve o seu plano a ser mais do que eficaz contra os líderes do campeonato. O Arsenal, aos poucos e mais seguramente do nunca com Arteta, parece estar a cimentar uma estabilidade que não vê já lá vão os anos.